sexta-feira, abril 6

A hora da morte

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1998
Autor : Gary Eisler

Mesmo no final, a vida é preciosa. Seu encerramento não deve ser estimulado.

Isso dói – posso garantir. Bonnie começou a ter convulsões e depois se sacudiu na cama do hospital para doentes terminais, lamentando-se. Chamei a enfermeira e comecei a pressionar a bomba de morfina de Bonnie para que essa nova crise passasse. Mas enquanto eu manejava desajeitadamente o aparelho, seus olhos reviraram um pouco e então tudo terminou. Sua difícil respiração parou.
Bonnie, minha mulher há 28 anos, dissera que não temia a morte, mas tinha medo de morrer. Temia que fosse muito doloroso. Nunca tivera medo de nada, principalmente dor física – até ter sofrido meses de cirurgias, radioterapia, quimioterapia, derivações, cateteres, infecções, inconsciência e finalmente, em novembro de 1995, câncer no cérebro. Então ficou com medo.
Pergunto-me se Bonnie teria optado por terminar sua vida caso a Lei de Suicídio Ajudado por Médico existisse na época no Oregon. Agora, pouco mais de dois anos depois, tenho minha própria doença terminal e pergunto-me o que fazer. (Em novembro passado o Oregon decidiu num referendo manter essa lei, a primeira desse tipo nos EUA.)
O câncer de mama de Bonnie foi diagnosticado em maio de 1987. Ela estava na cozinha quando atendeu o telefone e recebeu o resultado da biópsia. Seus joelhos dobraram assim que ouviu a palavra câncer.
Felizmente, eu estava sentado em maio de 1997 quando o cirurgião me telefonou para dizer que minha biopsia revelava câncer no sistema linfático. No dia seguinte, permaneci na cama. Eu pensava: Que adianta levantar-me, se vou morrer de qualquer jeito? Assim, fiquei lá até me entediar. A vida continua, não importa quanto tempo você ache que tenha.
Fui consultar o oncologista que acompanhara a morte de minha mulher. Sua expressão era severa. Procurei abertura, a sugestão de um sorriso, alguma garantia de que tudo ia terminar bem. Nada. Ele me disse que meu linfoma não é relacionado à doença de Hodgkins, câncer de evolução lenta mas curável. Procurei pelas paredes a luz que penetrava pela janela, como alguém que aprecia visões familiares porque sabe que mesmo essas pequenas coisas logo irão desaparecer.
Os oncologistas exercem a profissão mais difícil do mundo. Eles tem de fazer as pessoas aceitarem o inaceitável. O mesmo médico disse à minha mulher em novembro de 1995 que recomendava a suspensão do tratamento. Tudo o que podíamos fazer era esperar o inevitável, que veio dois meses depois. Teria ela pedido a seu médico que a ajudasse a morrer? Teria ele sugerido isso?
Muitos fatos ocorreram entre o momento em que o tratamento foi suspenso e aquele em que sua vida terminou – fatos maravilhosos. Bonnie desejara muito ter um neto ou neta antes de morrer. Quando nosso neto nasceu em novembro, ela estava na sala de parto em sua cadeira de rodas, ajudando nossa filha. No Natal conseguiu ver nossos três filhos abrirem seus presentes. Sempre adorou vê-los felizes. Nem bem terminaram, ela entrou em coma.
Um funcionário do hospital que veio à nossa casa disse-me que Bonnie não resistiria mais 24 horas. No entanto, ela reanimou-se. Nós a levamos para o hospital, onde ficou, abrindo os olhos de vez em quando.
No ano novo, Andréa Camargo, jovem brasileira que fez intercâmbio e morou conosco tempos atrás, veio ao Oregon para ver a mãe americana. Andréa pegou as mãos de Bonnie e acariciou-as, beijou-a na face e chamou seu nome. Os olhos de Bonnie focalizaram-se pela primeira vez em dias. Ela sorriu. Depois conversou e até comeu.
Sentei-me ao lado da cama de Bonnie na última noite. Compartilhamos velhas lembranças – pequenos fatos que haviam ocorrido há 25 anos. Como acontece nos longos casamentos, havia mágoas entre nós com as quais procurávamos conviver.
- Você me perdoa tudo? – perguntei.
- Nada disso importa agora – disse ela.
Trocamos palavras de amor – a última vez que conversamos.
Nossas últimas horas juntos foram as mais íntimas e preciosas de nosso casamento.
Eu as compartilho para ilustrar uma questão. A “razão” e a “compaixão” teriam aconselhado que a vida de Bonnie terminasse semanas antes. Mas se isso acontecesse todos estariam mais pobres – inclusive Bonnie. Houve despedida, perfeição e beleza nesses últimos dias.
Agora é minha vez. Os médicos disseram que poderei morrer em seis meses, em alguns anos, talvez em dez.
Não se passa um dia em que eu não reviva o caminho doloroso de Bonnie.
Uma vez que sei que está chegando o fim, por que não concluir simplesmente meus negócios e acabar com isso?, pergunto-me.
Não tenho sentido dor específica, mas gostaria de saber como me sentirei a respeito da questão do suicídio com assistência quando estiver sofrendo. Realmente desejo esperar que a doença tome conta de mim, ou prefiro antecipar-me? Qual é a hora certa, e a decisão é minha?
Temos que os abutres não demorem a me cercar. Afinal, mais de meio milhão de pessoas morrem de câncer todo ano. Os últimos anos de Bonnie custaram cerca de 100 mil dólares para o nosso seguro-saúde.
O Instituto Nacional de Câncer dos EUA calcula que em 1997 o custo total da doença foi de 107 bilhões de dólares. Imagine os bilhões que poderiam ser poupados se cortássemos alguns algarismos desses números. Será que o que hoje é “opcional” algum dia será “sugerido” – e talvez “exigido” no futuro?
Já é suficientemente ruim ouvir o médico dizer que não há esperança. Seria ainda pior enfrentar pressões de seu médico, amigos, parentes ou simplesmente do público para por fim à sua vida. Sob tais pressões, muitos pacientes deprimidos e apavorados poderiam sentir que são um fardo e optar por acabar com tudo.
Se eles o fizerem, que pode dizer o que eles e aqueles que os amam estariam perdendo?

Nenhum comentário: