sexta-feira, abril 27

Infância de escritora

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1999
Autora : Margaret Atwood

Só inventávamos livros quando chovia. Nos dias bonitos, revirávamos pedras.

Fui a caçula de dois irmãos. Os três outros membros da família tinham temperamento forte. Eu era não só a mais nova como ainda a mais feminina em meus gostos – fazia tricô, por exemplo – e também a menor, a mais indolente e de personalidade mais delicada. Só depois descobri o que era ser a mais jovem, mais frágil e mais indolente.

Minha mãe gostava de patinar, nadar, montar a cavalo e praticar canoagem, mas não se interessava pela criação artística. Meu pai adorava citar os autores que lia – sobretudo Sir Walter Scott – e desenhava muito bem, mas como era entomologista desenhava sobretudo insetos. Por isso, a influência mais forte que recebi no princípio da vida foi a de meu irmão mais velho; foi com ele que aprendi que fazer livros – e não apenas lê-los – era algo esplendoroso.
Aos 3 anos meu irmão caiu num lago e quase se afogou. Ele só foi salvo porque o dia estava calmo e minha mãe ouviu as bolhas de ar subindo à tona. Assim, compreendi que escapara por pouco de não ter irmão e preocupava-me com ele, seguindo-o de perto; era conhecida, sinistramente, como a pequena sombra.
Meu irmão desenhava livros em quadrinhos e escrevia histórias; e eu, portanto, fazia o mesmo. Seus temas eram planetas distantes, com formas de vida cheias de tentáculos. Os meus, coelhos voadores e, mais tarde, lindas garotas de cabelos longos e suntuosos vestidos de baile. Como já disse, em comparação, eu era mais frágil.
Só inventávamos esses livros quando chovia. Nos dias bonitos passávamos as horas revirando pedras para ver o que havia embaixo.
O mais decepcionante era o nada. Depois, em ordem ascendente, vinham: minhocas, centopéias, aranhas, besouros, formigueiros, sapos, cobras, camundongos, tritões e salamandras. Os dois últimos eram os melhores e mais raros.
Às vezes nos limitávamos a olhar e meditar, em seguida recolocávamos a pedra no lugar. Outras vezes cutucávamos com um pau os seres encontrados para ver o que acontecia.
Muitas vezes me perguntam: “Qual a diferença entre escrever poesia e ficção?” E certamente é isso: com um poema lírico, você olha, medita e recoloca a pedra no lugar. Com a ficção, você cutuca o que encontrou para ver o que acontece.
Em ambos os casos, porém, primeiro é necessário que haja algo debaixo da pedra, e essa é a parte que não se pode controlar nem prever. É aí que entram em cena a esperança, o desespero e o bloqueio do autor. Como sabem todos os escritores de ficção e especialmente os poetas, há uma parte de sua obra que não pode ser escolhida: é ela que o escolhe, e você pode ou não seguir o caminho apontado. Se o que estiver sob a sua pedra não for uma salamandra, não adianta tentar transforma-la em uma.
Se você acha que uma salamandra debaixo da pedra é metáfora muito fria ou esquiva para o elemento inesperado na criação, posso substitui-la pelo anjo com quem Jacó luta no Livro do Gênege. Dessa luta noturna Jacó emerge com um duplo dom: um ferimento que é ao mesmo tempo uma benção. A maioria das pessoas prefere anjos a salamandras, como símbolo da inspiração, embora um seja tão extraordinário quanto o outro.
Em todo caso, o que estiver sob a pedra, ou a presença dos anjos, não depende do escritor, e sim do que quer que seja responsável pelo acaso, pelo destino, pela capacidade de encontrar dádivas e pelos dons.

Margaret Atwood, poeta e romancista canadense, publicou quase um livro por ano nas três últimas décadas.

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