sexta-feira, maio 11

O que faz Alain Minoun correr?

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1971
Autor : Gilles Lambert

Aos 50 anos, esse ex-campeão olímpico ainda corre 25 quilômetros por dia e derrota adversários que poderiam ser seus filhos.

Na última volta da prova dos 5.000 metros o corredor grisalho, com o rosto contorcido pelo esforço, de repente separou-se do resto e, numa arrancada final, Alain Mimoun conquistou um novo título: campeão do Nièvre.
O título não era grande coisa para um dos atletas mais famosos da Europa, quatro vezes finalista olímpico e 32 vezes campeão da França. Mas essa corrida regional sem importância realizou-se no verão de 1970, e Mimoun acabara de completar 50 anos. Qualquer um dos adversários tinha idade de ser seu filho. Mas ele não estava somente correndo contra os outros participantes da prova: estava lutando contra o mito de que um fundista está liquidado aos 30 anos.
Moreno, de aspecto franzino, o indomável Mimoun não é apenas um campeão – é um fenômeno. O segredo de suas atuações espantosas é muito simples: ele jamais deixa de tentar. As dificuldades nunca o assustaram; já enfrentou doenças, pobreza, preconceito racial, e mesmo no mais profundo desespero e desânimo, ele sempre lutou.
Origem humilde. Nada no meio em que vivia Mimoun fazia prever uma carreira brilhante. Nasceu numa modesta família muçulmana na região de Telagh, na província de Oran, na Argélia. O pai era um camponês que se atrelava ao arado para lavrar seu punhado de terra, porque a família era pobre demais para comprar uma mula. A escola mais próxima ficava a 10 quilômetros e o pequeno O’Kasha – o nome dele ainda não era Alain – corria essa distância ida e volta, todo dia. Aos 18 anos, alistou-se no regimento Rifles Argelinos e, quando estourou a Segunda Guerra Mundial, O’Kasha Mimoun, então já Alain Mimoun, apresentou-se como voluntário e foi com sua unidade para Aulnoy, junto à fronteira com a Bélgica.
A retirada do Exército Francês deixou-o em Vaucresson, perto de Paris. Foi ali que ele pela primeira vez pisou numa verdadeira pista de atletismo. Sua primeira corrida solitária deu-lhe um prazer tão grande que tiveram de obriga-lo a parar de pois de 36 voltas... 18 quilômetros! Mas sua verdadeira estréia foi em Bourg-em-Bresse, onde sua unidade ficou estacionada depois do armistício. Diante de 1.000 espectadores, Mimoun, simples soldado que corria descalço e não tinha nem autorização para competir, derrotou o campeão do Departamento de Ain nos 1.500 metros. Depois, sem sequer estar muito ofegante, pediu permissão para correr a prova dos 5.000 metros. Mas a primeira fase da sua carreira de atleta logo terminou, quando os vitoriosos alemães ordenaram que todas as tropas africanas retornassem às suas terras.
Ferido em combate. Em 1942, logo que as forças norte-americanas desembarcaram no norte da África, Mimoun tornou a vestir o uniforme, no posto de cabo. Dois anos depois, sua unidade estava empenhada na expulsão dos alemães entrincheirados em Monte Cassino, na Itália Central. No 37º dia da batalha, horas antes dos aliados romperem as defesas alemães, Mimoun viu um jovem oficial francês dirigir seu jipe para um trecho da estrada que estava sendo varrida por fogo inimigo. Quando Mimoun saltou de seu abrigo para avisa-lo, um morteiro explodiu quase aos seus pés.
Sua perna esquerda ficou crivada de estilhaços. Um cirurgião militar retirou a maior parte, mas até hoje, 27 anos depois, farpas de metal ainda se movem sob a sua pele. Isso explica as dores terríveis que Mimoun muitas vezes sente na perna esquerda, tendo inclusive crises de ciática que chegam a paralisa-lo.
Mimoun mal acabara de voltar a si da anestesia, quando começou a pedir muletas. O cirurgião lhe disse: “Se você treinar sério – e tiver muita sorte – poderá correr novamente dentro de três anos.” Mas apenas seis meses depois, graças à sua teimosa dedicação a complexos exercícios terapêuticos, Mimoun estava correndo quase tão bem quanto antes.
Pobreza e preconceitos. Quando terminou a guerra, Mimoun tinha vencido a enfermidade, mas ainda lhe restava um inimigo poderoso: a pobreza. Sem conseguir emprego em Argel, sem nenhuma oportunidade de mostrar o que poderia fazer como atleta, gastou o resto do seu dinheiro numa passagem para Paris. Ali, num triste apartamento de duas peças em Montreuil, com paredes úmidas e onde nunca brilhava a luz do dia, seu peso caiu para 48 quilos.
Naquele ano, 1946, assim mesmo ele inscreveu-se na prova de 5.000 metros do campeonato nacional realizado no Estádio de Colombes, perto de Paris. Completamente desconhecido, praticamente não tinha podido treinar. Subnutrido, na véspera da corrida desmaiara em seu apartamento. Mas não interessa. Mimoun derrotou um bando de veteranos, embora perdendo por fração de segundo para Rafael Pujazon, super-estrela da França na época. Os especialistas ficaram abismados – o tempo de Mimoun fora de 15 minutos e 13 segundos, entre os melhores da França naquele ano.
Foi o suficiente para levar o presidente do Racing Club da França a contratar Mimoun para garçom do restaurante do clube, no Bois de Boulogne. Levantando-se às cinco da manhã, Mimoun apanhava o primeiro metrô e depois corria sozinho no Bois, na Porte Dauphine, levando na mão uma bolsa com suas roupas. No fim do ano já era campeão francês dos 5.000 e 10.000 metros. Mas ainda não tinha dinheiro para pagar um massagista quando a perna esquerda doía e, o que era ainda mais irritante, continuava a não ter direito de usar o chuveiro no Racing Club depois dos treinos.
Mimoun começou a perceber que tinha de enfrentar outro obstáculo, ainda mais implacável do que a pobreza: o preconceito. Nos Jogos Olímpicos de 1948, em Londres, não se deixou de frisar, penosamente para Mimoun, que era o único atleta de origem argelina na equipe francesa. Na manhã da prova dos 10.000 metros, o massagista da equipe recusou-se a atende-lo. “Estou aqui para cuidar de campeões. Não vou perder tempo com você.”
Durante a corrida, o calor era tão forte que os corredores tombavam um a um. Emil Zatopek, o tcheco chamado “A locomotiva”, dava o ritmo da prova, mas os espectadores ficaram eletrizados ao verem uma figurinha franzina, de uniforme azul e branco, corajosamente presa aos seus calcanhares. Mimoun tirou o 2º lugar, dando à França sua primeira medalha de prata nas provas de atletismo. Enquanto o estádio vibrava ao som da Marselhesa, ele chorava de emoção.
Rivais amigos. Em 1948 conseguiu um emprego de contínuo na Secretaria do Estado de Assuntos Argelinos. Seu horário permitia-lhe treinar com regularidade no Instituto Nacional de Esportes, em Vincennes. Embora ainda não lhe tivessem designado um treinador, ele não se queixava. Afinal, depois de uma luta furiosa, não conquistara pelos menos o direito a um chuveiro?
Nos Jogos Olímpicos de 1952, em Helsinqui, as provas de 5.000 e 10.000 metros mais uma vez reduziram-se a uma competição entre dois rivais amigos. Zatopek tornou a vencer as duas corridas por diferenças mínimas, com Mimoun conquistando as duas medalhas de prata. O destino parecia ter decidido que o cabo argelino jamais haveria de derrotar o major galopante dos Montes Cárpatos.
Nos dois anos seguintes aos jogos de Helsinqui, o moral e o estado físico de Mimoun decaíram visivelmente. Ele teve uma violenta crise de ciática; 10 meses de invalidez acrescentaram nove terríveis quilos à sua constituição franzina. Havia perdido sua flexibilidade, o fôlego, o ímpeto. Então um amigo levou-o a Lisieux, à Capela de Santa Teresa do Menino Jesus. Embora nunca tivesse renunciado ao Islã, Mimoun rezou fervorosamente, colocando-se, como dizia, “sob a proteção da santa”. Uma semana depois sua ciática desaparecia.
Aos 34 anos, no entanto, Mimoun não passava de um “ex-atleta”; ninguém esperava vê-lo numa terceira Olimpíada. Só ele. Sozinho, no inverno de 1955, ele recomeçou a treinar. Tinha dado um balanço: nos Jogos de Melbourne, em 1956, poderia haver uma oportunidade de enfrentar Zatopek pela última vez na Maratona... e vence-lo. Confiou seu plano a uma pessoa apenas: Germaine Roubenne, a francezinha de Tulle com que acabara de casar-se.
A batalha de Maratona. Quando saltou do avião em Melbourne, Mimoun não tinha certeza alguma de estar preparado. Embora nervoso pelo fato de sua mulher estar esperando o primeiro filho, todo o seu ser se concentrava num objetivo: uma vitória sobre Zatopek na Maratona, e a medalha de ouro.
Na tarde da prova, o sol estava escaldante. Não havia uma única sombra ao longo dos 42 quilômetros do percurso, que serpeava pro entre duas grossas cercas de espectadores.
