sexta-feira, maio 25

Um tipo raro de coragem

Fonte : Revista Seleções
Data : Maio de 1998
Autor : Peter Michelmore

Exigiu-se do biólogo preso em um helicóptero descontrolado o impossível: ir para o lado de fora e, de alguma forma, efetuar o conserto.

Dave Zalunardo olhava atentamente para o solo através da bolha transparente do pequeno helicóptero fretado. Abaixo, raios solares e sombras se espalhavam pelas copas de pinheiros e moitas de juníperos.
“Acabo de ver”, falou pelo intercomunicador acoplado ao fone de ouvido. “Sete fêmeas e quatro filhotes.”
Por mais de duas horas, o biólogo de 43 anos, especialista em vida selvagem do Serviço Florestal dos Estados Unidos, e sua colega Meg Éden, 41 anos, do Departamento de Peixes e Vida Selvagem do Oregon, haviam cruzado a floresta em ziguezague, fazendo censo da população de alces. Sentado entre os dois, naquela fria tarde de quinta-feira, 13 de fevereiro de 1997, estava o piloto Philip Stevenson, 43 anos.
Com a mão esquerda, Stevenson apertou com força o comando de passo coletivo das pás do rotor. Sentiu-o frouxo na mão. Moveu-o para cima e para baixo. Não respondia.
Com o coração disparando, Stevenson virou-se. Para seu horror, viu através da bolha que a extremidade superior da haste vertical de conexão de comando, de 50 centímetros, por alguma razão soltara-se do eixo do rotor principal e balançava livremente.
No instante seguinte, Stevenson sentiu que a aeronave se elevava por conta própria. Esforçando-se para parecer calmo, falou ao bocal.
“Temos um problema.”
A haste desconectada era parte vital da conexão que controlava o ângulo, ou passo, das pás do rotor principal. Descontroladas, as pás do rotor assumiram ângulo máximo, e o helicóptero subia fora de controle.
“Vamos continuar a subir até nossa altitude máxima de 3.500 metros acima do nível do mar”, explicou Stevenson. Então, por causa do ar mais rarefeito, o helicóptero automaticamente se nivelaria. “Permaneceremos lá em cima até que se esgote o combustível.”
Éden olhou para o relógio. Haviam decolado às 13h30 e agora já eram quase 15h45. normalmente, o aparelho voava duas horas e meia com o tanque cheio. Com um pouco mais na reserva, calculou ela, ainda lhes restavam cerca de 30 minutos.
Stevenson aumentou a velocidade para quase 100 nós (180km/h) a fim de reduzir o ritmo de subida do helicóptero. O altímetro indicava então cerca de 1.300 metros. Estavam subindo a pelo menos 60 metros por minuto. Ele via apenas uma saída, que exigiria raro ato de coragem. Voltou-se para Zalunardo.
“Você vai ter de ir lá fora e acertar o passo das pás”, disse. “Do contrário, vamos todos morrer.”
Da posição onde se encontravam na cabine apertada, nem Stevenson nem Éden tinham condições de sair.
Zalunardo permaneceu sentado quieto por um instante. Embora houvesse aprendido a tranqüilizar-se no interior de uma aeronave, jamais superara completamente o medo de altura. Mesmo numa plataforma de caça a 4,5 metros do solo, sentia-se perturbado. Estremeceu ao pensar que assim que acabasse o combustível despencariam como uma pedra.
Sem ousar olhar para baixo, Zalunardo soltou o cinto de segurança e fez correr a porta esquerda, deixando entrar o ronco do motor e uma rajada de ar gélido. Com o vento de frente, a temperatura equivalia a cerca de –28°C.
Simples acaso colocara Zalunardo no helicóptero naquele dia. No departamento de Meg Éden ninguém estava disponível para ajudar com o censo dos alces. Ardoroso preservacionista, o homem de barba escura, pai de dois filhos, imediatamente concordou em auxilia-la. “Cuidar da vida selvagem é o que mais gosto de fazer”, dizia aos amigos.
Entre os outros grandes interesses de Zalunardo estava a segurança de aeronaves. Vinte anos antes, tarde da noite, estava a bordo de um avião quando um dos dois motores pegou fogo. Os pilotos, após apagarem as chamas utilizando o extintor de incêndio acoplado, pousaram a salvo, mas o medo de voar permaneceu com Zalunardo.
Agora, em pé na entrada da cabine, Zalunardo enrolou a parte superior do cinto de segurança diversas vezes no pulso esquerdo. Deu um passo pela porta e colocou firmemente os dois pés na cesta de carga de malha metálica de 45 centímetros de largura que se estendia sob a aeronave. Mesmo protegido pelo casaco vermelho de esqui, luvas e o calor do motor, o frio era cortante.
“O que terei de fazer?”, Zalunaro perguntou pelo fone, bem ajustado sobre seu boné de beisebol. O ronco do motor e o alarido das pás do rotor eram quase ensurdecedores.
Stevenson fez um gesto em direção ao braço metálico de conexão do comando – de 20 centímetros de comprimento – que se projetava do eixo do rotor.
“Você precisa empurrar aquele braço para cima”, disse a Zalunardo. Assim o ângulo ascendente dos rotores seria invertido.
Ainda preso ao cinto de segurança, o biólogo esticou-se. Uma rajada de vento arrancou-lhe subitamente os óculos escuros, mandando-os pelos ares. O braço de comando de passo ainda estava além de seu alcance. Com a adrenalina aumentando, agarrou-se ao suporte do motor do helicóptero e soltou a mão do cinto de segurança. Em seguida subiu 20 centímetros sobre a estreita grade do cesto de carga e inclinou-se em direção à aeronave.
