quinta-feira, maio 3

Milagre no deserto

Fonte : Revista Seleções
Data : Mario de 1982
Autor : Alan Levy

Na orla do Saara, no meio do calor, insetos e privações, os prisioneiros de guerra alemães fundaram uma “universidade”.

A linha férrea terminava no Chott ech Chergui, lago salgado seco no deserto da Argélia ocidental. Lá, em junho de 1943, 30 oficiais alemães foram levados de um trem para um caminhão que os transportou pelo deserto árido até Géryville, acampamento fortificado da legião Estrangeira francesa, onde já estavam mais de 400 oficiais alemães, como prisioneiros de guerra.
Entre os da última leva, encontrava-se o tenente Karl Ganzhorn, de 22 anos. Aguardando a vez de ser interrogado e revistado ( os prisioneiros eram destituídos de tudo menos as calças e a camisa, um garfo e uma colher), Ganzhorn não podia saber que passaria quatro anos em Géryville, atormentado pelos insetos, no meio do calor do deserto, alternando com o frio da noite, à beira da fome... nem que aquele seria um dos períodos mais decisivos e produtivos da sua vida.
O recinto, cercado com arame farpado, era do tamanho de um campo de futebol, com duas dezenas de barracas, beliches de madeira, com colchões de palha, eram os únicos móveis dessas barracas.

Quatro faculdades. Os prisioneiros mais graduados receberam os novos, puseram-nos a par da rotina e ofereceram-se para dar cursos de instrução, a fim de evitar o tédio. Ganzhorn inscreveu-se nos cursos de inglês, latim, espanhol, francês e italiano, ministrados por dois professores de ginásio que, juntos, sabiam mais de uma dúzia de línguas.
As aulas de línguas, porém, não eram suficientes para o comandante do batalhão de Ganzhorn, o major Paul Pommé, e alguns outros oficiais, que, como ele, eram veteranos da Primeira Guerra Mundial. Esses oficiais experientes diziam sempre aos mais novos que depois da guerra haveria uma grande procura de jovens instruídos, para ajudarem a reconstruir a pátria. Se não podiam sair do acampamento para freqüentar uma instituição de ensino superior, então teriam simplesmente de instalar uma dentro do acampamento. Os captores toleraram a idéia, pois isso ocuparia os prisioneiros, dando-lhes menos tempo para planejar fugas e revoltas.
Assim, algumas semanas depois da chegada de Ganzhorn, foi fundada uma “universidade de campo”, sob a direção do Dr. Hans Burgers, major, que na vida privada fora magistrado na cidade de Colônia. Burgers e seus colegas acadêmicos aproveitaram todas as habilidades dos prisioneiros. Havia historiadores, advogados, matemáticos, cientistas, arquitetos e, claro, lingüistas; a variedade de conhecimentos ia da física atômica ao sânscrito. Até mesmo diplomados do curso secundário, como Ganzhorn, tinham alguma habilidade especial (na eletrônica ou na música, por exemplo) que podiam transmitir aos outros.
Foram organizados quatro faculdades. Ganzhorn, que tinha querido estudar engenharia eletrônica, matriculou-se na ciências naturais, para se concentrar na física e matemática. Quando progrediu nos estudos, foi convidado a lecionar matemática e eletrônica.
Outro estudante, Franz Adis, tinha feito em 1942 os exames de equiparação de diploma de ginásio quando estava internado, ferido, num hospital de Tubingen; nessa ocasião disserem-lhe que ele tinha queda para advocacia. Entrou então para a faculdade de direito de Géryville e estudou direito civil e direito administrativo público com quatro advogados, inclusive o Dr. Ernst Leiss, que tinha sido juiz regional.
Outro prisioneiro, Kurt Mahlstedt, percebeu que podia realizar o seu sonho quase abandonado de ser arquiteto, de modo que se matriculou na faculdade de desenho e estudou com Karl Dahms, arquiteto da Saxônia. Os alunos de Dahms faziam réguas e esquadros de lascas de madeira, e mesas e cadeiras para as quatro faculdades.

Péssima comida. Enquanto uns prisioneiros se matricularam na faculdade de medicina, a fim de se prepararem para clínicos gerais e dentistas, outros escolheram a quinta faculdade, não oficial – para alunos que não queriam especializar-se. Karl-Heinz Merzenich foi um destes. Aprendeu a desenhar uma janela, estudou harmonia e contraponto, fez um curso de ciências políticas e outro de religiões comparadas.
Os estudantes de Géryville tinham de se conformar com os escassos materiais existentes. Usavam partes dos muros de pedra do campo; como quadros-negros, e, como giz, pedaços de tijolos ou madeira carbonizada. Para fazer cadernos, surrupiavam papel de embrulhos e papel higiênico e caixas de cigarros e de papelão. As cartas que às vezes recebiam de casa eram duplamente bem-vindas porque, para fins de censura, vinham escritas só de um lado do papel; o outro lado tornava-se uma folha para um caderno improvisado. Então, quando o conhecimento era memorizado, uma borracha levada para o campo clandestinamente por Ganzhorn circulava entre eles. Desse modo, o papel era “reciclado”. Os diagramas técnicos eram traçados na areia com paus.
Rabiscando e surrupiando, os estudantes trabalhavam muito. O dia escolar começava logo depois da chamada da manhã, às 8:30. as aulas da manhã duravam até a hora da única “regalia” diária do campo, uma caneca de vinho argelino ordinário, servida às 11:30, seguida do almoço: um guisado ralo de que ninguém gostava, mas que nunca era suficiente para qualquer deles. Variava quatro vezes por ano (do “tempo do feijão” ao “tempo do tomate” ao “tempo da abóbora” e ao “tempo da couve rábano”, segundo a mudança das safras), mas a refeição tinha sempre o mesmo gosto, se bem que, aos domingos, o guisado fosse acrescido de carne de camelo ou carneiro. (O resto do menu do dia consistia em café da manhã feito de caroços de tâmaras queimados e 150g de pão seco).
Depois do almoço, o sol a pino ardia impiedosamente, e, como era quase impossível estudar, os homens em geral faziam uma sesta nas tendas. As aulas recomeçavam às 15:30 e duravam até a chamada das 18:00. embora os jogos de cartas e festinhas ocasionais, como aniversários, fossem tolerados das 18:00 às 21:00, o barulho era verboten (proibido) depois disso, para não atrapalhar aqueles que quisessem estudar.

Chegam os livros. Além da comida, a maior carência da Universidade do Deserto era de livros didáticos. Em fins de 1943, inspetores da Cruz Vermelha Internacional visitaram o acampamento, junto com um representante da Associação Cristã de Moços. Disseram-lhes que, além do “alimento biológico”, a necessidade mais urgente dos prisioneiros de guerra era o ‘alimento intelectual”.
Um dia, em 1944, um sonho se realizou. Caminhões franceses fizeram entrega de um carregamento totalmente inesperado, da distante Amerika: mais de 1.000 livros diversos, em alemão, os textos básicos para uma biblioteca universitária. Impressionado com a sede de instrução dos prisioneiros de guerra, o visitante da ACM tinha colecionado livros de bibliotecas norte-americanas, mandara copiá-los offset e encaderna-los, e depois os despachara para aqueles prisioneiros inimigos necessitados.
“O efeito geral desses livros sobre nós foi milagroso”, recorda-se Karl Ganzhorn. “Ter na mão alguma coisa para ler! E no meio do deserto, onde não havia nada!”
Foi então instaurado um novo gabarito de estudos, mais elevado. Nunca havia menos de 10 homens partilhando um livro ou esperando por ele. Algumas semanas depois, chegou um carregamento semelhante de livros em alemão enviados pela Cruz Vermelha, via Espanha. Esses gestos generosos da ACM norte-americana e da Cruz Vermelha Internacional tão cedo não foram esquecidos.
Num outro dia ainda do mesmo ano da graça de 1944, um caminhão descarregou um trombone, dois saxofones, dois trompetes, dois clarinetes e vários instrumentos de percussão. Antes, haviam chegado quatro instrumentos estragados, que foram consertados. Agora que a universidade tinha uma banda de 12 instrumentos (sendo de dois a três homens treinados para cada instrumento), o tenente Wolfgang Hofman, que em criança foram um prodígio no violino, encheu-se de ambições. Compôs um quinteto para dois violinos, viola, violoncelo e flauta, e escreveu duas óperas curtas, uma das quais teve uma brilhante temporada de 10 apresentações. Em certa noite, quando, na 20ª vez, era chamado à cena o compositor Hofman, o mais duro dos carcereiros franceses abraçou-o, beijou-o nas faces e declarou: “A música é internacional!”
Hitler morreu, a guerra terminou em todo o mundo, “os rapazes voltaram para casa”, mas em Géryville ainda não havia sinais de repatriação. Foi uma ocasião terrível para os prisioneiros. Diz Ganzhorn: “Somente os nossos estudos nos impediam de achar que nunca havíamos de sair de Géryville.” Merzenich acrescenta que a Universidade do Deserto lhe salvou a vida. “É típico do homem que lê escreva uma ópera ou crie uma universidade do nada, no meio de coisa nenhuma. Desde que se fez surgir algo, isso não pode ser obliterado.”
Por fim, em junho de 1947, o navio de passageiros francês Pasteur transportou os internados de Géryville, do Norte da África para Marselha.
Karl Ganzhorn voltou para sua cidade natal de Sindelfingen e encontrou a família viva, a casa intacta. Candidatou-se imediatamente a três universidades; quando se resolveu por Stuttgart, disseram-lhe que ele teria de passar seis semanas ajudando a reconstruir a universidade.
Numa entrevista com o diretor do Departamento de Matemática, Ganzhorn falou da sua experiência no deserto e mostrou-lhe seus cadernos de papel de embrulho, cuidadosamente guardados. O diretor ficou tão impressionado que procurou as provas do exame de matemática da primavera anterior para candidatos ao grau de bacharel em ciências, entregou-as a Ganzhorn e disse que as trouxesse de volta no dia seguinte.
O diretor então confirmou que, naquele acampamento no Saara, Ganzhorn aprendera o suficiente para poder obter um diploma. Seis meses depois, tendo atendido a outros requisitos da universidade, Ganzhorn conseguiu um diploma em física.
Diante dos resultados dos exames de admissão de Ganzhorn, a universidade dele examinou mais um grupo dos seus antigos companheiros de acampamento, e as notas foram semelhantes. “Um grupo como esse”, comentou um dos professores, “só aparece uma vez na vida numa universidade. Nunca antes, nem depois, vi tanta intensidade.” Em outras regiões da Alemanha, professores exprimiram um entusiasmo igual diante dos diplomados de Géryville.
Hoje a lista dos ex-alunos de Géryville parece um Quem é quem na Alemanha, pois praticamente todos os “diplomados” da Universidade do Deserto se deram bem. O professor Wolfgang Hofman é maestro da famosa Kurpfalziches Kammerorchester, em Mannheim. Karl Ganzhorn é diretor da IBM na Alemanha. Outros são executivos de companhias, dentistas, escritores, professores, prefeitos, juízes.
“O sucesso deles”, diz Kar-Heins Merzenich, “é o produto da energia e força de vontade que levaram para o acampamento e conservaram lá, e depois trouxeram consigo, para sempre. Foram firmes, lá e naquela ocasião; são homens sólidos aqui e hoje, devido a isso.”

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