segunda-feira, abril 30

Meu tipo inesquecível - Manuel de Falla

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1974
Autor : Ernesto Halffter

Com sua música, este dedicado compositor, uma das maiores personalidades artísticas da Espanha, revelou ao mundo o espírito buliçoso de sua terra.

Em seu jardim de Granada, com o rosto ascético parecendo esculpido em mármore, Manuel de Falla estudava a partitura que eu acabara de submeter-lhe. Prendi a respiração, rezando para que ele gostasse do meu trabalho.
“Isto está bom, Ernesto”, disse finalmente o grande compositor. “Se você acha que é o melhor que pode fazer, não há mais nada a dizer. Mas se acha que pode melhora-las, então precisa trabalhar mais. Quando um trabalho pode ser melhorado é porque ainda não está terminado.”
Era esse o lema do homem que considero a maior personalidade artística da Espanha, desde Goya.
Ao piano, ele trabalhava incansavelmente numa composição. Ficava sentado, ereto, sempre impecavelmente vestido, como se estivesse num concerto, enquanto experimentava notas, acordes e combinações de sons para o efeito exato que buscava.
Às vezes, labutava durante horas, até que as pontas dos dedos rachavam, e começavam a sangrar. Então, sua irmã, Maria Del Carmen, corria para ele com ataduras, repreendendo-o por não se cuidar. Não se tendo casado, Falla contava com ela para a administração da casa.

Encontro com o maestro. Fora do teclado, o severo disciplinador era um homem tímido, de fala mansa, excessivamente polido, muito preocupado com os sentimentos dos outros. Recordo-me de uma noite em que ele estava nos bastidores, num Festival Internacional de Música, em Siena. A primeira metade do concerto, dedicada ás obras de outro compositor, fora um desastre. Falla fechou os olhos, para não ver o sofrimento do colega, que estava sentado a seu lado.
A segunda metade do concerto, dedicada a obras de Falla, acabou com a platéia de pé gritando Bravo! Bravo! O gerente correu para junto de Falla.
“Maestro, é preciso subir ao palco. Eles querem vê-lo!”
Falla sacudiu a cabeça.
“Absolutamente”, respondeu. “Não quero que meu nome sirva de bandeira de ataque a um colega.” E saiu do salão de concertos sem se mostrar à platéia.
Quando conheci Manuel de Falla, ele tinha 45 anos, e já era mundialmente famoso. Eu tinha apenas 16, e via nele uma figura olímpica. Tinha tanta esperança de conhece-lo quanto de ser chamado à presença do Papa.
Mas eu tinha composto algumas peças curtas que foram tocadas em Madrid. Elas foram ouvidas por Adolfo Salazar, crítico musical de El Sol e amigo de minha família. Uma noite, Salazar chegou apressado em nossa casa, e mostrou-me um exemplar de uma de minhas composições, com a observação escrita na margem: ‘Um belo talento. Manuel de Falla.”
“O maestro veio a Madrid ouvir um recital das obras dele”, disse Salazar. “Tomei a liberdade de mandar-lhe esta peça sua, e ele quer conhece-lo.”
Quando fui visitar Falla no hotel, entrei tremendo, mas ele me recebeu com a mesma polidez e cordialidade que teria com alguém de sua idade. Indicou-me uma cadeira e disse: “Fale-me de você.”
Falei-lhe de meus planos e do ceticismo de meus pais a respeito de meu futuro musical. Quando acabei, Falla disse:
“O que vi de sua obra me impressionou, mas você precisa estudar. Mais tarde me comunico com você.”

