quinta-feira, abril 12

Um lugar à mesa

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1998
Autor : Collin Perry

Eles enfrentaram dificuldades juntos – quando garotos e quando homens.

Alan Stoudemire olhava nervosamente pela janela do carro em Lincolnton, Carolina do Norte, onde crescera. O médico do Colorado voltara outras vezes para ver a família, mas essa viagem era diferente. Depois de passar pelo casarão onde viveram a infância, o carro parou em frente a uma cabana sem pintura. Do outro lado do gramado, Boyce Blake e os irmãos, sentados ao redor da mesa, distraiam-se com um jogo de cartas.
Stoudemire hesitou. Apesar do ar condicionado, suava muito. Fora uma longa viagem até ali, e para que? Podia a amizade de infância renascer após tantos anos?
O ruivo Alan Stoudemire conhecera Boyce Blake num dia de verão nos anos 50, quando ambos tinham cerca de 5 anos. Alan brincava no riacho que atravessava os fundos da propriedade dos pais, enfiando uma vareta em buracos que pareciam interessantes. Ao olhar para cima, viu um garoto negro a observa-lo do outro lado do córrego, com enorme cesta de amoras pendurada no ombro.
“Não sabe que são ninhos de cobras-d’agua?, perguntou o estranho.
Embora apenas um riacho separasse as casas dos garotos, havia um oceano de preconceito e intolerância entre eles. Apesar disso, tornaram-se inseparáveis. Caçavam, pescavam e acampavam juntos, Boyce, conhecedor da natureza, sempre mostrava o caminho ao amigo.
Ele começou a chamar Alan de Zeke.
“Por que?”, perguntou Alan.
“Porque para mim você parece Zeke”, explicou Boyce.
E, entre amigos, o nome de Alan passou a ser Zeke.
O conservador e religioso Boyce em geral era o mais prudente nas aventuras. Certo dia, apesar das advertências do amigo, Zeke teve a idéia de jogar gasolina num poço abandonado da propriedade do pai e atear fogo. A explosão atingiu o rosto de Boyce e o fez cair de costas.
O pai de Zeke logo surgiu e levou o garoto ensangüentado para casa.
“É melhor chamar dona Ruth”, foi tudo o que disse ao filho.
Zeke correu para chamar a mãe de Boyce.
“Sinto muito, a culpa foi minha”, confessou ele.
“Sei, sei, dois diabinhos!”, disse dona Ruth, balançando a cabeça.
“Ouvi a explosão de longe!”
O castigo de Zeke foi passar o mês seguinte catando pedras e jogando-as, uma a uma, no poço de 18 metros, até enche-lo. Não ficou sozinho um dia sequer. Boyce estava lá, trabalhando a seu lado sob o sol quente.

