segunda-feira, abril 9

O inesquecível Enrico Caruso

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1971
Autor : Bruno Zirato

Embora sua última gravação tenha mais de 50 anos, ele continua a ser o cantor de ópera mais conhecido e o de maior sucesso de todos os tempos.

Quando Enrico Caruso contava uma piada, ria ás gargalhadas da pobreza de seus trocadilhos. Mas, quando cantava, a magia lírica de sua voz o transformava numa lenda viva. Hoje, meio século depois de sua morte, é ainda o cantor de ópera mais conhecido que já existiu, o artista vocal clássico de maior sucesso de todos os tempos. Cinqüenta milhões de discos seus foram vendidos e ainda se vendem 5.000 por ano.
Mas, para mim, Caruso é mais que uma lenda. Foi o homem mais afetuoso, bondoso e generoso que já conheci. Enquanto fui seu secretário nos anos anteriores à sua morte, o único defeito que encontrei nele foi fazer-me comer a mesma comida que ele comia. Na véspera de um espetáculo ele tomava magnésia e comia figos secos, e no almoço, espinafre com ovos duros, cozidos durante uma hora. Eu não tinha outro jeito senão acompanha-lo neste menu.
Embora os tenores sejam notoriamente de difícil convivência, Caruso era muito simples e tinha um extrovertido encanto natural. “Abomino a vaidade”, disse-me uma vez. “É prova de ignorância e estupidez.”
O público adorava Caruso e o considerava assim como um pai extremoso olha uma criança encantadora. Ele adorava pregar peças e sua alegria não tinha limites. Num espetáculo de La Gioconda Caruso colocou sorrateiramente um ovo cru na mão do barítono, deixando que se livrasse dele do melhor modo possível. No quarto ato de La Bohème, o baixo canta uma despedida sentimental ao velho sobretudo e depois veste-o: o cantor teve enorme surpresa ao descobrir que Caruso tinha costurado as mangas! Em outro espetáculo de La Bohème, Nellie Melba, no papel de Mimi, ouvia um chiado misterioso sempre que Caruso se debruçava sobre ela na pungente cena da morte. Ele tinha um brinquedo de borracha na mão e apertava-o no ouvido da cantora!
Caruso nasceu em Nápoles em 1873, o 18º de 21 filhos. Seu pai era mecânico e Enrico – conhecido então como Enrico ou Carusiello – foi um bom menino e aluno aplicado. Trabalhou dois anos numa fundição fazendo chafarizes e depois fez um curso de contabilidade, terminando os estudos aos 16 anos.
Nos momentos de folga, cantava em cafés e balneários e guardava o dinheiro que lhe atiravam aos pés. Só aos 21 anos, em 1894, pode dedicar todo o seu tempo ao canto. Naquele ano estreou na ópera numa obra logo esquecida, chamada L’amico Francesco. Recebeu 80 liras (então 16 dólares) por quatro espetáculos, o que mal cobriu suas despesas. Nos últimos anos, Buenos Aires e a Cidade do México lhe pagavam 7.000 dólares cada vez que ele cantava e Havana lhe oferecia 10.000 dólares por um único espetáculo.
Caruso teve dois filhos de Ada Giachetti, uma soprano com quem cantou na Itália. Sua ligação durou 11 anos, até que ela o deixou por outro homem. Ele legitimou seus filhos, dos quais só Enrico Jr. Ainda vive. Em 1918 casou-se, pela primeira vez, com Dorothy Benjamin, uma jovem americana. Tiveram uma filha, Glória.
Vestir-se esplendorosamente e estar bem arrumado eram as paixões de Caruso. Quando jantou pela primeira vez em casa de Dorothy Benjamim, vestiu a indumentária de Julien, de Charpentier: terno cinza azulado com lapelas de veludo, camisa de seda creme, gravata esvoaçante, sapatos de verniz preto, um chapéu enorme de feltro azul e uma grande capa num dos ombros. Mais tarde disse a ela: “usei aquela roupa para que você se lembrasse de mim.”
Quando eu o conheci ele fazia as unhas das mãos, dos pés e cortava o cabelo todos os dias. Estudou muitas partituras enquanto a manicure e o barbeiro trabalhavam calados e seu acompanhante tocava piano. Às vezes, durante o seu banho, um pianista tocava para ele no quarto ao lado.
Dos 43 papéis do repertório de Caruso, o palhaço Canio de Pagliacci era provavelmente aquele em que o público mais o apreciava. Começando a grande ária, Vesti la Giuba, onde ele conta como deve divertir o público ainda que com o coração em pedaços. Caruso levava a casa ao delírio com o seu “Ridi Pagliaccio!”
Para mim, o maior Pagliacci que ele cantou na vida foi em Londres. Ele havia recebido duas notícias desoladoras: que o pai havia morrido e que Ada Giachetti o deixara. A platéia naquela noite em Londres quase fez desabar o Albert Hall com seus aplausos, sem saber que o Caruso de cara branca tinha cantado com o coração despedaçado por duas grandes tragédias pessoais.