Um fagote francês. Semanas depois, eu subi as ladeiras de Granada, procurando o endereço de Falla, em Antequerela Alta. A residência de Falla era modesta e pequena, no meio de um jardim cercado. Falla estava sentado entre um cipreste alto e uma acácia, seu lugar favorito, trabalhando numa partitura. Concluídos os cumprimentos, ele deu-me as instruções: “Esteja aqui toda manhã às nove. Suas refeições serão feitas conosco, e você vai estudar todo dia até meia-noite.”
“Das nove da manhã até meia-noite, maestro?”, perguntei assustado.
“Este é o meu horário. Sou rigoroso na observância de horários. Se quiser vencer, precisa trabalhar o tempo todo.”
Como ele me prevenira, nosso programa diário era rigoroso, e raramente mudava. Quando eu chegava de manhã, tinha de “analisar” as obras de grandes compositores. Eu ocupava uma mesinha de canto, na mesma sala onde ficava o seu piano. Maria Del Carmen servia-me café. Falla só aparecia depois de barbeado, vestido e de café tomado. Nunca soube que ele dissesse uma palavra a ninguém, nem mesmo à irmã, antes do café da manhã.
Em seguida, caminhávamos juntos no parque da Alhambra. Em meia hora de passeio, eu lhe comunicava os resultados de minha última análise matutina. A figura esbelta e aristocrática estava sempre ereta, os olhos brilhantes e atentos. Quando concordava com minhas conclusões, acenava com a cabeça. Se achasse que eu não tinha aprofundado devidamente minha análise, digamos, de uma sonata de Beethoven, sugeria que examinasse de novo este ou aquele trecho.
A cada dia que passava, aumentava o meu respeito por seus conhecimentos das leis imutáveis que regem a composição, do papel que cada instrumento pode desempenhar para enriquecer o brilho da orquestra. Um dia, comentando uma passagem difícil que eu escrevera para o fagote, em minha sinfonietta, Falla disse: “Você ficará desapontado, porque só o fagote francês pode tocar a parte como você a vê. O fagote espanhol tem capacidade diferente.”
Cada nota e cada instrução musical que ele escreveu tem uma razão lógica e estudada, e esse princípio ele procurou transmitir às pessoas de minha geração: conhecer o ofício com perfeição.

De Cádiz a Paris. Manuel Maria de Falla y Mathieu nasceu em Cádiz, em 1876. Seu primeiro professor de piano foi sua mãe, e, desde a mais tenra infância, demonstrou tal talento que a família resolveu manda-lo a Madrid, para estudar no Conservatório. Lá, o compositor e musicólogo Felipe Pedrell revelou-lhe a beleza e a força da música folclórica espanhola – e Falla captou como ninguém a essência dessa música. Tudo que ele escreveu está embebido do espírito que caracteriza a verdadeira alma do povo espanhol.
Em 1904, quando ele tinha 28 anos, a Real Academia de Belas Artes abriu concurso para “o melhor drama lírico apresentado por um compositor espanhol”. Falla trabalhou noite e dia, compondo para um libreto chamado La Vida Breve, escrito por seu amigo Carlos Fernandez Shaw. Concluída em apenas um ano, a ópera ganhou o concurso. Como se essa vitória não bastasse, pouco depois ele venceu o concurso nacional Ortiz y Cussé para o melhor pianista jovem da Espanha.
A rápida fama granjeou-lhe diversos alunos em Madrid e, dois anos depois, já tinha economizado o suficiente para realizar o sonho de todo artista da época: visitar Paris. A “visita” de Falla durou sete anos! Durante esse período, estimulado e inspirado por homens que estavam compondo muitas das obras primas da época (Debussy, Dukas, Albeniz, Ravel), escreveu óperas, balés, peças orquestrais, música de câmara. Para tornar a vida ainda mais empolgante, sua fama de pianista concertista emparelhava com seu sucesso como compositor. Além disso, teve o prazer de ver La Vida Breve montada duas vezes no mesmo ano – em Nice e na Ópera Comique de Paris.
Mas o sucesso não o estragou. Para ele, o importante era aprender, trabalhar, criar. Anos mais tarde, ainda consideraria os anos passados em Paris como a melhor educação de sua vida.

Ao piano. Em 1914, quando a França entrou na Primeira Guerra Mundial, Falla regressou à Espanha. Seus amigos de Paris iam vê-lo freqüentemente – e o pequeno Pleyel de armário ressoava sob os dedos dos maiores virtuoses do mundo.
Uma tarde, Arthur Rubistein sentou-se ao piano, e correu os dedos pelo teclado, displicentemente. Iria dar um recital em Granada, nessa noite. De repente, virou-se para o maestro: “Sei que você está pretendendo ir a meu concerto. Quero que prometa sair antes da segunda parte.”
Falla não entendeu, e disse: “Mas você vai dedicar a segunda parte à minha Dança do Fogo!”
“Exatamente. Mas vou tomar algumas liberdades com ela, e você pode não gostar do resultado.”
Rubistein dissera uma verdade profunda. Falla achava, e até defendia o princípio de que todo artista deve ter liberdade de expressar suas emoções, mas gostava de ouvir sua música tocada como ele a havia ouvido originalmente no seu íntimo, e doía-lhe ouvi-la com modificações.
Os dois gigantes da música se fitarem em silêncio, por um longo momento, cada qual respeitando e compreendendo o outro. Por fim Falla cedeu. “Eu saio”, disse.
O maestro gostaria de passar o tempo todo na tranqüilidade de sua casa e de seu jardim, mas era constantemente convidado a reger orquestras e dar recitais de suas obras, em Festivais Falla, na Espanha inteira, e também em Londres, Paris, Viena e muitas outras cidades. Era ainda procurado com pedidos de composições. Entre 1914 e 1921, compôs El Amor Brujo, Fantasia Bética, El Sombreo de Três Picos, Noches em los Jardines de España, El retablo de Maese Pedro. Foi um período de grande produtividade. Trabalhava no piano diariamente, até tarde da noite.
Mas sempre descansava no domingo à tarde. Era quando um de seus amigos mais chegados, o jovem poeta espanhol Garcia Lorca, ia ao jardim, para um copo de vinho e uma ou duas horas de conversa. Falavam de arte, poesia, política, e eu ficava assombrado com os conhecimentos de Falla.

