segunda-feira, abril 23

Chamado selvagem

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1998
Autor : Penny Porter

Para as criaturas selvagens que perambulavam por nossa fazenda no Arizona, a vida era difícil e a fome, constante. Cães ferozes perseguiam bezerros recém-nascidos. Quatis desvairados saqueavam o galinheiro. Coiotes uivavam em eterna angústia. Mas havia também os gritos lamentosos dos gatos selvagens, solitários vagabundos do deserto, que rasgavam meu coração.

Sem nenhum lugar para chamar de lar, esses descendentes perdidos de gatos domésticos, voltaram á vida primitiva. E a cada ano, quando a fome tocaiava nas montanhas e serras ressecadas, muitos buscavam refúgio em minha propriedade.
Em uma fria manhã de março, eu estava ordenhando uma vaca enquanto nossos cinco gatos se esfregavam em minha calça, aguardando impacientes a primeira refeição. Eles não sabem o que é a fome, pensei, tentando contar os gatos selvagens esqueléticos, encolhidos por trás das cocheiras. A maioria estava doente. Várias gatas estavam grávidas. Alguns exibiam cicatrizes horríveis, evidência muda de desesperadas batalhas pela vida.
Minha tarefa foi interrompida quando Jaymee, a caçula de nossos seis filhos, entrou correndo no celeiro, carregando uma gatinha recém-nascida, branca como neve. Por trás da orelha esquerda tinha mancha cor de cobre.
“Seus irmãos estão todos mortos!”, gritou Jaymee.
“Aposto que a grande coruja orelhuda os pegou”, comentei. “Você precisa encontrar a mãe dela. A gatinha precisa mamar.”
“A mãe morreu também!”, lamentou Jaymee. “Que vamos fazer, mamãe?”
Jaymee observa-nos lutando para manter vivos os bezerros e potros órfãos. Agora, ela encontrara algo do tamanho ideal para uma criança de 6 anos: um precioso fragmento de vida, que podia carregar, amar e cuidar sozinha.
“Sem a mãe ela morrerá, não é?”, perguntou.
“Sim”, respondi. “Será necessário um milagre para salva-la.”
Levamos a gata para dentro, envolvendo-a em uma luva de lã, e a alimentamos com leite, contendo um pouco de antibiótico, através de um conta-gotas. Em seguida, colocamos a gatinha em uma incubadora redonda usada para chocar ovos de galinhas raras.
“Posso levar a incubadora para o quarto?”, perguntou Jaymee.
Assenti com um movimento de cabeça.
“Mas não conte ao papai agora. Você sabe o que ele pensa dos gatos.”
Os gatos selvagens podem ter raiva e infecções. Bill temia que contaminassem nosso gado. Eu sabia que Jaymee se apegaria ao animal e, o pior de tudo, algo me dizia que essa gata não ficaria por perto durante muito tempo, quando fugisse, tinha certeza de que o coração de Jaymee se partiria. Naquele momento, porém, havia tanta esperança nos olhos de minha caçula que eu precisava ajuda-la. Decidi que durante algum tempo manteria silêncio sobre a gata.
Naquela noite, Jaymee e Becky, a irmã de 9 anos, alimentaram a minúscula gatinha, e depois a colocaram outra vez na incubadora com redoma de plástico. Ouvi Becky sussurrar para Jaymee.
“Contei 22 gatos selvagens no celeiro esta manhã! Papai está furioso.”
“Ele sabe que na verdade temos 23?”, perguntou Jaymee.
“Ainda não”
Noves dias depois, Jaymee mostrou ao pai a gatinha na incubadora. Bill ficou um pouco zangado e saiu do quarto. Na manhã seguinte, os olhos da gatinha se abriram, e Jaymee deu-lhe o nome de Milagre.
Não poderia haver outro nome para essa surpresa minúscula com o nariz rosado. Minha esperança era de que pudéssemos criar Milagre como um gato doméstico, de celeiro. No entanto, cada vez mais eu percebia sinais de que sua liberdade nunca poderia ser tolhida. Em vez de dormir na própria cama, como um gato doméstico, Milagre preferia se esconder em armários e atrás de cortinas. Em outras ocasiões, nós a encontrávamos nas botas de Bill ou adormecida embaixo das camas. A pergunta da casa passou a ser: “Onde está Milagre?”
Certa manhã Bill surpreendeu a gatinha mergulhando do alto das cortinas. E quando ela pulou nas calças de Bill, com as garras abertas, ele decretou que a varanda fechada dos fundos seria seu novo lar.