Mundos diferentes.
A fazenda dos Stoudemires era fértil; a casa, confortável. Zeke tinha o próprio quarto e até o próprio cavalo.
Na outra margem do riacho, os Blakes e os 12 filhos viviam em alguns acres estéreis, numa pequena casa sem água corrente. Entretanto, sob o comando da matriarca Ruth, o chão estava sempre varrido e as crianças vestidas com asseio. Era uma das poucas famílias negras a possuir terra – concessão de um proprietário pelos serviços militares do senhor Blake.
No início, os mundos separados que Zeke e Boyce habitavam lhes pareciam naturais. Até que num verão a injustiça atingiu os dois garotos.
Enquanto as crianças brancas jogavam beisebol na quadra enfeitada, Zeke preferia juntar-se aos amigos negros no campo improvisado num posto. Num dia de calor, Zeke montou no cavalo para ir refrescar-se na única piscina do local. Quando acenava para os amigos, Zeke percebeu que sentiam tanto calor quanto ele.
A piscina era para uso de veteranos de guerra, famílias e amigos, mas o pai de Boyce, assim como o seu próprio, estivera em combate no Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial. Zeke amarrou o cavalo no portão, atravessou a placa de “Exclusivo para sócios” e perguntou ao gerente, educadamente, por que não podia trazer os amigos negros para nadar.
“Bem, filho, eles não são sócios, são?”, respondeu o gerente.
Zeke apontou para a piscina.
“Todas aquelas crianças brancas são sócias?”
A expressão do gerente tornou-se hostil.
“Que negócio é esse, garoto?”
Zangado, decidiu que se os amigos não podiam nadar, ele também não iria. Enquanto o cavalo patinhava sobre o riacho na volta para casa, Zeke teve uma idéia. E voltou ao campo de beisebol.
E se represassem o riacho e fizessem um açude para nadar?, pensou, entusiasmado.
Foi trabalho tedioso e exaustivo. Os garotos usaram lama, pedras, madeira, pneus velhos – tudo o que puderam encontrar. Em poucos dias construíram tosco açude, com profundidade suficiente para mergulhar depois dos jogos durante o resto do verão.
Os anos se passavam. O açude era desfeito a cada primavera e refeito a cada verão pelos garotos. Um domingo, depois de ir à igreja, Boyce e os três irmãos convidaram Zeke para jogar cartas. Boyce disse-lhe: “Até hoje nenhum garoto branco foi aceito no jogo.” Zeke juntou-se a eles, com seus lances e sinais sutis. Os Blakes zombavam amigavelmente da falta de jeito do novo jogador. A partida tornou-se hábito semanal.

Quebrando um ciclo.
Em setembro de 1968, a integração racial foi introduzida nas escolas secundárias exclusivas para brancos de Lincohnton. Boyce, olhos semicerrados à luz da manhã, desceu do ônibus num mar de rostos brancos emburrados. As crianças negras que estavam com ele aglomeraram-se ao lado do ônibus e os brancos formaram um círculo ao redor deles. Por alguns instantes, os dois grupos pareceram congelados e perigosamente silenciosos. O espaço entre eles estava carregado de tensão e violência potencial.
Zeke aproximou-se da roda externa de brancos. Esticando-se sobre as cabeças, podia avistar Boyce em pé com os outros negros. Mas algo que viu no velho amigo causou-lhe frio tremor: pela primeira vez na vida, Boyce Blake parecia realmente assustado.
“Com licença, com licença, por favor”, pediu Zeke, abrindo passagem pela multidão.
Então, com todos os olhares concentrados nele, atravessou a curta distância que separava os grupos.
“Procurei você por todos os lados”, disse Zeke de sorriso nervoso, agarrando a mão de Boyce e sacudindo-a vigorosamente. “Bem-vindo ao Colégio Lincohnton.
Boyce nada disse enquanto caminhavam juntos em meio `a multidão segregada, silenciosa. Depois, com os outros negros logo atrás, continuaram a subir os degraus para o primeiro dia de aula.

De repente.
Os anos se passaram e os garotos superaram as primeiras fases da vida. Após a formatura, Zeke foi para a Universidade da Carolina do Norte, depois para a faculdade de Medicina e residência no Centro Médico da Universidade do Colorado.
Boyce foi o primeiro Blake a freqüentar a universidade, fonte de grande orgulho para a família. Depois de dois anos na faculdade local, arranjou emprego numa fábrica de papel de Lincohnton, onde se tornou supervisor.
Com o passar do tempo, cada um deles se casou e perdeu completamente o contato com o outro. Então, aos 28 anos, Stoudemire foi vítima de câncer ósseo. A perna direita teve de ser amputada acima do joelho. Por causa da quimioterapia, perdeu quase 14 quilos.
Stoudemire agora mancava sobre muletas e uma perna artificial. Sentia-se profundamente só. Os “amigos” haviam parado de ligar. Nem o trabalho, nem o apoio carinhoso da mulher podiam aliviar-lhe o sofrimento. Toda a brilhante promessa de sua vida parecia ter chegado a um fim precipitado.
Um dia o telefone tocou.
“Olá, velho camarada, estamos procurando um parceiro para o jogo e acho que você é muito bom.”
A voz de Blake foi como um tônico. Ele soubera dos problemas do amigo pela família, e os dois conversaram durante uma hora. Antes de desligar, Blake o fez prometer que “pegaria o primeiro avião” e iria vê-lo.
Agora, o carro alugado, parado diante da cabana, Stoudemire avistava Blake à mesa de jogo. Boyce estava exatamente da maneira que ele se lembrava: musculoso, cheio de saúde e disposição.
Stoudemire hesitou. Certamente não temos mais nada em comum, pensou. Talvez esta visita não tenha sido boa idéia.
Por fim, saiu do carro com dificuldade, apoiou-se nas muletas e começou a atravessar o gramado.
“Olá, Zeke!”, Boyce virou-se para o amigo, o sorriso generoso como sempre. “Puxe uma cadeira”
Quando Zeke se sentou, dona Ruth surgiu para guardar as muletas e servir-lhe um copo de limonada gelada.
“Sabe”, começou Ruth, com a mão no ombro dele, “sempre costumávamos guardar um prato para você, caso aparecesse para jantar. Vou pegar seu prato outra vez. Bem-vindo, Zeke.”
Stoudemire só conseguiu balançar a cabeça, os olhos cheios de lágrimas.
“É melhor prestar atenção ali no velho Zeke”, disse Boyce, aliviando a tensão. “ Aposto que ele tem um monte de cartas escondidas naquela perna de madeira.”
Todos riram. Era bom estar em casa.

