terça-feira, maio 29

Um cachorrinho fora do comum

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1998
Autor : Peter Muilenburg

‘Santos’ levava uma vida cheia de charme, até enfrentar um dia azarado na África

A lua pálida transformara em mercúrio as águas lamacentas de Oyster Creek (Enseada das Ostras). Mas tudo mudou quando um vento encrespou o local onde estava atracado nosso barco Breath – chaluma de cerca de 13 metros – no delta do caudaloso Rio Gâmbia, perto de Banjul, capital de Gâmbia, no oeste da África. Navegáramos milhares de quilômetros mar afora, durante dias, para chegar até ali. Protegidos no ancoradouro, ouvíamos o troar ensurdecedor das ondas no vão sob a Ponte Denton.
A oportunidade de conhecer a África tinha reunido outra vez a família, para uma temporada de dois meses. Nosso filho mais velho, Rafael, 20 anos, tirara licença na faculdade para juntar-se ao resto da família: Diego, 13 anos, minha mulher, Dorothy, e nosso cãozinho preto, Santos.
O Breath vinha sendo nosso único lar desde que eu o construíra em St. John, nas Ilhas Virgens, no início dos anos 80. A vida a bordo havia estreitado nossos laços. Todo o mundo tinha suas responsabilidades – os meninos faziam vigília desde os 6 anos de idade. E, nos últimos 8 anos, tínhamos conosco Santos, nosso querido shipperke, de cinco quilos.
Quando fomos para a cama naquela noite, Santos ficou no teto da cabine, de onde só saia quando o tempo estava muito ruim. Quando Dorothy se abaixou para lhe dar boa noite, encostou-lhe o focinho no rosto. Por um segundo, seus olhos faiscaram – ele a adorava -, mas logo voltou para seu posto.
Dormíamos mais tranqüilos com ele a bordo. Santos havia assumido por conta própria a missão de garantir que ninguém, amigo ou inimigo, chegasse a menos de cem metros do Breath sem que ele desse o alarme. O cãozinho já navegara conosco pelo Caribe, Atlântico e Mediterrâneo, sempre vigilante e bom companheiro, trazendo-nos sorte. Nos oito anos em que estava no barco, não tivéramos um só contratempo. Entretanto, na noite de 2 de janeiro de 1991 tudo mudou.
Já estávamos dormindo, pouco depois da meia noite, quando as cordas do barco começaram a ranger. Primeiro pensei que fosse algum barco que tivesse passado e feito marola, porém Santos teria latido. O ranger das cordas aumentou. Quando subi ao deque, as cordas roçavam nos cunhos que prendiam nosso barco a outra embarcação.
Numa noite calma como aquela, só podia haver uma causa: correnteza. Meu barco estava ancorado com a popa voltada para a corrente e, quando vi pela lateral a velocidade da água passando pelo casco, fiquei alarmado. A maré estava três vezes mais alta do que seria o normal na primavera. Os cunhos da outra embarcação pareciam a ponto de arrebentar. Se algo se soltasse, talvez os dois barcos fossem carregados juntos e se tornaria impossível evitar a destruição. Eu precisava desatracar.
Estávamos em local difícil. A pouca distância, rio abaixo, dois fios de alta tensão cruzavam a enseada. Cerca de 30 metros atrás dos fios, assomava a gigantesca Ponte Denton. Se não conseguíssemos virar a tempo, nosso mastro principal, de metal, poderia bater nos fios. E se o barco se chocasse com a ponte, ambos os mastros ficariam presos na estrutura, enquanto o casco seria arrastado pelas águas.
Chamei todos para o convés. Percebendo que algo estava errado, Santos se pôs de pé, pronto para agir.