“Onde está Milagre?”
Um dia Jaymee se atrasou para o café da manhã.
“Milagre não está na varanda”, disse choramingando.
“Ela tem de estar em algum lugar”, comentei. Procuramos por toda parte, mas nem sinal da gata.
“Vou colocar comida na tigela de qualquer forma”, falou Jaymee, olhando para o pai. “Ela está só brincando, sabe?”
Claro, pensei. Um jogo em que os gatos selvagens são campeões. Esconder-se!
Durante vários dias, a tigela de Milagre aparecia vazia de manhã, mas não conseguíamos encontra-la. Por fim, notamos pegadas pretas desde a lareira até a comida e a água, e voltando à lareira.
“Papai!”, gritou Jaymee. “Milagre está na chaminé! Precisamos tira-la de lá!”
“Não vou subir pela chaminé atrás de um gato”, resmungou Bill. “Ela vai descer.”
Jaymee virou-se para o irmão de 19 anos.
“Por favor, Scott!”, implorou. Momentos depois, o longo braço de Scott apalpava por trás do abafador parcialmente aberto.
“Peguei-a!”, gritou Scott, puxando um novelo de lã cor de carvão para fora do fumeiro.
“Oh, Milagre, que menina má!”, exclamou Jaymee, e saiu correndo para limpa-la. Ao contrário da maioria dos gatos, Milagre gostava de tomar banho – e apreciava especialmente o secador de cabelos.

Sangue de gato selvagem
Oferecemos a Milagre bolinhas de gude, pedrinhas e laços com os quais os gatos domésticos gostam de brincar, mas nada lhe interessou. Em vez disso, aguardava impaciente os passeios lá fora, onde adquiria vida, correndo em campos de alfafa ou agachando-se em frente ao galinheiro, tremendo de desejo ao ver as 200 galinhas.
“Olhe, que lindo! Ela quer brincar com as galinhas!”, dizia Jaymee.
Brincar? Com o rabo contraído? As garras minúsculas se estendendo e se retraindo? Eu não tinha tanta certeza. Eu lera que, nos gatos, a habilidade de matar precisa ser ensinada pela mãe. Entretanto, não conseguia deixar de me perguntar se tal característica não poderia surgir naturalmente em Milagre. Com sete meses, ou uivos noturnos começaram. Seria o chamado selvagem?
“Ela vê coisas no escuro que não podemos ver”, contou Jaymee, durante o café. “Segredos e... gatos vadios!”, acrescentou Bill. Ele estava com torcicolo e mal-humorado por ter dormido com a cabeça embaixo do travesseiro, tentando bloquear os uivos noturnos de Milagre. “Maldita gata”, resmungou.
Uma noite, Bill entrou para o jantar com uma coleção de chocalhos de cascavéis. “Encontramos um ninho com mais de 50 na fazenda de Cowan”, comentou. Selecionou o maior e sacudiu-º instantaneamente, o nariz de Milagre apareceu na janela da cozinha. Suas costa se arquearam, os olhos de pedra faiscaram. Separamos um chocalho para que ela brincasse e, de súbito, ele estava sendo jogado de um lado para o outro, perseguido de forma selvagem por Milagre. Nossa gatinha afiava as habilidades felinas com esse novo brinquedo – sua primeira presa.
Certo dia, descobri uma ferida redonda na testa de Milagre. Primeiro, suspeitei de que se tratasse apenas do resultado de uma briga, até que bolhas e pústulas surgiram também no rosto e no pescoço de Jaymee.
“Porrigem”, disse o veterinário, depois de examinar a gata e a criança sob a luz azul de diagnóstico. A dupla brilhava como vaga-lumes em noite de verão. Depois de administrar o tratamento para Jaymee e Milagre, o veterinário avisou.
“Diga para Bill tomar cuidado com o gado. Isso pode ser contagioso.”
Naquela noite, Bill chegou para o jantar, abatido:
“Dois touros de exposição estão com porrigem”, comentou.
Gelei por dentro. Pensei na quarentena, no custo dos antibióticos e das doses de cal e enxofre para animais pesando quase uma tonelada. Eu queria contar a Bill sobre Milagre, mas Jaymee foi mais rápida.
“Oh, papai!”, disse ela. “Pense em como seria bonito ver os touros sob a luz azul! Milagre e eu brilhávamos como anjos!”
Bill não ficou com raiva, como eu esperava. Nem ele pode deixar de sorrir ouvindo a descrição de Jaymee. Uma noite, algumas semanas depois, Milagre não voltou quando a chamamos. Então, o telefone tocou.
“Sua filha tem uma gata branca?”, perguntou um cliente que comprara uma tonelada de alfafa pouco antes do meio-dia. Ele vivia a 95 quilômetros de distância.
“Tem sim”, respondi.
“Acho que ela gosta de se esconder em caminhões”, continuou ele. “Eu não sabia que estava lá, até que cheguei em casa.”
Um músculo latejou nas mandíbulas de Bill, enquanto ele apanhava o chapéu. Momentos depois, Jaymee e ele desapareceram no escuro, para os 190 quilômetros de viagem de ida e volta para buscar a gata.

