sábado, dezembro 4

Diário de uma professora

Fonte : Revista Seleções

Data : Julho de 2000

Por : Esmé Raji Codell

As marcas de bala na janela denunciavam o mundo violento lá fora. Mas dentro da sala de aula, havia paz e magia

Minha decisão de ser professora remonta à infância num apartamento alugado, onde morava com meu irmãozinho e meu pai, divorciado. Nossa geladeira nem sempre funcionava, mas tínhamos livros em todos os cômodos, e logo aprendi que eles podiam me levar a qualquer lugar. Agora, aqui estou, vendo minha primeira sala de aula, pela primeira vez.

É numa escola pública de ensino fundamental, num bairro pobre, não muito longe de onde nasci.

A janela da sala tem um bom parapeito, largo, embaixo do qual há prateleiras, nas quais posso organizar exposições. Só o que incomoda são as quatro marcas de bala na janela junto ao quadro negro. A diretora diz que, quando as crianças chegarem, a janela terá sido substituída.

É muito empolgante arrumar minha sala de aula. Quando termino, as professoras mais velhas sacodem negativamente a cabeça, dizendo que minha sala parece estimulante demais, o que, para mim, significa que estão com inveja.

À medida que apronto tudo, penso em Ismente Siteles, com quem fiz estágio quando estudava para ser professora. A princípio, achei que não gostaria dela, pois me pareceu muito tradicional.

- É casada? – perguntei-lhe, depois de Ismene me fazer a mesma pergunta.

- Não. Já bastam todas as crianças de quem tenho de cuidar, sem um marido.

Pálida e grisalha, ela puxava orelhas e gritava muito. “Aprendam!”, ordenava. Era chocante observá-la, e era isso que eu fazia: observar.

Após apenas dois dias ela me olhou e, apertando os olhos penetrantes, curvou um dedo, como se lançasse um feitiço, e afirmou: “Você não está preparada.”

E foi o fim da observação. Durante centenas de horas, ela me fez ficar diante de sua turma de 5ª série – e ler, perguntar, contar, rir, gritar e fazer mágicas. Enfim, ensinar.

Era uma crítica exigente. Levava-me às lágrimas. Depois as enxugava.

Quando Ismene morreu, fui ao enterro e chorei a perda de minha mestra. Mas continuo o trabalho, em sua memória. Graças aos conselhos generosos que me deu, hoje ingresso em minha profissão com entusiasmo – em vez de medo – e confiança.

Aula inaugural

Afinal chega o grande dia. Contemplo as 31 crianças na minha sala de aula e penso: Este é meu destino; ter esse grupo de crianças diante de mim. O momento parece sagrado.

Digo que sou malvada e que já ensinei a jogadores de futebol e vaqueiros, a dinossauros e marcianos, e que, portanto, alguns alunos de 5ª série não são um desafio assim tão grande. Mostro-lhes minha única regra de outro: “Trate os outros como gostaria de ser tratado”, escrita em letras douradas.

Alguns ainda não sabem ler direito. Dá pena ver aquelas crianças grandes esforçando-se para adivinhar o som de cada letra. Digo-lhes que vamos organizar um museu do alfabeto – para os alunos do jardim de infância. Todos os dias designo uma letra a cada criança, e no dia seguinte elas me trazem objetos interessantes, cujo nome começa com aquela letra. Estudamos os diferentes sons das letras, “ensaiando” para os alunos menores. Assim meus alunos da 5ª série fazem seus exercícios alfabéticos sem se sentir acanhados.

O poder d uma história

Organizo uma biblioteca na sala de aula com livros comprados com meu dinheiro. A biblioteca fica linda, como uma livraria, montada num grande mostruário de madeira que meu tio fez para mim. Além disso, esconde a janela com as marcas de bala, nunca consertada.

Leio para as crianças um livro de Eleanor Estes, sobre uma garota tão pobre que usa o mesmo vestido para ir à escola todos os dias, mas insiste em dizer que em casa tem cem vestidos. As outras meninas zombam dela sem dó, até que ela se muda. Suas antagonistas descobrem que ela de fato tinha cem vestidos – cem lindos desenhos de vestidos. Meu Deus, faço muita força para não chorar quando fecho o livro.