Observando através da bolha, Stevenson manobrou fazendo um amplo círculo à direita para manter o peso de Zalunardo inclinado em direção ao helicóptero. Pelo intercomunicador instruiu:
“Empurre lentamente...um pouquinho, só um pouquinho.”
Agarrando-se ao suporte do motor com a mão esquerda, Zalunardo colocou a ponta dos dedos enluvados na base do braço de comando de passo. Suavemente empurrou para cima, mas o pequeno toque foi excessivo. Em fração de segundo, a aeronave caiu violentamente. Lutando para respirar, ele agüentou firme.
Stevenson não podia parar a queda livre do aparelho.
“Para o outro lado!”, gritou o piloto.
Utilizando seu fone, Éden repetiu: “Para o outro lado!”
Zalunardo empurrou para baixo, e as pás do rotor reverteram ao ângulo máximo ascendente. Quase no mesmo instante o helicóptero retomou a subida. Zalunardo respirou profundamente diversas vezes. Ainda mantinha as botas sobre a grade e a mão no suporte.
No interior do helicóptero, Stevenson tremia. Sabia quão perto o biólogo estivera de ter sido arremessado nas pás. Do lado de fora, Zalunardo sentiu que sua lente de contato do olho esquerdo escorregava e logo sua visão de anuviou. A lente se fora. Retirando as luvas para segurar melhor o braço de comando, encaixou-as atrás do suporte do motor. Em segundos o vento as levou.
“Ahhh!”, gritou, agarrando-se ao suporte do motor com as duas mãos.
Na cabine, os olhos de Stevenson estavam fixos na agulha do marcador de combustível. Restava-lhes apenas um oitavo do tanque – cerca de 15 minutos de combustível.
Ainda abraçando o helicóptero, Zalunardo então apanhou a haste de aço de conexão que se soltara do braço de comando e, com a mão direita congelada, ergueu-a, mantendo-a em posição vertical.
Observando-o através da bolha, Éden dirigiu-se ao piloto:
“Philip, ele está tentando reconectar a haste àquele braço.”
Se Zalunardo conseguisse restabelecer a conexão, Stevenson poderia controlar o passo novamente e trazer o helicóptero para o solo. Mas como seria possível Zalunardo efetuar o conserto equilibrando-se do lado de fora de um helicóptero?
“Se eu tivesse um pino para colocar entre os orifícios, poderia funcionar” disse Zalunardo, retornando à cabine.
Éden encontrou um pequeno pino. Zalunardo, apoderou-se dele, as mãos rígidas de frio. Nesse meio tempo, Stevenson via a agulha do altímetro ultrapassar os 2.800 metros.
“Vá para fora, Dave”, insistiu o piloto. “Você tem de faze-lo, meu chapa, ou nós vamos morrer!”
O braço de comando de passo terminava em forma de U, semelhante a um diapasão, com orifícios em ambos os lados. A haste, entretanto, terminava em esfera giratória, como a ponta de uma caneta esferográfica. No meio da esfera havia um orifício.
De alguma forma, o parafuso e a porca de fixação, que mantinham o conjunto preso, soltaram-se gradualmente e caíram. A idéia era conseguir alinhar os orifícios, transpondo-os com o pino.
Momentos depois, com os pés se equilibrando no cesto de carga, Zalunardo encaixou a haste no braço de comando com a mão esquerda e fincou o pino com a direita. A mão, porém, oscilou. Errou o alvo.
Dez vezes ele investiu com o pino. Vinte. Em vão. Cada vez que o biólogo tentava alinhar os orifícios, a esfera girava.
Bem lá no fundo, sentia-se furioso pela visão embaçada e falta de jeito. De repente, o helicóptero elevou-se no meio das nuvens e Zalunardo ficou envolto em neblina.
“Você tem de faze-lo, companheiro”, disse Stevenson pelo fone.
Finalmente Zalunardo viu os orifícios alinhados e fincou. Dessa vez o furador passou até o fim.
O piloto sentiu então a súbita tensão no comando de coletivo de passo e empurrou-o para baixo bem devagar. Imediatamente as pás do rotor inverteram a inclinação. O helicóptero começou a perder altitude.
“Você conseguiu, Dave!” gritou Éden.
Lutando contra a ânsia de acelerar, Stevenson manteve a descida gradual. Sabia que Zalunardo tinha de manter pressão contínua no furador.
Qualquer movimento súbito deslocaria o biólogo e o mandaria pelos ares. Éden prendeu a respiração.
Do lado de fora, Zalunardo sentia a cabeça pender de tanto esforço e fadiga. “Agüente”, disse a si mesmo.
Stevenson conduziu o helicóptero de volta para um pouso suave sobre a neve de oito centímetros de espessura. Eram 16h10, segundo o relógio de Éden – 25 minutos depois que Zalunardo saíra da cabine pela primeira vez. Vencido pela exaustão, Zalunardo esparramou-se ao lado do piloto. Olhando para ele, Stevenson pensava sobre a rara coragem que fora necessária para salva-los.
“Você é o meu herói, Dave”, disse, em voz baixa.
Stevenson encontrou num compartimento do motor o parafuso desaparecido e fez o conserto provisório. Em seguida voou até um posto de abastecimento – restavam apenas 11 litros de combustível.
Mais tarde, Éden levou Zalunardo para casa.
“Seu pai salvou três vidas hoje”, contou Éden a Michael, de 10 anos.
Quando ouviu a história, o garoto foi até o quarto e retornou com a medalha de ouro que ganhara no campeonato de natação na escola. Era o seu mais precioso bem. Colocando a medalha em torno do pescoço de Dave Zalunardo, o garoto disse:
“Isto é seu, papai!”

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