Mimoun sabia que, aos 36 anos, tinha de dosar bem a força de suas pernas. No 15º quilômetro da corrida, ele estava em 2º lugar, entre 13 concorrentes. Na metade do caminho, Mimoun tomou a dianteira.
No 30º quilômetro, continuava à frente. De repente, sentiu o coração disparar, o sangue latejando nas têmporas. Ondas de enjôo o invadiram: era o temido momento de fraqueza. Sua passada diminuiu. Ele recorreu a cada grama de energia de que dispunha. A despeito de suas súplicas a Santa Teresa, as pernas pesavam-lhe como chumbo. De repente, ouviu vozes francesas entoando a Marselhesa: franceses dos lados da pista o haviam reconhecido.
“Pensei na Itália”, Mimoun contaria mais tarde. “Nos camaradas que tinham sofrido e agüentado firme. A França me dera a Cruz de Guerra – não conseguiria eu ganhar uma medalha de ouro para o meu país? A Maratona é uma batalha. Ali estava eu, um soldado, como estivera em Monte Cassino. Tinha de vencer.”
Mimoun voltou à língua de seu país; em árabe exortou-se: “Vamos, O’Kasha! Mais depressa! O’Kasha vagabundo...” Aos poucos, seu coração voltou ao normal, suas pernas pareciam leves e fortes. Ele avançou, aumentando a dianteira. Os últimos cinco quilômetros seriam os mais duros, mas percebeu que havia ganho quando avistou os muros cor de rosa do estádio. Alguém agitou uma bandeira tricolor perto dele. Momentos depois, ele era o campeão da Maratona Olímpica; tinha corrido os 42,195 quilômetros em duas horas e 25 minutos (Zatopek, vítima do calor, terminou 40 minutos depois de Mimoun).
Cinco voltas ao mundo. As Olimpíadas de Melbourne representaram o ponto alto da carreira de Mimoun. Ele tornou-se herói nacional. Até então tinha sido barrado do modesto emprego de monitor; agora um cargo mais glorioso – e mais bem pago – foi criado para ele pelo presidente René Coty: conselheiro nacional de esportes. Foi também nomeado capitão da Equipe Olímpica Francesa. No entanto, foi naquele momento de glória que ocorreu um dos incidentes mais dolorosos de sua vida.
A guerra argelina estava no auge. O’Kasha Alain vivia dilacerado por duas lealdades em conflito. Ele nunca se esquecera dos djebels de sua infância, mas seu amor pela França era igualmente forte. Quando terminou a guerra, os argelinos podiam optar entre a cidadania francesa ou argelina: Mimoun fez a única escolha possível. Sua carreira, seus amigos, sua família estavam na França: ele decidiu-se pela cidadania francesa. Outrora, os franceses lhe reprovavam sua origem argelina: agora os argelinos condenavam sua atitude pró francesa. Somente sua sinceridade o tornou imune ao terrorismo dos rebeldes.
Aqueles tempos de sofrimento estão esquecidos. Mimoun mora com a família no subúrbio de Champigny, perto de Paris, mas há vários anos ele vem dedicando a maior parte de seu tempo a um empreendimento que ele mesmo criou em Bugeat, no Correze, terra natal de sua mulher: um grande centro de treinamento, construído numa altitude de 700 metros. Para instala-lo, recebeu várias verbas do governo, entre as quais 100.000 francos do Ministério da Juventude e Esportes. Hoje, o centro está plenamente equipado, com arquibancadas, enfermaria e uma pista olímpica prolongada por um circuito de 15 quilômetros através da floresta, o que permite o treinamento tanto no plano quanto em terreno acidentado. Um quilômetro e meio do circuito acompanha o Vézere, um dos rios mais lindos da França.
É ali que Alain Mimoun treina os futuros campeões. Nos fins de semana ele também recebe homens de negócios cansados, gente de cidade que vai lá, em busca de uma lição de saúde e de coragem. Mas Alain Momoun não é pessoa de ficar à margem da pista, de cronômetro na mão, vendo os outros correrem. Sua passada continua ágil e resoluta como sempre. Não é por cortesia que lhe dão um lugar na equipe nacional, mas porque ele pode marcar pontos e é um eficiente capitão.
“Às vezes eu esqueço a minha idade”, confessa ele, “mas aos 50 anos corro os 5.000 no mesmo tempo – 15 minutos e 15 segundos – que fiz quando fui selecionado para uma equipe nacional há 24 anos.”
Perguntei a Mimoun, que em um quarto de século já correu quase 200.000 quilômetros, mais de cinco vezes a volta ao mundo, quais eram seus planos par o futuro. Sua resposta foi simples: “Continuar.”

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