Dois golpes arrasadores. Em 1926, Falla descobriu o poema épico de Jacinto Verdaguer L’Atlántida – a história do continente perdido, da descoberta de um novo mundo por Colombo, de tudo o que aconteceu antes e depois desse fato histórico. Jamais esquecerei o brilho de seus olhos negros quando exclamou: “Ernesto, achei!”, e bateu no livro aberto sobre a toalha vermelha. “L’Atlántida! Vou compô-la!”
O sonho longamente acalentado de compor a obra prima de sua vida, finalmente ia se realizar. Eu nunca o vira tão entusiasmado. Segundo Falla, o grandioso projeto envolveria uma orquestra completa e um conjunto de câmara, um amplo complemento de solistas vocais e dois coros, um de adultos e outro de crianças.*
Uma vez mergulhado em L’Atlántida, seu mais importante empreendimento, Manuel de Falla ficou mais feliz do que nunca. Mas sua felicidade foi abalada por dois golpes terríveis. O primeiro foi a dolorosa doença, posteriormente diagnosticada como tuberculose óssea, que o deixaria fisicamente incapacitado para o resto da vida. Não podia subir sozinho para o quarto, nem descer de manhã. Mesmo assim, prosseguiu trabalhando, subindo e descendo com a ajuda de outros.
O segundo golpe, que por pouco não o destruiu, foi a Guerra Civil espanhola. A essa altura, Falla já estava andando de novo. Passeava mancando, pelo jardim, apoiado numa bengala, estremecendo cada vez que ouvia tiros nas ruas de Granada, lá embaixo. Os tiros tornaram-se cada vez mais freqüentes e, pela primeira vez na vida, ele não tinha vontade de compor.
Um dia, em 1936, Falla recebeu a notícia de que seu amigo Garcia Lorca fora preso. Falla saiu, com o rosto lívido, apoiando-se na bengala, para protestar junto ao governador. A autoridade escutou em silêncio, enquanto Falla suplicava a soltura de Lorca, e só depois ele contou a terrível verdade: Lorca fora fuzilado naquela manhã mesmo. Ninguém sabia quem dera a ordem. Falla voltou para casa, e chorou por Lorca e pela Espanha.
Quando, em 1939, recebeu convite para reger um festival de suas obras na Argentina, viu no convite a oportunidade de fugir de um mundo enlouquecido. Para ele, Buenos Aires foi um refúgio de paz.
Maria Del Carmen o acompanhou, e se instalaram numa linda casinha, em Alta Gracia de Córdoba, onde, num ambiente tranqüilo de flores, Falla estava certo de poder trabalhar novamente. Não o vi na Argentina (eu tinha compromissos em Portugal), mas nos correspondíamos. Ele estava de novo compondo L’Atlántida, e nela continuou trabalhando até sua morte.
Uma noite, em novembro de 1946 (exatamente sete após sua chegada à Argentina) Falla ia para a cama, quando se virou para a irmã.
“Maria”, disse o compositor, “poderíamos rezar um pouco mais esta noite? Acho que estou precisando.”
E nessa noite, em seu 70º ano, o grande Manuel de Falla morreu.
Seu corpo foi levado para a Espanha, num navio de guerra, e a nação deu-lhe um grande funeral. O Papa permitiu seu sepultamento na Catedral de Cádiz, reservada a dignitários eclesiásticos, designando-o “Filho Dileto da Igreja”. Em seu testamento, Falla pediu que as únicas palavras gravadas em seu túmulo fossem: Honra e glória a Deus somente.
Para toda a humanidade, Manuel de Falla deixou uma herança inestimável – um tesouro musical que revelou, não só a riqueza de sua alma, mas também o espírito buliçoso que se manifesta nas danças e cantares típicos de toda a Espanha.

*Inacabada, ao morrer Falla, L’Atlántida foi terminada por Ernesto Halffeter, e montada em 1962, no teatro La Scala, de Milão.

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