Soltamos as cordas, ficando presos apenas à âncora de popa, mas tínhamos de soltar tudo porque o Breath estava sendo jogado violentamente para a frente e para trás pela força da correnteza. Liguei o motor e já estava quase conseguindo fazer a volta quando percebi que, empurrado pela corrente, o barco ia se chocar com os fios de alta tensão. Dorothy se agarrou a Santos, que tremia. Todos prendemos a respiração.
Pegamos o primeiro fio de raspão. Houve uma chuva de faíscas, como se fossem meteoros. Passamos, mas o segundo fio se aproximava. Virei o timão com toda a força. Mesmo assim batemos no fio – inclinado-se e raspando, a ponta de 15 centímetros do mastro ficou presa na rede de alta tensão.
Houve chuva de explosões elétricas sobre o cordame e terrível incandescência iluminou o céu. Labaredas surgiram dentro da cabine; os fusíveis pulavam dos bocais; rolos de fumaça subiam pelas escotilhas.
De repente, os fogos pararam. O cabo se havia enrolado no mastro, porém estávamos presos entre o segundo fio e a ponte. A única maneira de escapar dali era ir para trás – para cima dos fios. Contorcendo-se, Santos escapou do colo de Dorothy e disparou em direção à proa, pronto para entrar em ação.
Com o timão firme, esperamos o impacto. A ponta do mastro tocou no cabo, provocando chuva de chispas vermelhas. Santos, olhando para cima, continuava na proa, pronto a defender seu território. No entanto, ganiu furiosamente quando as chispas lhe caíram sobre o pêlo. Dando um uivo agudo, disparou pelo deque, com as brasas brilhando em seu dorso, e pulou na água. Quando voltou à tona, começou a nadar em direção ao barco, com os olhos fixos em Dorothy. Mas a correnteza arrastou-o para as sombras sob a Ponte Denton – e ele desapareceu.
Segundos depois uma explosão semelhante a um pequeno trovão sacudiu o estai grande. Meu filho Raffy foi atirado de costas para fora do convés e caiu na água.
E aí tudo acabou. Diego apanhou um extintor de incêndio e combateu o fogo, enquanto eu guiava o barco em direção à traineira atracada a uma plataforma de concreto, perto da margem lodosa. Raffy, campeão de natação na faculdade, conseguiu chegar até a margem.
Apesar de tudo, estávamos sãos e salvos – exceto Santos. Raffy saiu chamando por ele ao longo das duas margens, mas nem sinal. Passamos o resto da noite amarrados à traineira. Eu tentava dormir, porém não conseguia parar de pensar em Santos. Sentindo-me impotente, lamentava sua sorte.
No dia seguinte, Dorothy caminhou quilômetros e quilômetros pela praia, entrando em todos os hotéis para perguntar sobre Santos, conversando com turistas e vendedores. Ninguém tinha visto nosso cãozinho preto.
Ela ofereceu recompensa através do rádio do barco, notificou a polícia e espalhou cartazes. Era comovente, mas me parecia inútil. Para além da ponte, os largos bancos de areia tinham sido açoitados aquela noite por séries e séries de ondas ferozes. Pensar em Santos sendo arrastado pela correnteza em meio àquelas ondas me fazia estremecer.
Dias depois, fizemos os reparos no Breath e ainda não tínhamos notícias de Santos.
“Querida”, disse eu a Dorothy, “precisamos ir em frente com nossa vida: percorrer o rio, atravessar o Atlântico e voltar ao trabalho”
“Mas, e se ele tiver sobrevivido?”, perguntou ela. “E se ele achar o caminho de volta e, chegando aqui, não nos encontrar?”
Ela estudou meu rosto em busca de uma trégua para a realidade. Então os olhos se encheram de lágrimas e a voz saiu embargada.
“Eu não queria abandona-lo!”
Com o coração pesado, levantamos âncora na manhã seguinte para seguir viagem rio acima.