Lado a lado.
Durante o tempo que Stoudemire passou em Lincohnton, a depressão começou a ceder. Quando voltou para o Colorado, encontrou novo rumo para a vida profissional: o tratamento psiquiátrico de pessoas que sofriam de doenças graves. Aceitou o cargo de professor na Universidade Duke em Durham, Carolina do Norte e, com a mulher, mudou-se para o sul. Depois, pediu transferência para a Universidade Emory, em Atlanta.
Nunca mais perdeu contato com Blake. Falavam-se por telefone toda semana e visitavam-se com freqüência. Anos depois, comemoraram o nascimento da filha de Stoudemire, Anna, e do filho, Will, além do nascimento do filhos de Blake, B. J., que veio fazer companhia à irmã mais velha, Vonetta.
Numa noite de setembro de 1995, começou a mancar na quadra de basquete. Como a dor não passava – e nenhum médico conseguia determinar o que estava errado – um Stoudemire preocupado lhe pediu que “pegasse o primeiro avião até Atlanta”. Lá os médicos confirmaram que Blake tinha a doença de Lou Gehrig, na qual os nervos se degeneram. Uma sentença de morte.
Agora era Stoudemire quem oferecia conforto e conselho, falando com Blake quase diariamente. Ele ajudou o amigo a preparar o testamento e reservou do próprio bolso um fundo para os estudos de B. J.
Em outubro de 1997 Stoudemire visitou o amigo no hospital. Quase paralisado, Blake mal conseguiu levantar as mãos para cumprimenta-lo. Mas Stoudemire ainda podia ver claramente o brilho do espírito de Blake.
“Zeke, há algo que sempre lhe quis dizer”, sussurrou Blake.
Stoudemire inclinou-se para perto dele.
“Você é o pior jogador que já conheci.”
Stoudemire sorriu e disse que já esperava aquilo.
“Tudo bem”, tranqüilizou-o Boyce. “Mesmo assim vou reservar lugar para você na mesa lá de cima.”
A respiração de Boyce era superficial quando ele adormeceu. Stoudemire soltou-lhe suavemente as mãos – aquelas mãos que tantas vezes se haviam estendido para ele quando garoto, ensinando-o a pescar ou defendendo-o de algum valentão. As mãos que o tocaram quando ele ficou paralítico de corpo e espírito.
“Bem, amigo, sempre estivemos lado a lado, não é? Suas mãos podem ter perdido a força, mas a nossa amizade e a lembrança de nossa coragem vão ficar comigo para sempre.”

Boyce Blake morreu horas depois. Desde então, Stoudemire desenvolveu tumores malignos, porém, após algumas cirurgias e tratamento com vacina experimental, seu prognóstico é promissor.

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