Com freqüência perguntavam-lhe o que um cantor precisava para ser grande. E sempre respondia: “Um grande peito, boca também grande, 90% de memória, 10% de inteligência, trabalho constante e insano, e algo no coração.” De seus próprios desempenho, explicava: “Sofri muito nessa vida. Gente que não sentiu nada não pode cantar.”
Caruso gostava de ficar nervoso antes de um espetáculo. Lembro-me da maneira como esticava a mão para mim. Se ela tremesse, ficava feliz. Se se mantivesse firme, franzia o sobrolho. “Preciso fazer alguma coisa para ficar nervoso”, dizia-me.
Seu ritual de antes do espetáculo nunca variava. Fumava um de seus 40 cigarros por dia, fazia uma inalação e tomava um pouco de rapé, bebia um pouco de uísque e comia um quarto de maçã. Levava dois vidrinhos de água quente com sal nos bolsos da roupa, caso precisasse limpar a garganta em cena. Suas medalhas e amuletos iam para outro bolso. Finalmente, antes de entrar no palco, invocava sua mãe falecida para ajuda-lo.
Poucas coisas davam mais prazer a Caruso do que desenhar caricaturas e ele as presenteava com a liberalidade com que dava tudo mais. Em linhas rápidas e seguras, ele captava expressões, feições, roupas.
Joseph Pulitzer, editor do World de Nova York, ofereceu-lhe 50.000 dólares por ano para desenhar caricaturas no seu jornal, mas Caruso recusou. Em vez disso, enviava um desenho uma vez por semana a seu grande amigo Marziale Sisca, redador de La Follia, um jornal italiano de Nova York, e recusava-se a aceitar qualquer pagamento. “Não recebo dinheiro de amigos”, disse ao editor.
As pessoas procuravam-no com toda a sorte de pedidos: para cantar, desenhar ou simplesmente aparecer em festas de caridade. Ele raramente recusava. Depois de sua morte a viúva encontrou uma lista de 120 nomes de que nunca ouvira falar. Eram pessoas a quem ele enviava dinheiro regularmente. Todas as manhãs eu costumava colocar em sua escrivaninha apelos de pessoas que ele mal conhecia. Uma vez sua mulher o recriminou por dar dinheiro tão liberalmente: “Com certeza nem todos merecem.” Ele concordou: “Claro que não. Mas diga-me uma coisa: como posso saber quem merece ou não?”
No começo da Primeira Guerra Mundial, quatro trabalhadores de aspecto rude se aproximaram dele num dia em que estávamos almoçando num bairro de Nova York, chamado Pequena Itália. Caruso pegou o talão de cheques, esperando que lhe pedissem dinheiro. Mas os homens – todos napolitanos voltando à sua terra para se alistarem no Exército – tinham feito uma coleta entre eles e reunido 200 dólares. Ofereceram-nos a Caruso para que cantasse para eles.
Ele ficou emocionado e convidou os homens para irem ao seu hotel na noite seguinte, levando seus amigos. Chegaram cerca de 20 pessoas e ele cantou durante horas. Sua última música foi uma cançoneta folclórica napolitana; ao terminar, escondeu a cabeça nos braços e chorou.
Caruso estava sempre nas manchetes...e por motivos vários. Uma mulher moveu uma ação de 100.000 dólares contra ele por ter faltado ao compromisso de casar-se com ela. Outra mandou prende-lo acusando-o de tê-la beliscado no Jardim Zoológico do Central Park; ele foi multado em 10 dólares. A Mão Negra, um grupo criminoso siciliano, ameaçou-o, e ele apareceu no teatro Metropolitan cercado de policiais. Um cavalo de corrida foi batizado com o seu nome e ele apostava fielmente 10 dólares todas as vezes que corria, mas o cavalo não venceu sequer uma vez.
Caruso era ainda bastante moço quando a cortina final desceu sobe ele. Havia contraído um resfriado no começo de dezembro de 1920 e, durante uma apresentação de Pagliacci, ele cambaleou até aos bastidores e desmaiou em meus braços. O médico diagnosticou uma “nevralgia intercostal”. Caruso terminou a ópera, mas poucas noites depois, em L’Elisir d’Amore, começou a ter uma hemorragia enquanto cantava. Recusou-se a parar de cantar e eu lhe entregava toalhas e mais toalhas dos bastidores, até que gritos de “Façam-no parar” Façam-no parar!”, acabaram com o espetáculo.
Na noite de Natal, Caruso cantou La Juive, a despeito da dor cruciante que sentia em um lado. Na manhã seguinte, ele gritava de dor. Um novo médico disse que Caruso estava com pleurisia aguda. Retirou-se fluido da cavidade da pleura e depois 10cm foram removidos de uma das costelas. Em maio os médicos permitiram que ele voltasse para a Itália, a fim de recuperar-se. Ali, dois meses depois, teve um abscesso e os médicos ficaram na dúvida se deviam ou não opera-lo. Antes que tomassem uma decisão, Caruso morreu. Era o dia 2 de agosto de 1921. Tinha 48 anos.

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