Ataque de cobra
Em pouco tempo, Milagre era uma viajante experiente. Embora carros e caminhões fossem o transporte favorito, ela desaparecia com mais freqüência a pé e sumia durante vários dias; ás vezes, até semanas.
No primeiro aniversário de Milagre, ouvi Scott gritar de um curral de cavalos. “Milagre, saia daí!” E no fôlego seguinte: “Papai! Cascavel!”
Bill agarrou uma pá na caminhonete e correu para pegar o kit contraveneno. A cascavel picara uma égua entre as narinas. A égua estava cambaleando, raspando o chão com as patas, apavorada. Em minutos, a cabeça começou a inchar. Ela não conseguia respirar.
Rapidamente, Bill inseriu-lhe um respiradouro e administrou o antídoto. Rezamos para que a crise passasse. Scott disse ao pai: “Se não fosse por Milagre, agitando-se como um relâmpago, eu não teria visto nada. A gata estava enlouquecida, papai, atacando as cobras. “Ele olhou para mim: “Mãe, acho que a cobra pegou Milagre também.”
Quando encontramos a gatinha, ela estava imóvel – olhos selados, cabeça inchada. A garrafa de soro antiofídico estava vazia. “Vou tentar um pouco de cortisona”, disse Bill. “É tudo o que temos.”
Deitei a bolinha peluda na incubadora. Jaymee ajoelhou-se ao lado da gata, murmurando: “Você vai ficar bem, querida.” Depois de dois dias em coma, Milagre começou a melhorar. Juramos nunca mais deixa-la sair. No entanto, quando recuperou as forças, voltaram também os impulsos nômades.
Milagre tinha dois anos e meio quando desapareceu pela última vez. Sentimos muita saudade. Até mesmo Bill, a seu modo.
Nos anos seguintes, Jaymee adotaria muitos gatos, mas a memória de Milagre sempre se manteria próxima ao coração. Com freqüência, antes de dormir, ela viria comigo quando eu fiscalizava as galinhas ou um potro recém-nascido. Com sua lanterna, Jaymee iluminava manjedouras vazias e passagens entre pilhas de forragem. “É melhor tomar cuidado”, eu avisava. A resposta de Jaymee era sempre a mesma. “Eu tomo. Mas não posso deixar de procurar Milagre.”

“Eu sabia!”
Uma noite, três anos depois, Bill entrou pela porta dos fundos e seus olhos brilhavam de malícia. “Jaymee!”, gritou. “Venha aqui fora um minuto!” Saímos todos.
Camuflada contra o telhado de metal gasto do celeiro, agachava-se uma gatinha que enfrentara muitas lutas. Seu pêlo empoeirado encontrava-se rasgado por cicatrizes e a orelha direita, grudada no crânio. Mas a orelha esquerda, embora dilacerada, deixava perceber sinais de mancha.
“Milagre!”, sussurrou Jaymee, o rosto brilhando de entusiasmo.
Todos compartilhávamos a alegria de Jaymee, porém eu estava preocupada. Tinha certeza de que aquela não era mais a Milagre que Jaymee amara anos antes. Era gata selvagem, enrijecida pelas lutas. Em seu mundo, não podia haver lugar para a memória de uma menininha que a carregara, banhara e apreciara-lhe os modos evasivos. Jaymee ficara abalada quando Milagre desaparecera durante aqueles três anos. Será que ficaria ainda mais magoada agora, quando Milagre não a reconhecesse?
Enquanto isso, enfeitiçados, observamos que os olhos de Milagre se fixaram em um passarinho ali perto.
“Não, Milagre!”, berrou Jaymee. A gata hesitou. Então, virando a cabeça em direção à voz familiar de Jaymee, desceu do telhado e pulou nos braços estendidos da menina.
“Eu sabia que você voltaria!”, disse. “Eu sabia!”
Exceto por passeios ocasionais que duravam dois dias, Milagre não sumiu mais. Alimentava-se de comida para gatos, deixava ratos na porta dos fundos e pareceu se acostumar com a vida de gata doméstica – até a manhã em que Bill a encontrou no banco do trator. Seu coraçãozinho vigoroso simplesmente parara. Tinha 7 anos.
“Pelo menos, Milagre morreu em casa”, disse Jaymee, baixinho. “Morreu junto à família.”
Jaymee e todos nós aprendêramos a lição que nos acompanharia para sempre: mesmo nas mais estranhas culturas animais, o amor de uma criança é capaz de superar o primordial chamado selvagem.

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