Por um instante, tudo é silêncio. Aí um garoto que chamarei de Ashworth – mudei os nomes das crianças para não as constranger – cochicha em meu ouvido: “Tenho de dizer algo à turma.” E discretamente me mostra que lhe falta a metade de um dedo.

Coloco-me de frente para a turma e apoio as mãos em seus ombros. Ele está tremendo.

-Ashworth tem algo pessoal a partilhar com vocês. Espero que se lembrem do livro sobre os cem vestidos, quando ele lhes contar.

- Eu... eu só tenho nove dedos e meio. – Ele levanta as mãos. – Por favor, não zombem de mim por causa disso.

A turma murmura, impressionada, e então um dos meninos fala:

- Quem zombar de você, leva um chute no traseiro.

- Meu também – disse outro.

Ao ver a turma se unir naquele espírito, Asworth suspira e sorri para mim. O poder da literatura”

Confiança

Aconteceu algo horrível – alguém roubou um livro cômico sobre Colombo da nossa biblioteca na sala de aula. Eu exijo: “Quem fez isso, devolva já!” Mas ninguém devolve. Assim, depois da aula, tranco todos os livros no armário.

- Isso não é justo – reclama uma das meninas, no dia seguinte. – Não fomos todos nós que roubamos o livro!

_ Vou lhe dizer o que não é justo – respondo. – O que não é justo é eu ter outro emprego aos sábados, para vocês poderem ler bons livros, e depois alguém os roubar. Eu só partilho meus pertences com amigos. Não vou deixa-los por aí quando não posso confiar nas pessoas à minha volta. Vocês deixariam?

Distribuo os livros de leitura do colégio. A turma reclama, barulhenta.

“Vocês estão recebendo o mesmo que o restante da escola recebe”, lembro-lhes. O estado de espírito das crianças é azedo pelo resto do dia. Penso: Esta tem bom gosto. Sabem o que é maçante.

Alguns dias depois, encontro o livro cômico sobre minha mesa. Obrigada, meu Deus!

Outras dimensões

Depois das férias resolvemos fazer uma máquina do tempo: uma velha carcaça de geladeira, coberta com papel alumínio, com uma sirene vermelha da radio patrulha armada em cima dela e vários botões e teclados aparafusados e colados nela. Lá dentro coloco uma estante com uma seleção de bons livros históricos, uma almofada confortável para se sentar e uma lanterna elétrica presa a um fio telefônico espiralado. A idéia: viajar no tempo por intermédio dos livros.

Surge a grande questão: quem terá coragem de entrar na geringonça? JoEllem é escolhida. Nós a despachamos com muito aparato, apertando botões e girando maçanetas, conferindo se o período medieval está bem ajustado.

E lá vai ela. As portas se fecham, acende-se a luz da rádio patrulha “De volta ao trabalho”, digo, e começamos uma leitura silenciosa.

Meia hora depois, “trago de volta” JoEllen.

- O que você viu? – perguntam.

JoEllen faz uma pausa. Para pensar? Para impressionar? Nunca hei de saber.

- Um combabe – diz ela. – Dois homens. Lutando a cavalo. As armaduras tinindo enquanto cavalgavam. Até os cavalos tinham armaduras na cabeça. Os homens carregavam duas varas compridas....

Durante o resto do dia as crianças se revezam no interior da máquina do tempo. E ninguém diz: “É só uma caixa cheia de livros.”

Vidas secretas

Essas crianças enfrentam grandes problemas.... Hoje, por exemplo, Latoya chegou atrasada. É a quarta vez seguida. Em vez de ralhar – e reconheço que foi este meu primeiro impulso -, falei com ela sozinha, no corredor:

- Há um motivo para seu atraso?

- Estamos num abrigo, esta semana, e tenho de deixar minha irmãzinha com outra pessoa e tomar o trem até aqui.

Eu lhe disse que me orgulhava dela por comparecer todos os dias e que a ajudaria a recuperar a matéria perdida.

Asha levou o irmãozinho de 2 anos para a escola. Nenhum bilhete, nem mãe, nada. Tentei ligar para a casa dela, mas Asha não tem telefone. Então, o jeito foi passar o dia todo ensinando com um garotinho nos braços.

B. B. e a irmãzinha dele, Leesha, dormiram em meu apartamento uma noite, enquanto a mãe tratava de conseguir uma ordem de prisão contra o marido, que lhe dera um tiro no braço. Ela me pediu que ficasse com as crianças. Pensei: Posso arruinar minha carreira, fazendo isso. Mas concordei. As crianças portaram-se muito bem. No dia seguinte, contei tudo à orientadora da escola, por garantia. Ela chorou e apertou minha mão. Mais importante: afirmou que nada diria à diretora.

Contadores de histórias

Estamos nos preparando para uma oficina de histórias orais. Dez crianças farão apresentações teatrais de contos folclóricos para outras turmas. De propósito, escolhi aquelas especialmente tímidas ou com dificuldades de leitura e de fala.

Maurissa não quer se apresentar para a 4ª série. Sua pele escura empalidece, até ficar cinza, tamanho é seu medo. Eu a despacho, com Ruben e Latoya para a vigiar e apoiar. Maurissa implora que eu não a obrigue a ir, mas assim mesmo empurro pela porta, dizendo que sei que é capaz.

Quinze minutos depois ela volta – vem aos pulos – com um largo sorriso. “Consegui! Fiz tudo direitinho!”

E desata a rir e chorar ao mesmo tempo. Eu a abraço. Estou muito orgulhosa. Sei que, neste mundo tão grande, essa é uma vitória pequena. Mas às vezes uma simples canção é tão doce de ouvir quanto uma orquestra.

O festival de histórias é um sucesso. Mais de cem crianças ficam quietas, assistindo, enquanto meus alunos “deficientes” tem um bom desempenho, sem qualquer ajuda. Depois um aluno da 3ª série chega perto de mim e diz: “Quero ser contador de histórias também. E quero ouvir mais histórias. Amanhã podemos ter mais?”

Formatura

No princípio de junho, a orientadora me mostra as notas de minha turma em leitura e matemática. São as melhores da escola, diz ela. Quase todos os alunos tiveram desempenho de séries mais adiantadas.

Lembro-me do que dizia minha mestre Ismene: “A diferença entre uma professora novata e uma experiente é que a novata indaga: ‘Como estou me saindo?’ e a experiente pergunta: ‘Como estão se saindo os alunos?” Pois bem, este alunos – os meus alunos – alcançaram certo êxito.

No último dia de aula, a turma deixa a sala em fila única. Trinta e uma crianças. Trinta e uma oportunidades. Trinta e um futuros – nossos futuros.

Tudo quanto essas crianças se tornarem, eu também me tornarei. E tudo que há em mim foram elas que ajudaram a criar.

sexta-feira, novembro 26

Orly e Virgie

Fonte : Revista Seleções

Edição : abril de 2010

Momento decisivo

Orly e Virgie

Adorei quando os órfãos vieram fazer uma visita. Então meus pais começaram a falar em adotá-los...

A primeira coisa que vi foi o topo da cabeça deles. Estava olhando pela janela do meu quarto, no segundo andar; eles vinham andando na direção da porta da frente da nossa casa em Makati City, nas Filipinas. Faltavam três dias para o Natal de 1996 e eu me sentia mais caridosa do que Madre Teresa. Depois de anos assistindo a programas de televisão sobre órfãos pobres, finalmente receberíamos dois deles em casa.

Virgie tinha 10 anos, era um ano mais nova do que eu. Era bonita e não parecia uma menina pobre. Eu não tinha irmãs e, assim que a vi, decidi que ela seria a irmã que nunca tive. No meu quarto, lhe emprestei bonecas, lhe contei segredos e lhe ensinei passos de balé. Ela assistia aos mesmos programas de TV que eu e se interessou quando falei de coisas que ela não conhecia direito.

O restante da minha família apaixonou-se por Orly. Com 7 anos, era mais bonito e mais fofo. Dormiu na cama dos meus pais junto do meu irmão Carl, de 12 anos, que em geral agia como se também tivesse 7 anos.

Com quatro crianças, houve mais risos e brincadeiras. Os passeios de carro eram apertados e as idas ao supermercado viraram quase uma aventura. Virgie e Orly logo se empolgaram com as roupas e os brinquedos novos e sua alegria com as pequenas coisas nos contagiou.

Só deviam ficar três dias. No dia seguinte ao Natal, deveríamos leva-los de volta ao orfanato. Eu e minha família tentamos acumular o máximo possível de atividade naquele curto período, mas, no fim do dia de Natal, decidimos que não era suficiente. Estávamos nos divertindo demais.

Uma amiga da minha mãe que participava do mesmo programa “divida a sua casa” nos disse que conseguira ampliar o prazo para as crianças que passaram o Natal com ela. A minha mãe telefonou para o orfanato e pediu mais três semanas. E conseguiu!

E aí começaram as conversas sobre a adoção de Orly e Virgie. Os meus pais estavam pensando nisso seriamente. Então percebi que a minha vida poderia mudar para sempre; que a família de quatro pessoas que eu conhecia desde sempre podia deixar de existir.

Comecei a notar que minha mãe abraçava mais Orly do que eu.

Quando meus pais chegavam em casa, primeiro procuravam Orly e depois a mim. E então vieram os presentes, compras que comecei a ver com inveja.

Antes que Orly e Virgie chegassem, eu recebia toda a atenção que queria. Agora, era inegável que estava com ciúmes, e toda a minha infantilidade se revelou.

Imaginei planos complicados para fazer Orly se sentir mal, desde trata-lo com indiferença até repreendê-lo por qualquer coisinha. Contei a Virgie o meu sofrimento e ela disse que também se ressentia do modo como os meus pais pareciam preferir Orly.

Olhando para trás, percebo que ela tentava me agradar, mas fiquei grata por ter uma aliada.

orlY não dava atenção aos meus planos, frustrada, escolhi outra estratégia: o afastamento. Durante os últimos dias da estada deles, eu que era a criança mais hiperativa do mundo, me transformei na mais quieta. Ficava séria quando o restante da família ria. Parei de falar com os meus pais, parei de abraça-los e me afastava quando demonstravam a mínima afeição por Orly. Fiquei satisfeitíssima com a cara de culpa, incerteza e confusão dos meus pais.

A tática havia funcionado. Meus pais pararam de falar em adoção. Ao fim da terceira semana, levamos Orly e Virgie de volta para o orfanato. Orly chorava quando nos despedimos. Eu lhe disse que logo voltaríamos para visitar e até poderíamos ficar com eles para sempre. É claro que era mentira. Não queria vê-los nunca mais.

Quando voltei para casa, senti que tinha a minha vida de volta. Dali a alguns dias, Virgie telefonou, perguntando como estávamos. Senti que queria voltar. Ela pediu o telefone do trabalho da minha mãe e, embora o soubesse de cor, não dei. Houve outros telefonemas naquele mês, que finalmente pararam.

Dez anos depois, minha mãe me contou que Virgie conseguiu o telefone do escritório dela. Eles telefonaram várias vezes, pedindo que ela os adotasse. Ela queria, mas o meu pai teve medo por mim. Se eu não conseguira aguentar algumas semanas com eles, como suportaria uma vida inteira?

Já se passaram 13 anos. Agora Orly deve ter 20 e Virgie, 23. Eu era uma menina imatura de 11 anos, tinha uma desculpa. Mas na noite em que minha mãe me falou dos telefonemas desesperados, a culpa me rasgou por dentro. Até que ponto a minha infantilidade mudou a vida deles?

Se meus pais os tivessem adotado, teriam recebido uma educação melhor, uma vida mais confortável, mais amor? Eu acabaria adorando ter mais dois irmãos? Teria odiado? Eles teriam se transformado em profissionais liberais ou em delinquentes? Salvei minha família de problemas e dores de cabeça ou neguei-lhe uma vida mais rica? Talvez o que aconteceu tivesse de ser assim. Talvez não.

Orly e Virgie desapareceram. Procurei o orfanato, mas parece que não existe mais. Liguei para os centros associados e, quando perguntaram quem eu procurava, só pude lhes dar os nomes Orly e Virgie. Só então me ocorreu que nunca me dera ao trabalho de lhes perguntar o sobrenome.

Minha única esperança de fazer contato com eles é que um dia, andando na rua, um homem tenha a vaga impressão de já ter me visto. Talvez se aproxime e me diga que me conhece de algum lugar. Vou olhar bem nos olhos dele e dizer: “Mas é claro que nos conhecemos. Sou da família que lhe prometeu a salvação mas nunca cumpriu”.

E vou lhe dizer: “Orly, sinto muito. Por favor, me desculpe”.