Entretanto, só fomos sentir realmente nossa perda 80 quilômetros adiante, quando estávamos ancorados. De repente, um rosto estranho apareceu na escotilha, perguntando se queríamos comprar peixe. O pescador tinha remado silenciosamente até junto do barco. Quando Santos estava vivo, isso jamais acontecera. Foi quando de fato sentimos a falta de seu latido vigilante, que tantas vezes tentáramos calar.
Não se passava um dia sem que alguém se lembrasse de uma história de Santos. Ele fora um cãozinho pequeno, mas muito valente. Tinha clássico complexo de Napoleão. Precisava ser respeitado e o conseguia colocando animais maiores para correr. Ele era puro blefe. Nunca mais encontraríamos outro cachorro como ele, eu pensava, enquanto navegava rio acima.
Algum tempo depois, acordei no meio da noite e vi que a cama a meu lado estava vazia. Encontrei Dorothy sentada olhando a lua. Pela maneira como seus olhos brilhavam, vi logo que estava pensando em Santos. Sentei-me junto dela e abracei-a .
“Sabe do que sinto mais falta?”, ela perguntou. “Da carinha peluda dele na escotilha. Agora, todas as vezes que vejo uma sombra passar na vigia, lembro do amor que vi naqueles brilhantes olhos negros.”
Observamos a lua desaparecer por trás dos topos das árvores. Então, cheios de tristeza, voltamos para a cama.
Duas semanas se passaram enquanto fazíamos nossa viagem de mais de 240 quilômetros pelo Rio Gâmbia. Uma tarde, Dorothy e eu estávamos reforçando o toldo do convés quando vi um catamarã com um homem a bordo nos espiando de binóculo.
“Vocês são os americanos que perderam o cachorro?” gritou.
“Somos”, respondi, cauteloso.
“Não sei se é de vocês, mas a policia da Ponte Denton está com um cachorrinho preto achado na praia.”
Todo o mundo subiu ao deque na maior gritaria.
“Meu Deus! É o nosso, sim.”
Mas fui prudente.
“Talvez tenham encontrado um vira lata e o trouxeram, pensando na recompensa. Acho bom não termos esperança demais.”
Na manhã seguinte, Dorothy e eu pegamos vários táxis e velhos ônibus até Banjul. Tremendo e esperançosos, pegamos um táxi até a Ponte Denton para ver se Santos tinha mesmo sobrevivido.
“Vocês vieram atrás do cachorro!”, disse o policial que nos recebeu.
Depois se virou e chamou um rapaz.
‘Vá pegar o bichinho.”
Dorothy e eu ficamos esperando, na maior aflição.
Foi então que, amarrado a um pedaço de corda imunda, surgiu Santos. Tinha o andar vacilante, a cabeça pendente. Mas, quando Dorothy gritou Santos!, ele ergueu a cabeça, as orelhas ficaram instantaneamente em pé e todo o corpo começou a tremer diante da voz adorada. Ele disparou em direção a ela e começou a lamber-lhe o rosto. Dorothy o abraçou, com os olhos cheios de lágrimas.
O policial então nos contou que na manhã seguinte à noite que havíamos batido no fio de alta tensão, um turista sueco que andava na praia encontrara Santos – a nove quilômetros de Oyster Creek. Cuidou do cachorro levando-o para o hotel e dando-lhe de comer. Quando chegou o dia de ir embora, entregou Santos à polícia.
Notamos que o focinho de Santos estava mais claro e que, quando passávamos a mão em seu lado direito, ele às vezes gania de dor. Ficamos pensando no que não teria sofrido enquanto era levado pelas águas ao longo da costa. Estávamos maravilhados com sua força e sua sorte. Mas, acima de tudo, felizes por tê-lo de volta.
Na manhã seguinte, subimos o rio. Chegamos pouco depois do por do sol, chamando pelos meninos.
“Era ele?”, gritaram os rapazes.
Então Dorothy mandou que o cachorro latisse. O latido inconfundível atravessou o rio e foi recebido com o maior entusiasmo.
Mais tarde naquela noite fizemos um brinde, com limonada, a Santos. Não foi preciso champanhe porque a alegria já estava borbulhando no ar que respirávamos.

Nenhum comentário: