segunda-feira, abril 30

Meu tipo inesquecível - Manuel de Falla

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1974
Autor : Ernesto Halffter

Com sua música, este dedicado compositor, uma das maiores personalidades artísticas da Espanha, revelou ao mundo o espírito buliçoso de sua terra.

Em seu jardim de Granada, com o rosto ascético parecendo esculpido em mármore, Manuel de Falla estudava a partitura que eu acabara de submeter-lhe. Prendi a respiração, rezando para que ele gostasse do meu trabalho.
“Isto está bom, Ernesto”, disse finalmente o grande compositor. “Se você acha que é o melhor que pode fazer, não há mais nada a dizer. Mas se acha que pode melhora-las, então precisa trabalhar mais. Quando um trabalho pode ser melhorado é porque ainda não está terminado.”
Era esse o lema do homem que considero a maior personalidade artística da Espanha, desde Goya.
Ao piano, ele trabalhava incansavelmente numa composição. Ficava sentado, ereto, sempre impecavelmente vestido, como se estivesse num concerto, enquanto experimentava notas, acordes e combinações de sons para o efeito exato que buscava.
Às vezes, labutava durante horas, até que as pontas dos dedos rachavam, e começavam a sangrar. Então, sua irmã, Maria Del Carmen, corria para ele com ataduras, repreendendo-o por não se cuidar. Não se tendo casado, Falla contava com ela para a administração da casa.

Encontro com o maestro. Fora do teclado, o severo disciplinador era um homem tímido, de fala mansa, excessivamente polido, muito preocupado com os sentimentos dos outros. Recordo-me de uma noite em que ele estava nos bastidores, num Festival Internacional de Música, em Siena. A primeira metade do concerto, dedicada ás obras de outro compositor, fora um desastre. Falla fechou os olhos, para não ver o sofrimento do colega, que estava sentado a seu lado.
A segunda metade do concerto, dedicada a obras de Falla, acabou com a platéia de pé gritando Bravo! Bravo! O gerente correu para junto de Falla.
“Maestro, é preciso subir ao palco. Eles querem vê-lo!”
Falla sacudiu a cabeça.
“Absolutamente”, respondeu. “Não quero que meu nome sirva de bandeira de ataque a um colega.” E saiu do salão de concertos sem se mostrar à platéia.
Quando conheci Manuel de Falla, ele tinha 45 anos, e já era mundialmente famoso. Eu tinha apenas 16, e via nele uma figura olímpica. Tinha tanta esperança de conhece-lo quanto de ser chamado à presença do Papa.
Mas eu tinha composto algumas peças curtas que foram tocadas em Madrid. Elas foram ouvidas por Adolfo Salazar, crítico musical de El Sol e amigo de minha família. Uma noite, Salazar chegou apressado em nossa casa, e mostrou-me um exemplar de uma de minhas composições, com a observação escrita na margem: ‘Um belo talento. Manuel de Falla.”
“O maestro veio a Madrid ouvir um recital das obras dele”, disse Salazar. “Tomei a liberdade de mandar-lhe esta peça sua, e ele quer conhece-lo.”
Quando fui visitar Falla no hotel, entrei tremendo, mas ele me recebeu com a mesma polidez e cordialidade que teria com alguém de sua idade. Indicou-me uma cadeira e disse: “Fale-me de você.”
Falei-lhe de meus planos e do ceticismo de meus pais a respeito de meu futuro musical. Quando acabei, Falla disse:
“O que vi de sua obra me impressionou, mas você precisa estudar. Mais tarde me comunico com você.”

Um fagote francês. Semanas depois, eu subi as ladeiras de Granada, procurando o endereço de Falla, em Antequerela Alta. A residência de Falla era modesta e pequena, no meio de um jardim cercado. Falla estava sentado entre um cipreste alto e uma acácia, seu lugar favorito, trabalhando numa partitura. Concluídos os cumprimentos, ele deu-me as instruções: “Esteja aqui toda manhã às nove. Suas refeições serão feitas conosco, e você vai estudar todo dia até meia-noite.”
“Das nove da manhã até meia-noite, maestro?”, perguntei assustado.
“Este é o meu horário. Sou rigoroso na observância de horários. Se quiser vencer, precisa trabalhar o tempo todo.”
Como ele me prevenira, nosso programa diário era rigoroso, e raramente mudava. Quando eu chegava de manhã, tinha de “analisar” as obras de grandes compositores. Eu ocupava uma mesinha de canto, na mesma sala onde ficava o seu piano. Maria Del Carmen servia-me café. Falla só aparecia depois de barbeado, vestido e de café tomado. Nunca soube que ele dissesse uma palavra a ninguém, nem mesmo à irmã, antes do café da manhã.
Em seguida, caminhávamos juntos no parque da Alhambra. Em meia hora de passeio, eu lhe comunicava os resultados de minha última análise matutina. A figura esbelta e aristocrática estava sempre ereta, os olhos brilhantes e atentos. Quando concordava com minhas conclusões, acenava com a cabeça. Se achasse que eu não tinha aprofundado devidamente minha análise, digamos, de uma sonata de Beethoven, sugeria que examinasse de novo este ou aquele trecho.
A cada dia que passava, aumentava o meu respeito por seus conhecimentos das leis imutáveis que regem a composição, do papel que cada instrumento pode desempenhar para enriquecer o brilho da orquestra. Um dia, comentando uma passagem difícil que eu escrevera para o fagote, em minha sinfonietta, Falla disse: “Você ficará desapontado, porque só o fagote francês pode tocar a parte como você a vê. O fagote espanhol tem capacidade diferente.”
Cada nota e cada instrução musical que ele escreveu tem uma razão lógica e estudada, e esse princípio ele procurou transmitir às pessoas de minha geração: conhecer o ofício com perfeição.

De Cádiz a Paris. Manuel Maria de Falla y Mathieu nasceu em Cádiz, em 1876. Seu primeiro professor de piano foi sua mãe, e, desde a mais tenra infância, demonstrou tal talento que a família resolveu manda-lo a Madrid, para estudar no Conservatório. Lá, o compositor e musicólogo Felipe Pedrell revelou-lhe a beleza e a força da música folclórica espanhola – e Falla captou como ninguém a essência dessa música. Tudo que ele escreveu está embebido do espírito que caracteriza a verdadeira alma do povo espanhol.
Em 1904, quando ele tinha 28 anos, a Real Academia de Belas Artes abriu concurso para “o melhor drama lírico apresentado por um compositor espanhol”. Falla trabalhou noite e dia, compondo para um libreto chamado La Vida Breve, escrito por seu amigo Carlos Fernandez Shaw. Concluída em apenas um ano, a ópera ganhou o concurso. Como se essa vitória não bastasse, pouco depois ele venceu o concurso nacional Ortiz y Cussé para o melhor pianista jovem da Espanha.
A rápida fama granjeou-lhe diversos alunos em Madrid e, dois anos depois, já tinha economizado o suficiente para realizar o sonho de todo artista da época: visitar Paris. A “visita” de Falla durou sete anos! Durante esse período, estimulado e inspirado por homens que estavam compondo muitas das obras primas da época (Debussy, Dukas, Albeniz, Ravel), escreveu óperas, balés, peças orquestrais, música de câmara. Para tornar a vida ainda mais empolgante, sua fama de pianista concertista emparelhava com seu sucesso como compositor. Além disso, teve o prazer de ver La Vida Breve montada duas vezes no mesmo ano – em Nice e na Ópera Comique de Paris.
Mas o sucesso não o estragou. Para ele, o importante era aprender, trabalhar, criar. Anos mais tarde, ainda consideraria os anos passados em Paris como a melhor educação de sua vida.

Ao piano. Em 1914, quando a França entrou na Primeira Guerra Mundial, Falla regressou à Espanha. Seus amigos de Paris iam vê-lo freqüentemente – e o pequeno Pleyel de armário ressoava sob os dedos dos maiores virtuoses do mundo.
Uma tarde, Arthur Rubistein sentou-se ao piano, e correu os dedos pelo teclado, displicentemente. Iria dar um recital em Granada, nessa noite. De repente, virou-se para o maestro: “Sei que você está pretendendo ir a meu concerto. Quero que prometa sair antes da segunda parte.”
Falla não entendeu, e disse: “Mas você vai dedicar a segunda parte à minha Dança do Fogo!”
“Exatamente. Mas vou tomar algumas liberdades com ela, e você pode não gostar do resultado.”
Rubistein dissera uma verdade profunda. Falla achava, e até defendia o princípio de que todo artista deve ter liberdade de expressar suas emoções, mas gostava de ouvir sua música tocada como ele a havia ouvido originalmente no seu íntimo, e doía-lhe ouvi-la com modificações.
Os dois gigantes da música se fitarem em silêncio, por um longo momento, cada qual respeitando e compreendendo o outro. Por fim Falla cedeu. “Eu saio”, disse.
O maestro gostaria de passar o tempo todo na tranqüilidade de sua casa e de seu jardim, mas era constantemente convidado a reger orquestras e dar recitais de suas obras, em Festivais Falla, na Espanha inteira, e também em Londres, Paris, Viena e muitas outras cidades. Era ainda procurado com pedidos de composições. Entre 1914 e 1921, compôs El Amor Brujo, Fantasia Bética, El Sombreo de Três Picos, Noches em los Jardines de España, El retablo de Maese Pedro. Foi um período de grande produtividade. Trabalhava no piano diariamente, até tarde da noite.
Mas sempre descansava no domingo à tarde. Era quando um de seus amigos mais chegados, o jovem poeta espanhol Garcia Lorca, ia ao jardim, para um copo de vinho e uma ou duas horas de conversa. Falavam de arte, poesia, política, e eu ficava assombrado com os conhecimentos de Falla.

Dois golpes arrasadores. Em 1926, Falla descobriu o poema épico de Jacinto Verdaguer L’Atlántida – a história do continente perdido, da descoberta de um novo mundo por Colombo, de tudo o que aconteceu antes e depois desse fato histórico. Jamais esquecerei o brilho de seus olhos negros quando exclamou: “Ernesto, achei!”, e bateu no livro aberto sobre a toalha vermelha. “L’Atlántida! Vou compô-la!”
O sonho longamente acalentado de compor a obra prima de sua vida, finalmente ia se realizar. Eu nunca o vira tão entusiasmado. Segundo Falla, o grandioso projeto envolveria uma orquestra completa e um conjunto de câmara, um amplo complemento de solistas vocais e dois coros, um de adultos e outro de crianças.*
Uma vez mergulhado em L’Atlántida, seu mais importante empreendimento, Manuel de Falla ficou mais feliz do que nunca. Mas sua felicidade foi abalada por dois golpes terríveis. O primeiro foi a dolorosa doença, posteriormente diagnosticada como tuberculose óssea, que o deixaria fisicamente incapacitado para o resto da vida. Não podia subir sozinho para o quarto, nem descer de manhã. Mesmo assim, prosseguiu trabalhando, subindo e descendo com a ajuda de outros.
O segundo golpe, que por pouco não o destruiu, foi a Guerra Civil espanhola. A essa altura, Falla já estava andando de novo. Passeava mancando, pelo jardim, apoiado numa bengala, estremecendo cada vez que ouvia tiros nas ruas de Granada, lá embaixo. Os tiros tornaram-se cada vez mais freqüentes e, pela primeira vez na vida, ele não tinha vontade de compor.
Um dia, em 1936, Falla recebeu a notícia de que seu amigo Garcia Lorca fora preso. Falla saiu, com o rosto lívido, apoiando-se na bengala, para protestar junto ao governador. A autoridade escutou em silêncio, enquanto Falla suplicava a soltura de Lorca, e só depois ele contou a terrível verdade: Lorca fora fuzilado naquela manhã mesmo. Ninguém sabia quem dera a ordem. Falla voltou para casa, e chorou por Lorca e pela Espanha.
Quando, em 1939, recebeu convite para reger um festival de suas obras na Argentina, viu no convite a oportunidade de fugir de um mundo enlouquecido. Para ele, Buenos Aires foi um refúgio de paz.
Maria Del Carmen o acompanhou, e se instalaram numa linda casinha, em Alta Gracia de Córdoba, onde, num ambiente tranqüilo de flores, Falla estava certo de poder trabalhar novamente. Não o vi na Argentina (eu tinha compromissos em Portugal), mas nos correspondíamos. Ele estava de novo compondo L’Atlántida, e nela continuou trabalhando até sua morte.
Uma noite, em novembro de 1946 (exatamente sete após sua chegada à Argentina) Falla ia para a cama, quando se virou para a irmã.
“Maria”, disse o compositor, “poderíamos rezar um pouco mais esta noite? Acho que estou precisando.”
E nessa noite, em seu 70º ano, o grande Manuel de Falla morreu.
Seu corpo foi levado para a Espanha, num navio de guerra, e a nação deu-lhe um grande funeral. O Papa permitiu seu sepultamento na Catedral de Cádiz, reservada a dignitários eclesiásticos, designando-o “Filho Dileto da Igreja”. Em seu testamento, Falla pediu que as únicas palavras gravadas em seu túmulo fossem: Honra e glória a Deus somente.
Para toda a humanidade, Manuel de Falla deixou uma herança inestimável – um tesouro musical que revelou, não só a riqueza de sua alma, mas também o espírito buliçoso que se manifesta nas danças e cantares típicos de toda a Espanha.

*Inacabada, ao morrer Falla, L’Atlántida foi terminada por Ernesto Halffeter, e montada em 1962, no teatro La Scala, de Milão.

sábado, abril 28

Jogando sinuca com meu 'velho'

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1999
Autor : Pat Jordan

Durante toda a vida desejei mostrar a ele como eu era bom nesse jogo. Aquela era a minha chance...

Meus pais estavam conosco havia apenas dois dias quando tive uma discussão com papai. Sempre discutimos muito. Foi por isso que os convidei a passar alguns dias comigo e minha mulher. Para enfim fazermos as pazes.
Depois da discussão, telefonei para meu irmão, George, e contei o que tinha acontecido.
- Por que você não consegue se dar bem com ele? – perguntou meu irmão, 13 anos mais velho do que eu.
- Que tal um jogo de sinuca? – sugeriu.
- Vocês adoravam jogar sinuca!
Assim, levei papai a um bar com sinuca, perto das oficinas mecânicas e lojas de auto-peças. O ambiente era escuro e cheirava a cerveja choca. Acendemos uma luminária cônica sobre a mesa e pegamos os tacos nos suportes presos às paredes.
Papai deitou seu taco na mesa e rolou sobre o feltro verde. O taco bamboleou. Então ele pegou outro, que também bamboleou. Continuou experimentando até encontrar um que não estivesse empenado. Arrumei as bolas.
- Vamos lá? – perguntei.
Ele concordou com a cabeça.
Comecei. Quando a bola branca parou, deixou para ele uma jogada distante e difícil, mas que poderia ser feita.
Observei quando papai curvou bem o corpo e preparou o taco. Mesmo aos 76 anos, ele ainda tinha a mão firme e a tacada leve que eu sempre tentara imitar, porém jamais conseguira.
Papai jogou e errou. A bola branca bateu nas outras, espalhando-as. Eu tinha uma dezena de jogadas fáceis a escolher. Lembrei-me do que ele me disse certa vez: “Os olhos se vão antes da tacada. Quando jogar com um velho, deixe sempre bolas distantes para ele”.
Isso fora dito havia mais de trinta anos, quando eu estava na faculdade. Eu era um excelente jogador, mas nunca conseguia ganhar de papai. Jogávamos durante horas; eu ficava suado e nervoso, enquanto ele, com um olhar indiferente e aquela irritante tacada metódica, encaçapava uma bola atrás da outra. À nossa volta outros estudantes observavam. Eu me sentia ao mesmo tempo orgulhoso do talento de papai e furioso por não conseguir vence-lo. Mais do que tudo, desejava mostrar-lhe como era bom em seu jogo.
Alguns anos antes, as viagens que ele fizera por aí jogando sinuca a dinheiro tinham provido o sustento da jovem família. A cada vez, ele ficava várias semanas fora. Meu irmão, na época um adolescente alto e desengonçado, foi com ele uma vez e mais tarde me falou sobre a viagem. O velho jogava com fazendeiros, vendedores de ferramentas e jogadores profissionais nos salões de sinuca das cidades pequenas. Ele sempre ganhava, contou meu irmão. Os derrotados atiravam as notas, amassadas, sobre o feltro verde.
Como desejei acompanhar meu pai nessas viagens! Como teria ficado feliz ao vê-lo jogar! Mas eu não passava de um bebê. Na minha adolescência ele já não fazia essas viagens.
- Isso foi há muito tempo – costumava dizer, com um gesto desdenhoso da mão.
Acabei apaixonado por sinuca: o pensamento por trás de cada tacada, a reação da bola branca a cada teco, a pressão do jogo a dinheiro. Eu jogava bem sob pressão, exceto quando o adversário era o “velho”. Nunca consegui vence-lo. Até esse momento.
Depois de umas tacadas ficou claro que a visão de papai havia se deteriorado. Eu tinha conseguido uma grande vantagem, jogando com rigor e sem piedade. De modo como papai jogava quando eu estava na faculdade. Ele nunca me dava colher de chá, como alguns pais costumam fazer. Era uma boa lição, mas que nunca funcionou comigo. Eu conseguia fazer jogadas difíceis e agressivas somente por algum tempo. Era uma atitude que eu, na verdade, não conseguia sustentar. Não estava em mim aquela dureza.
Agora, com uma dianteira de vários pontos, afastei-me da mesa. Papai estava apoiado no taco, um velho com cabelos brancos nas têmporas, esperando. Inclinei-me sobre a mesa, dei uma tacada quase impossível e errei. As bolas espalharam-se.
- Que diabos está acontecendo com você? – perguntou ele. – Sabe jogar melhor que isso.
Balancei a cabeça, como se estivesse desgostoso comigo mesmo. Papai liquidou todas as bolas.
Meu erro seguinte foi bater na bola com tanta força que ela quicou para fora da caçapa depois de ter ido na direção correta.
- Você bate com a sutiliza de um ferreiro! – zombou papai.
Perdi o jogo por pouco. Passando o braço sobre os ombros dele, comentei:
- Papai, você ainda é o melhor.
- Você devia ter me derrotado. Foi displicente – disse ele, balançando a cabeça como se estivesse triste de verdade – Como sempre.
Naquela noite jantamos na varanda de nosso apartamento. Era uma noite suave e tépida de fevereiro. O céu da cor dês estava salpicado de estrelas brancas. Algumas velas bruxuleantes iluminavam-nos o rosto. Ergui uma taça de vinho tinto e disse:
- Um brinde! A mamãe e papai!
Tocamos nossas taças. Minha mulher. Minha mãe. Meu pai. E eu.
- Quem ganhou, meu filho?
Eu sorri.
- Está brincando, mãe?! Você sabe que não consigo vencer o “velho”.
- Ele foi displicente, Florente – observou papai. – Estava me vencendo e então começou a dar aquelas tacadas malucas.
- Ah! – exclamou ela. – Está dizendo que Pat deixou você ganhar?
Meu pai olhou para ela e depois para mim.
- Seu filho da mãe! – censurou ele. – Você deixou que eu ganhasse!
- Ora, papai, venho tentando vencer você há anos. Acha que, quando finalmente o peguei com a corda no pescoço, eu ia entregar o jogo?
- Seu filho da mãe! – repetiu meu pai, assentindo com a cabeça várias vezes. E então, pela primeira vez desde que tinha chegado, ele sorriu para mim.

sexta-feira, abril 27

Infância de escritora

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1999
Autora : Margaret Atwood

Só inventávamos livros quando chovia. Nos dias bonitos, revirávamos pedras.

Fui a caçula de dois irmãos. Os três outros membros da família tinham temperamento forte. Eu era não só a mais nova como ainda a mais feminina em meus gostos – fazia tricô, por exemplo – e também a menor, a mais indolente e de personalidade mais delicada. Só depois descobri o que era ser a mais jovem, mais frágil e mais indolente.

Minha mãe gostava de patinar, nadar, montar a cavalo e praticar canoagem, mas não se interessava pela criação artística. Meu pai adorava citar os autores que lia – sobretudo Sir Walter Scott – e desenhava muito bem, mas como era entomologista desenhava sobretudo insetos. Por isso, a influência mais forte que recebi no princípio da vida foi a de meu irmão mais velho; foi com ele que aprendi que fazer livros – e não apenas lê-los – era algo esplendoroso.
Aos 3 anos meu irmão caiu num lago e quase se afogou. Ele só foi salvo porque o dia estava calmo e minha mãe ouviu as bolhas de ar subindo à tona. Assim, compreendi que escapara por pouco de não ter irmão e preocupava-me com ele, seguindo-o de perto; era conhecida, sinistramente, como a pequena sombra.
Meu irmão desenhava livros em quadrinhos e escrevia histórias; e eu, portanto, fazia o mesmo. Seus temas eram planetas distantes, com formas de vida cheias de tentáculos. Os meus, coelhos voadores e, mais tarde, lindas garotas de cabelos longos e suntuosos vestidos de baile. Como já disse, em comparação, eu era mais frágil.
Só inventávamos esses livros quando chovia. Nos dias bonitos passávamos as horas revirando pedras para ver o que havia embaixo.
O mais decepcionante era o nada. Depois, em ordem ascendente, vinham: minhocas, centopéias, aranhas, besouros, formigueiros, sapos, cobras, camundongos, tritões e salamandras. Os dois últimos eram os melhores e mais raros.
Às vezes nos limitávamos a olhar e meditar, em seguida recolocávamos a pedra no lugar. Outras vezes cutucávamos com um pau os seres encontrados para ver o que acontecia.
Muitas vezes me perguntam: “Qual a diferença entre escrever poesia e ficção?” E certamente é isso: com um poema lírico, você olha, medita e recoloca a pedra no lugar. Com a ficção, você cutuca o que encontrou para ver o que acontece.
Em ambos os casos, porém, primeiro é necessário que haja algo debaixo da pedra, e essa é a parte que não se pode controlar nem prever. É aí que entram em cena a esperança, o desespero e o bloqueio do autor. Como sabem todos os escritores de ficção e especialmente os poetas, há uma parte de sua obra que não pode ser escolhida: é ela que o escolhe, e você pode ou não seguir o caminho apontado. Se o que estiver sob a sua pedra não for uma salamandra, não adianta tentar transforma-la em uma.
Se você acha que uma salamandra debaixo da pedra é metáfora muito fria ou esquiva para o elemento inesperado na criação, posso substitui-la pelo anjo com quem Jacó luta no Livro do Gênege. Dessa luta noturna Jacó emerge com um duplo dom: um ferimento que é ao mesmo tempo uma benção. A maioria das pessoas prefere anjos a salamandras, como símbolo da inspiração, embora um seja tão extraordinário quanto o outro.
Em todo caso, o que estiver sob a pedra, ou a presença dos anjos, não depende do escritor, e sim do que quer que seja responsável pelo acaso, pelo destino, pela capacidade de encontrar dádivas e pelos dons.

Margaret Atwood, poeta e romancista canadense, publicou quase um livro por ano nas três últimas décadas.

quinta-feira, abril 26

Espirituosidade via telégrafo

Fonte : Revista Seleções
Data : Maio de 1998
Autor : Christopher Buckley

Antes da opção do e-mail, a saída era o telegrama.

Verificando meu e-mail outro dia, vi meia dúzia de mensagens, nenhuma com menos de cem palavras ou realmente urgente. Uma delas, de alguém que eu acabara de conhecer, continha 1.286 palavras.
Nos dias em que mensagens eletrônicas eram de fato urgentes, cada palavra contava – literalmente. Lembro-me de tentar reduzir um telegrama às 15 palavras da tarifa reduzida. Os telegrafistas, além de excelentes editores de texto, eram tão rigorosos que não permitiam que você se esquivasse tentando transformar múltiplas palavras em uma só com a simples inclusão de hífens. “Abraços-e-beijos?’ são três palavras, senhor.”
Já se passou muito tempo desde a última vez que recebi ou enviei telegrama. Chamadas interurbanas baratas, fax e e-mail nos permitem ser tão prolixos quanto quisermos. E na ânsia da comunicação instantânea, mal fazemos pausa para lamentar o fim do telegrama como gênero literário.
À medida que desaparecem de nossas vidas aqueles típicos formulários de telegramas, o mesmo acontece à poesia, ao drama e à espirituosidade.
Os telegramas tem o próprio código de palavras – PONTO, BREVE, CONTINUANDO, AVISEM, -, representando sentenças congeladas. O formulário em si foi criado para obter concisão.
Em sua introdução a Barbed wires, compilação feita por Joyce Denebrink de telegramas engraçados, Marvin Kitman escreveu que o americano Samuel Morse, inventor do telégrafo, “despiu a língua de suas inutilidades”. A primeira mensagem oficial telegrafada de Morse, enviada em 24 de maio de 1844 do Capitólio americano, continha apenas quatro palavras: VEJAM UM FEITO DIVINO.
Desde aquelas batidinhas na tecla do primeiro telégrafo de Morse até a intensa atividade nas teclas do aparelho cento e trinta e tantos anos depois, os cabos vibraram com ditos espirituosos. Não havia instrumento mais perfeito a fim de se dizer algumas verdades para alguém.
O melhor de todos foi, provavelmente, aquele enviado a Lord Home, ministro das Relações Exteriores britânico: “VÁ PARA O INFERNO. SEGUE CARTA COM INSULTOS.” Dois titãs da réplica se sobrepujaram quando George Bernard Shaw convidou Winston Churchill para a estréia de sua nova peça; “ESTOU RESERVANDO PARA VOCÊ DUAS ENTRADAS PARA MINHA PREMIÈRE. VENHA E TRAGA UM AMIGO – SE TIVER UM..” A resposta de Churchill: “IMPOSSÍVEL COMPARECER À PRIMEIRA APRESENTAÇÃO. ASSISTIREI À SEGUNDA, SE HOUVER.”
O tráfego de telegramas entre os correspondentes de guerra e seus diretores na matriz propiciou grandes momentos. Quando a Itália invadiu a Etiópia em 1935, circulou em Londres um falso boato de que uma enfermeira americana havia sido morta num ataque aéreo de surpresa. O enviado especial Evelyn Waugh recebeu essa mensagem de seu editor: “NECESSITO IMEDIATAMENTE HISTÓRIA ENFERMEIRA AMERICANA EXPLODIDA.” Waugh telegrafou de volta: “ENFERMEIRA NÃO EXPLODIDA.”
Quando em 1898 certo ilustrador em Havana telegrafou a William Randolph Hearst: “NÃO VAI HAVER GUERRA.” Hearst telegrafou de volta: “VOCÊ FORNECE AS IMAGENS E FORNECEREI A GUERRA.” Em pouco tempo se desencadeou a Guerra Hispano-Americana.
Aquilo que se lia em telegrama dependia do ponto de vista do leitor. Determinado advogado que inesperadamente ganhou uma causa difícil para seu cliente telegrafou: “JUSTIÇA TRIUNFOU.” O cliente respondeu: “RECORRA IMEDIATAMENTE.”
No meio de comunicação em que a brevidade era fundamental, o erro mais insignificante podia ser um lampejo freudiano. Certo diretor de Hollywood, que estava em filmagens com a sedutora atriz principal, enviou a seguinte mensagem à esposa: “DIVERTINDO-ME MUITO. QUERIA QUE VOCÊ FOSSE ELA.”
Os militares não tentam ser engraçados em seus telegramas, mas às vezes acabam sendo.
Na época da Grande Armada Britânica, um marinheiro, querendo se assegurar de que seu almirante tivesse roupas limpas depois da viagem ao mar, telegrafou a terra: “QUEM VOCÊ RECOMENDA PARA MULHER DO ALMIRANTE?”, rapidamente seguido de “FAVOR INSERIR LAVADEIRA ENTRE MULHER E ALMIRANTE.”
Às vezes, a concisão levou à confusão. Em 1933, a embaixada americana na Bulgária telegrafou para seu país: “NASCEU A FILHA DA RAINHA IOANNA. ENVIAR CONGRATULAÇÕES AO PRIMEIRO-MINISTRO.”
Mas hoje, quando se vive na era de computadores que conseguem transmitir livros em três segundos, quem tem tempo para ser breve?

quarta-feira, abril 25

Ela tira música da madeira

Fonte : Revista Seleções
Data : Maio de 1998
Autor : Duane Noriyuki

Poderia a fabricante de violinos despertar o canto no bordo bósnio?

Primeiro foi a música dos galhos curvados pelo vento incessante. Antes de Bach ou Beethoven, antes das cordas ou notas escritas, o concerto soprava pela floresta. A árvore oferecia o canto em ascensão e declínio, até que, num crescendo vigoroso, foi derrubada. Então, fez-se silêncio.
Passaram-se décadas antes que a madeira, cortada com precisão e devidamente seca, chegasse à fabricante de violinos Rena Weisshaar, na Califórnia. O bordo em suas mãos foi da floresta Bósnia para os Estados Unidos por meio de um homem que ela amava, por vezes temia e nunca chegou a compreender plenamente. Hoje, porém, preparando-se para devolver a música àquela madeira, ele está sempre presente em seus pensamentos.
Na sua Alemanha natal, Rena freqüentou a escola de fabricação de violinos em Mittenwald, levada por seu amor pela música. Lá, apaixonou-se – pelo ofício, pela madeira e por um estudante americano.
Rena e Michael Weisshaar casaram-se em 1964 e foram para os Estados Unidos trabalhar com o pai de Michael.
Hans Weisshaar, um dos mais talentosos restauradores de violinos de sua época, viajava freqüentemente de sua oficina em Hollywood à Europa para adquirir material e as melhores madeiras. Rena trabalhava por muitas horas com Hans. Por vezes, avaliava o humor dele a distância e resolvia não se aproximar, pois Hans sabia ser dolorosamente indelicado. Mas tratando-se de madeira, Rena percebia a genialidade de seu trabalho.
Depois de um desentendimento com Hans, o casal mudou-se para Costa Mesa e abriu a própria oficina. Passaram quatro anos sem falar com Hans. Então, no natal de 1979, Michael e Rena apareceram à porta da casa de Hans. Rena estava grávida pela terceira vez, de Marianne. Ele convidou-os para entrar e a paz foi restabelecida.
No batizado de Marianne, Rena deu a Hans um violino que fizera. Observou-lhe o rosto enquanto ele o examinava, ansiando por sua aprovação.
“Bom trabalho”, disse ele. “Venha até a loja. Tenho algo para você.”
Hans levou-a para o local onde guardava a madeira.
“Leve o que quiser”, ofereceu ele.
Era sua forma de dizer que ela merecia a melhor madeira – o máximo do elogio. Além de uma grande caixa de madeira, Rena escolheu duas pranchas de bordo bósnio semelhantes, colocando-as debaixo da cama, para mantê-las em segurança.
Hans morreu e passaram-se anos. Então, em junho de 1996 Rena recebeu um telefonema de Haroutune Bedelian, violinista de concerto e professor associado de violino na Universidade da Califórnia, em Irvine. Queria saber se Rena poderia fabricar uma cópia de seu violino feito em 1699, por Giovanni Rogeri, que – como Antonio Stradivari - fora aprendiz na oficina de Nicolo Amati.
Rena ficou aturdida. Nunca fizera um violino para alguém tão conceituado quando Bedelian. Foi para casa e procurou embaixo da cama. Estava na hora de fazer seu precioso bordo tornar a cantar.
As datas e números de cada instrumento que Rena fabricou estão escritos na parede. O Bedelian será o número 27.
Primeiro, as pranchas em forma de cunha, de cerca de 40 centímetros, e cada qual mal dando para a metade da largura da parte de trás do violino, deviam ser coladas de modo a quase não aparecer a emenda. Esse trabalho pode tomar um dia inteiro e levar a pessoa às lágrimas.
No entanto, as duas placas de bordo só constituem parte de trás do violino. Ao todo, são 58 peças que compõem esse instrumento, trabalhando em conjunto para transmitir o intercâmbio preciso de vibrações. Fabricar um violino é como andar na corda bamba. As expectativas são muitas, mas o desastre anda à espreita.
Normalmente, Rena pode completar uma encomenda em 300 horas. Entretanto, para um fabricante de violinos, um mês passado na produção de um instrumento fraco é mês perdido. Um ano ou uma vida passados na fabricação de um instrumento excelente, que possa produzir sons superiores durante décadas ou séculos, é tempo bem gasto.
No princípio de agosto, após dois meses de trabalho no violino, Rena descobre uma imperfeição – bolsa de resina escondida na parte de cima, que é feita de abeto, a madeira mais ressoante. Ela poderia prosseguir e o abeto continuaria a parecer lindo. A música, porém, deve vir de dentro da madeira. Ela recomeça.
A arte de Rena baseia-se em padrões estabelecidos pelos mestres italianos, sobretudo Stradivari, Guarneri, Amati. Pouco foi escrito sobre suas técnicas ou o material que utilizavam.
Rena confia basicamente nos instintos e métodos tradicionais, usando poucos instrumentos elétricos por medo de que uma vibração excessiva possa prejudicar a madeira. “Não sei o que diria um cientista, mas não me importo”, diz ela.
No início de 1997, o violino está pela metade. Rena aproxima a madeira do rosto, de modo que esta capte a última luz do dia, inclinando-a lentamente de um lado ao outro para examinar as sombras que indicam alguma irregularidade.
Em fins de fevereiro, Rena começa a parte que exige maior esforço físico na construção de um violino. Bordo fixo em seu lugar, ela trabalha com uma goiva para escavar o interior. Seus gestos são rápidos e explosivos. No final ela deve deixar a madeira de todo o violino com diferentes espessuras, que variam de 2,3 a 4,6 milímetros. Se a parte de trás for fina demais, o tom desaparece rapidamente. Se estiver grossa demais, o som será surdo.
Espirais finas e regulares surgem da lâmina de Rena. O tom do aço contra a madeira muda quando ela aplaina a parte de trás. De vez em quando Rena pára, aproximando a madeira do ouvido e batendo nela com um dedo, querendo ouvir um fá sustenido.
A raspagem final será feita com plainas pequenas, algumas não maiores do que um dedal. Isso exige coragem. “Quando vou usar as plainas, fico quase doente de medo”, confessa ela. “É importantíssimo.”
No entanto, ela tem de continuar. Talvez fosse essa a realização de Hans: treinar uma geração de fabricantes e restauradores dispostos a enfrentar o medo e a dúvida.
Em março, Rena entra na fase final. Prepara-se para cortar os furos dos sons, no alto. Ensaboa a lâmina da serra de vaivém manual para lubrifica-la e segue um modelo. Em seguida, usa faca para conseguir as medidas precisas tiradas do Rogeri de Bedelian. Depois de uma hora respira fundo. “Pronto”, diz. “De repente tem um rosto.”
Em abril, Rena completa o trabalho na madeira. Ferve e seca a haste de um eqüisseto – planta silvestre -, esfregando-a levemente na madeira. A superfície um tanto abrasiva deixa um acabamento cristalino. Com um pedaço de lençol de algodão, ela esfrega óleo delicadamente na superfície, e depois pendura o instrumento para secar no varal da oficina.
Vinte e duas mãos de verniz dão ao violino a cor castanha. A última semana passa-se no acréscimo das cavilhas, cavalete e outros acessórios. Quase um ano depois de ter começado, finalmente as cordas são colocadas.
A ansiedade de Rena aumenta: não há meio de saber como o instrumento vai funcionar até que um músico explore suas profundezas. “Quem sabe?, diz ela. “Talvez tenha o som de uma panela.”
Bedelian chega no dia 5 de maio. Rena vai aos fundos da oficina e volta com o violino. Bedelian o segura a distância, examina sua cor e forma, coloca um lenço sobre o descanso para o queixo.
“Então lá vai”, diz, levantando o arco.
Toca algumas escalas e pára de súbito. Rena fica gelada.
“É tal e qual o meu violino”, comenta ele.
Rena volta a respirar.
Bedelian toca mais, olhos fechados, movendo o arco devagar e depois acelerando, tocando avidamente cada vez mais alto, levando-o em seguida com elegância de novo a um murmúrio, e afinal abre os olhos.
“Excelente!”, diz sorrindo. “Ótimo!”
E por fim, com calma.
“Bravo!”
Rena agora terá uma sensação de vazio, quando o violino sair da oficina. Entretanto, não consegue esconder o orgulho que sente por aquele instrumento, nem esquecer as palavras de Hans. Só gostaria de que ele ainda estivesse vivo e as repetisse:
“Bom trabalho.”

terça-feira, abril 24

Drama em Ponta Bergen

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1971
Autor : Thomas Gallagher

Como o comandante de um rebocador e seus cinco marinheiros ajudaram a evitar o que poderia ter sido a maior catástrofe da história da navegação.

Para o capitão George Sahlberg, comandante do rebocador Julia C. Moran, o dia 16 de junho começou rotineiro. Ele e seus cinco tripulantes tinham rebocado uma barcaça de combustível, passando pela Estátua da Liberdade até a um navio ancorado na baía de Nova York. Com mais dois rebocadores iguais da Companhia Moran, eles haviam levado um transatlântico para seu ancoradouro no Rio Hudson. Depois, no local onde estavam consertando um cais, em Brooklyn, eles habilmente encostaram uma torre de bate estacas.
Eram duas horas da tarde de um dia de céu azulado, águas tranqüilas e uma ligeira brisa do sul. Estavam amarrados no estaleiro Moran em Staten Island, aguardando ordens. Sahlberg, homem troncudo, de rosto crestado e mais de 30 anos como comandante de rebocadores da Moran, manteve a máquina funcionando. “Nesse negócio, nunca se sabe o que nos espera.”
Quinze minutos depois, pelo seu rádio de ondas curtas, veio a ordem que tornou aquele um dia que Sahlberg jamais esqueceria: “Dirija-se para a Ponta Bergen. Há um problema lá.” E depois silêncio.
Pela voz, Sahlberg percebeu que o negócio era grave. As águas confinadas ao largo da Ponta Bergen eram das mais perigosas da baía de Nova York. Muitas vezes navios tanques com dois quarteirões de comprimento passam a metros um do outro em seu curso pelo Kill Van Kull, estreito canal que separa Staten Island de Bayonne, em Nova Jersey.
“Oh, Inge!”, berrou Sahlberg ao seu imediato. “Encrenca perto da Ponta Bergen! Vamos embora!”
Enquanto o Julia se dirigia para o Kill Van Kull, Inge Nordberg e o marinheiro Jerry Thorpe prepararam cabos extra fortes. O maquinista chefe Richard Decker e seu ajudante George Hudson cuidaram da mangueira de incêndio, extintores e mais equipamento de rebocar. Até Frank Oliveiras, o cozinheiro, deu uma ajuda.
Ao dobrar uma ponta de terra, da cabina alta do Julia, Sahlberg tinha ampla visão. Diretamente à frente, logo ao lado da Ponta Bergen, ele viu dois imensos navios tanques formando um ângulo reto, e tão juntos que era fácil perceber imediatamente que tinham colidido no meio do canal. Embora seus próprios rebocadores estivessem por perto, o Julia foi de fato o primeiro socorro a chegar ao local do sinistro.
“Não há fogo”, disse Inge a Sahlberg.
Cada qual sabia o que o outro estava pensando. Naquele dia, mais cedo, passando pelo Kill, tinham cruzado por um dos navios tanques, o Texaco Massachusetts, de 175 metros de comprimento. Ele estava descarregando gasolina de alta octanagem, o que significava que o ar dentro de seus tanques, agora vazios, estava carregado de explosivas emanações de gasolina. Isso o tornava ainda mais perigoso do que carregado; era uma verdadeira bomba flutuante de 16.500 toneladas a apenas uns 200 metros do parque de tanques da Texaco na extremidade da Ponta Bergen, onde se encontravam armazenados 47,8 milhões de galões de derivados de petróleo altamente inflamáveis.
Sahlberg não sabia, mas o outro navio tanque, o Alva Cape, de 11.252 toneladas, levava 4,2 milhões de galões de nafta, um solvente de petróleo altamente volátil. E de onde estava não podia ver a fenda de nove metros na sua proa, os milhares de galões de nafta jorrando de seus tanques dianteiros, que se espalhavam com perigo mortal sobre a água em volta dos navios.
Mas a bordo do rebocador Latin American, preso ao Texaco Massachusetts a apenas 45 metros do fluxo de nafta, a tripulação percebeu o perigo e lutou desesperadamente para afrouxar seu cabo de reboque. Em vão. Uma fagulha do gerador incendiou os vapores de nafta, sugados por um ventilador para dentro da casa de máquinas. O rebocador explodiu, espalhando fogo e estilhaços por toda a volta. Uma enorme labareda em forma de cogumelo iluminou a área quando os vapores pairando sobre os navios e vertendo do Alva Cape também se incendiaram.
Para Sahlberg, agora a 500 metros da cena dantesca, parecia o princípio do fim do porto de Nova York. O Alva Cape, um inferno fragoroso, impelido pela corrente girava para a esquerda em torno de sua âncora. Dentro de cinco minutos ele estaria emparelhado com o Texaco Massachusetts. Se este explodisse, toneladas de metal incandescente voariam sobre os tanques da Texaco na Ponta Bergen.
Uma vez liquidados os tanques da Texaco, as chamas se espalhariam rapidamente para os tanques do terminal da Ross Oil, a apenas alguns quarteirões de distância, e depois para os tanques vizinhos da Humble Oil Company e das Indústrias Bayonne. Ao todo, 26 terminais e refinarias, contendo bilhões de galões de produtos químicos e derivados de petróleo inflamáveis, espalhavam-se em torno da área de colisão. Se o fogo se alastrasse, o porto e todos os navios estariam em perigo. A Estátua da Liberdade seria envolvida pelas chamas. Todas as janelas do centro de Nova York seriam estilhaçadas quando explodissem os tanques de petróleo. Do lado de Nova Jersey, as cidades de Newark, Bayonne, Elizabeth, Gulfport, Corteret e Perth Amboy teriam de ser evacuadas e, com a maré subindo, o óleo ardendo sobre as águas seria levado para a própria Manhattan.
Se Sahlberg tivesse escapado com o Julia de uma situação daquelas, ninguém o culparia. Mas ele estava vendo os tripulantes do Alva Cape, alguns saltando ao mar com as roupas em fogo. Para alcançar a Ponta Bergen, eles teriam de nadar em volta de seu navio e através da nafta ardente. O Julia, a apenas 200 metros deles, era a única salvação.
Sahlberg não hesitou. “Mandem ambulâncias e médicos para as docas”, irradiou ele para o seu posto. “Vamos avançar para recolher os sobreviventes.”
Aproximou-se a favor do vento, para que a fumaça soprasse para longe do Julia. Logo a água em volta do seu rebocador formigava de homens gritando para serem puxados para bordo. Mais adiante, porém, havia dois sobreviventes desesperados numa corrida de vida ou morte com a parede de chamas que se avolumava sobre eles como um vergalhão. “São eles que estão em maior perigo”, disse Sahlberg para sua tripulação. “Temos de socorre-los primeiro.”
O Julia estava tão perto do Alva Cape que sua tripulação ouvia o crepitar das chamas e o ruído surdo das bolhas de tinta arrebentando na linha da água. Tensos, Nordberg e Thorpe esperavam no convés, os cabos de içar preparados. Ambos lançaram-nos com perfeição e os cabos caíram a poucos centímetros dos dois homens na água. Desesperadamente, os homens os agarraram. Mas aí aconteceu outra coisa pavorosa.
O segundo dos rebocadores de serviço, o Esso Vermoat, a apenas 100 metros do Alva Cape, explodiu, matando toda a tripulação. Labaredas brancas lançavam-se em todas as direções e agora o próprio Julia estava pegando fogo. “Não tragam esses homens ainda!” gritou Sahlberg. “Vou dar marcha à ré e nós os puxaremos atrás de nós.“
Devagar, para não abalroar nenhum dos sobreviventes por quem tinha passado antes, ele puxou os homens para fora do mar de chamas. Livres do inferno, os dois foram rapidamente içados e enrolados em cobertores.
Agora cada segundo era importante. Os homens em volta do rebocador, aos gritos, tinham de ser içados para bordo antes que a nafta em fogo os alcançasse. Enquanto Sahlberg manobrava seu rebocador no meio daquelas cabeças ondulantes e braços estendidos, Nordberg e Thorpe, na proa, lançavam cabos para os homens mais afastados. O maquinista, seu ajudante e o cozinheiro concentraram-se nos que estavam mais perto e podiam ser içados à mão.
Da cabina do comando, Sahlberg viu o Alva Cape em chamas aproximar-se cada vez mais do Texaco Massachusetts. Estava na hora de correr. Comunicou-se com a sua base: “Estamos a caminho do estaleiro. Vinte e três sobreviventes.”
Minutos depois os sobreviventes eram transferidos do rebocador para as ambulâncias à espera. Sahlberg e sua tripulação voltaram ás pressas para o local do sinistro. Três barcos de bombeiros, dois da Guarda Costeira e mais cinco rebocadores da Morgan haviam chegado. Enquanto os bombeiros lançavam enormes jatos de água e espuma sobre o Alva Cape, o navio tanque em chamas emparelhou – aproximando-se cada vez mais – com o Texaco Massachusetts. Pela segunda vez naquele dia Sahlberg percebeu o que era preciso fazer e não hesitou. Coordenando os esforços do Julia com os dos outros rebocadores da Moran, lançou-se à tarefa mais urgente de todas: rebocar o Texas Massachusetts para longe do Alva Cape antes que este explodisse.
Não seria fácil. O Texaco Massachusetts tinha sido abandonado, de modo que não havia ninguém a bordo para puxar a âncora. Se os rebocadores tentassem arrasta-lo, sua âncora cortaria o cabo principal das linhas de força e telefone entre Staten Island e Nova Jersey.
Enquanto dois rebocadores manobravam sob a proa do navio tanque, Sahlberg aproximou o Julia pelo lado de estibordo. Dali, Nordberg galgou a escada de abordagem do rebocador indo para o convés superior do navio tanque. Mergulhando até aos joelhos na espuma contra fogo, ele puxou para bordo uma pesada espia do Julia e prendeu-a . Em seguida o Susan Moran colocou-se ao longo do navio tanque e mais uma vez Nordberg, usando apenas a força bruta, içou seu cabo de rebocar e também o prendeu. Enquanto isso, mais gente da Moran tinha subido no navio; vendo que ainda havia energia elétrica a bordo, acionaram o mecanismo da âncora e ergueram-na acima da água.
Com os barcos da Guarda Costeira abrindo caminho, o navio escaldante e cheio de fumaça foi rebocado a passo de enterro para um ancoradouro perto do Brooklyn. Ali as tripulações dos rebocadores soltaram seus cabos e retornaram às suas ocupações rotineiras. Depois souberam que o incêndio a bordo do malfadado Alva Cape tinha sido debelado.
Naquela noite, ao volta para casa em Brielle, Nova Jersey, Sahlberg ficou encabulado quando o receberam como herói. Modesto, ele dizia que não tinha feito mais do que os outros. Mas os fatos mostravam o oposto. Trinta e três homens tinham perecido no desastre. Dos 77 que foram salvos, o Julia recolhera 23. Além disso, fora ele quem dirigira o trabalho de afastar o Texaco Massachusetts daquele inferno, evitando assim o que poderia ter sido uma das maiores catástrofes da história da marinha mercante.
Quatro meses depois, o Prefeito John Lindsay, concedeu a Sahlberg uma condecoração municipal, em reconhecimento por sua “liderança e coragem”. No mês seguinte, o Departamento do Comércio concedeu ao Julia Moran o “Prêmio de Valor Marítimo”, a maior honra que o governo americano pode conceder a um navio mercante. Sahlberg recebeu ainda uma medalha por Serviços Excepcionais à Marinha Mercante e seus tripulantes receberam elogios, condecorações e medalhas por serviços meritórios. Antes do fim do ano, foi prestada a Sahlberg a maior homenagem de todas: a “American Bureau of Shipping Valor Medal” ( Medalha de Bravura do Departamento Americano de Marinha Mercante ), concedida apenas três vezes desde sua criação em 1928.
Hoje George Sahlberg está reformado, mas de vez em quando, na varanda de sua casinha à beira mar, em Nova Jersey, ele mostra a medalha a um amigo. De todos os aposentos da casa, ele prefere a varanda pois dali avista seu barco de pesca balançando na enseada, a alguns metros da praia, e fica olhando seus netos pulando de alegria cada vez que pescam um caranguejo.

segunda-feira, abril 23

Chamado selvagem

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1998
Autor : Penny Porter

Para as criaturas selvagens que perambulavam por nossa fazenda no Arizona, a vida era difícil e a fome, constante. Cães ferozes perseguiam bezerros recém-nascidos. Quatis desvairados saqueavam o galinheiro. Coiotes uivavam em eterna angústia. Mas havia também os gritos lamentosos dos gatos selvagens, solitários vagabundos do deserto, que rasgavam meu coração.

Sem nenhum lugar para chamar de lar, esses descendentes perdidos de gatos domésticos, voltaram á vida primitiva. E a cada ano, quando a fome tocaiava nas montanhas e serras ressecadas, muitos buscavam refúgio em minha propriedade.
Em uma fria manhã de março, eu estava ordenhando uma vaca enquanto nossos cinco gatos se esfregavam em minha calça, aguardando impacientes a primeira refeição. Eles não sabem o que é a fome, pensei, tentando contar os gatos selvagens esqueléticos, encolhidos por trás das cocheiras. A maioria estava doente. Várias gatas estavam grávidas. Alguns exibiam cicatrizes horríveis, evidência muda de desesperadas batalhas pela vida.
Minha tarefa foi interrompida quando Jaymee, a caçula de nossos seis filhos, entrou correndo no celeiro, carregando uma gatinha recém-nascida, branca como neve. Por trás da orelha esquerda tinha mancha cor de cobre.
“Seus irmãos estão todos mortos!”, gritou Jaymee.
“Aposto que a grande coruja orelhuda os pegou”, comentei. “Você precisa encontrar a mãe dela. A gatinha precisa mamar.”
“A mãe morreu também!”, lamentou Jaymee. “Que vamos fazer, mamãe?”
Jaymee observa-nos lutando para manter vivos os bezerros e potros órfãos. Agora, ela encontrara algo do tamanho ideal para uma criança de 6 anos: um precioso fragmento de vida, que podia carregar, amar e cuidar sozinha.
“Sem a mãe ela morrerá, não é?”, perguntou.
“Sim”, respondi. “Será necessário um milagre para salva-la.”
Levamos a gata para dentro, envolvendo-a em uma luva de lã, e a alimentamos com leite, contendo um pouco de antibiótico, através de um conta-gotas. Em seguida, colocamos a gatinha em uma incubadora redonda usada para chocar ovos de galinhas raras.
“Posso levar a incubadora para o quarto?”, perguntou Jaymee.
Assenti com um movimento de cabeça.
“Mas não conte ao papai agora. Você sabe o que ele pensa dos gatos.”
Os gatos selvagens podem ter raiva e infecções. Bill temia que contaminassem nosso gado. Eu sabia que Jaymee se apegaria ao animal e, o pior de tudo, algo me dizia que essa gata não ficaria por perto durante muito tempo, quando fugisse, tinha certeza de que o coração de Jaymee se partiria. Naquele momento, porém, havia tanta esperança nos olhos de minha caçula que eu precisava ajuda-la. Decidi que durante algum tempo manteria silêncio sobre a gata.
Naquela noite, Jaymee e Becky, a irmã de 9 anos, alimentaram a minúscula gatinha, e depois a colocaram outra vez na incubadora com redoma de plástico. Ouvi Becky sussurrar para Jaymee.
“Contei 22 gatos selvagens no celeiro esta manhã! Papai está furioso.”
“Ele sabe que na verdade temos 23?”, perguntou Jaymee.
“Ainda não”
Noves dias depois, Jaymee mostrou ao pai a gatinha na incubadora. Bill ficou um pouco zangado e saiu do quarto. Na manhã seguinte, os olhos da gatinha se abriram, e Jaymee deu-lhe o nome de Milagre.
Não poderia haver outro nome para essa surpresa minúscula com o nariz rosado. Minha esperança era de que pudéssemos criar Milagre como um gato doméstico, de celeiro. No entanto, cada vez mais eu percebia sinais de que sua liberdade nunca poderia ser tolhida. Em vez de dormir na própria cama, como um gato doméstico, Milagre preferia se esconder em armários e atrás de cortinas. Em outras ocasiões, nós a encontrávamos nas botas de Bill ou adormecida embaixo das camas. A pergunta da casa passou a ser: “Onde está Milagre?”
Certa manhã Bill surpreendeu a gatinha mergulhando do alto das cortinas. E quando ela pulou nas calças de Bill, com as garras abertas, ele decretou que a varanda fechada dos fundos seria seu novo lar.

“Onde está Milagre?”
Um dia Jaymee se atrasou para o café da manhã.
“Milagre não está na varanda”, disse choramingando.
“Ela tem de estar em algum lugar”, comentei. Procuramos por toda parte, mas nem sinal da gata.
“Vou colocar comida na tigela de qualquer forma”, falou Jaymee, olhando para o pai. “Ela está só brincando, sabe?”
Claro, pensei. Um jogo em que os gatos selvagens são campeões. Esconder-se!
Durante vários dias, a tigela de Milagre aparecia vazia de manhã, mas não conseguíamos encontra-la. Por fim, notamos pegadas pretas desde a lareira até a comida e a água, e voltando à lareira.
“Papai!”, gritou Jaymee. “Milagre está na chaminé! Precisamos tira-la de lá!”
“Não vou subir pela chaminé atrás de um gato”, resmungou Bill. “Ela vai descer.”
Jaymee virou-se para o irmão de 19 anos.
“Por favor, Scott!”, implorou. Momentos depois, o longo braço de Scott apalpava por trás do abafador parcialmente aberto.
“Peguei-a!”, gritou Scott, puxando um novelo de lã cor de carvão para fora do fumeiro.
“Oh, Milagre, que menina má!”, exclamou Jaymee, e saiu correndo para limpa-la. Ao contrário da maioria dos gatos, Milagre gostava de tomar banho – e apreciava especialmente o secador de cabelos.

Sangue de gato selvagem
Oferecemos a Milagre bolinhas de gude, pedrinhas e laços com os quais os gatos domésticos gostam de brincar, mas nada lhe interessou. Em vez disso, aguardava impaciente os passeios lá fora, onde adquiria vida, correndo em campos de alfafa ou agachando-se em frente ao galinheiro, tremendo de desejo ao ver as 200 galinhas.
“Olhe, que lindo! Ela quer brincar com as galinhas!”, dizia Jaymee.
Brincar? Com o rabo contraído? As garras minúsculas se estendendo e se retraindo? Eu não tinha tanta certeza. Eu lera que, nos gatos, a habilidade de matar precisa ser ensinada pela mãe. Entretanto, não conseguia deixar de me perguntar se tal característica não poderia surgir naturalmente em Milagre. Com sete meses, ou uivos noturnos começaram. Seria o chamado selvagem?
“Ela vê coisas no escuro que não podemos ver”, contou Jaymee, durante o café. “Segredos e... gatos vadios!”, acrescentou Bill. Ele estava com torcicolo e mal-humorado por ter dormido com a cabeça embaixo do travesseiro, tentando bloquear os uivos noturnos de Milagre. “Maldita gata”, resmungou.
Uma noite, Bill entrou para o jantar com uma coleção de chocalhos de cascavéis. “Encontramos um ninho com mais de 50 na fazenda de Cowan”, comentou. Selecionou o maior e sacudiu-º instantaneamente, o nariz de Milagre apareceu na janela da cozinha. Suas costa se arquearam, os olhos de pedra faiscaram. Separamos um chocalho para que ela brincasse e, de súbito, ele estava sendo jogado de um lado para o outro, perseguido de forma selvagem por Milagre. Nossa gatinha afiava as habilidades felinas com esse novo brinquedo – sua primeira presa.
Certo dia, descobri uma ferida redonda na testa de Milagre. Primeiro, suspeitei de que se tratasse apenas do resultado de uma briga, até que bolhas e pústulas surgiram também no rosto e no pescoço de Jaymee.
“Porrigem”, disse o veterinário, depois de examinar a gata e a criança sob a luz azul de diagnóstico. A dupla brilhava como vaga-lumes em noite de verão. Depois de administrar o tratamento para Jaymee e Milagre, o veterinário avisou.
“Diga para Bill tomar cuidado com o gado. Isso pode ser contagioso.”
Naquela noite, Bill chegou para o jantar, abatido:
“Dois touros de exposição estão com porrigem”, comentou.
Gelei por dentro. Pensei na quarentena, no custo dos antibióticos e das doses de cal e enxofre para animais pesando quase uma tonelada. Eu queria contar a Bill sobre Milagre, mas Jaymee foi mais rápida.
“Oh, papai!”, disse ela. “Pense em como seria bonito ver os touros sob a luz azul! Milagre e eu brilhávamos como anjos!”
Bill não ficou com raiva, como eu esperava. Nem ele pode deixar de sorrir ouvindo a descrição de Jaymee. Uma noite, algumas semanas depois, Milagre não voltou quando a chamamos. Então, o telefone tocou.
“Sua filha tem uma gata branca?”, perguntou um cliente que comprara uma tonelada de alfafa pouco antes do meio-dia. Ele vivia a 95 quilômetros de distância.
“Tem sim”, respondi.
“Acho que ela gosta de se esconder em caminhões”, continuou ele. “Eu não sabia que estava lá, até que cheguei em casa.”
Um músculo latejou nas mandíbulas de Bill, enquanto ele apanhava o chapéu. Momentos depois, Jaymee e ele desapareceram no escuro, para os 190 quilômetros de viagem de ida e volta para buscar a gata.

Ataque de cobra
Em pouco tempo, Milagre era uma viajante experiente. Embora carros e caminhões fossem o transporte favorito, ela desaparecia com mais freqüência a pé e sumia durante vários dias; ás vezes, até semanas.
No primeiro aniversário de Milagre, ouvi Scott gritar de um curral de cavalos. “Milagre, saia daí!” E no fôlego seguinte: “Papai! Cascavel!”
Bill agarrou uma pá na caminhonete e correu para pegar o kit contraveneno. A cascavel picara uma égua entre as narinas. A égua estava cambaleando, raspando o chão com as patas, apavorada. Em minutos, a cabeça começou a inchar. Ela não conseguia respirar.
Rapidamente, Bill inseriu-lhe um respiradouro e administrou o antídoto. Rezamos para que a crise passasse. Scott disse ao pai: “Se não fosse por Milagre, agitando-se como um relâmpago, eu não teria visto nada. A gata estava enlouquecida, papai, atacando as cobras. “Ele olhou para mim: “Mãe, acho que a cobra pegou Milagre também.”
Quando encontramos a gatinha, ela estava imóvel – olhos selados, cabeça inchada. A garrafa de soro antiofídico estava vazia. “Vou tentar um pouco de cortisona”, disse Bill. “É tudo o que temos.”
Deitei a bolinha peluda na incubadora. Jaymee ajoelhou-se ao lado da gata, murmurando: “Você vai ficar bem, querida.” Depois de dois dias em coma, Milagre começou a melhorar. Juramos nunca mais deixa-la sair. No entanto, quando recuperou as forças, voltaram também os impulsos nômades.
Milagre tinha dois anos e meio quando desapareceu pela última vez. Sentimos muita saudade. Até mesmo Bill, a seu modo.
Nos anos seguintes, Jaymee adotaria muitos gatos, mas a memória de Milagre sempre se manteria próxima ao coração. Com freqüência, antes de dormir, ela viria comigo quando eu fiscalizava as galinhas ou um potro recém-nascido. Com sua lanterna, Jaymee iluminava manjedouras vazias e passagens entre pilhas de forragem. “É melhor tomar cuidado”, eu avisava. A resposta de Jaymee era sempre a mesma. “Eu tomo. Mas não posso deixar de procurar Milagre.”

“Eu sabia!”
Uma noite, três anos depois, Bill entrou pela porta dos fundos e seus olhos brilhavam de malícia. “Jaymee!”, gritou. “Venha aqui fora um minuto!” Saímos todos.
Camuflada contra o telhado de metal gasto do celeiro, agachava-se uma gatinha que enfrentara muitas lutas. Seu pêlo empoeirado encontrava-se rasgado por cicatrizes e a orelha direita, grudada no crânio. Mas a orelha esquerda, embora dilacerada, deixava perceber sinais de mancha.
“Milagre!”, sussurrou Jaymee, o rosto brilhando de entusiasmo.
Todos compartilhávamos a alegria de Jaymee, porém eu estava preocupada. Tinha certeza de que aquela não era mais a Milagre que Jaymee amara anos antes. Era gata selvagem, enrijecida pelas lutas. Em seu mundo, não podia haver lugar para a memória de uma menininha que a carregara, banhara e apreciara-lhe os modos evasivos. Jaymee ficara abalada quando Milagre desaparecera durante aqueles três anos. Será que ficaria ainda mais magoada agora, quando Milagre não a reconhecesse?
Enquanto isso, enfeitiçados, observamos que os olhos de Milagre se fixaram em um passarinho ali perto.
“Não, Milagre!”, berrou Jaymee. A gata hesitou. Então, virando a cabeça em direção à voz familiar de Jaymee, desceu do telhado e pulou nos braços estendidos da menina.
“Eu sabia que você voltaria!”, disse. “Eu sabia!”
Exceto por passeios ocasionais que duravam dois dias, Milagre não sumiu mais. Alimentava-se de comida para gatos, deixava ratos na porta dos fundos e pareceu se acostumar com a vida de gata doméstica – até a manhã em que Bill a encontrou no banco do trator. Seu coraçãozinho vigoroso simplesmente parara. Tinha 7 anos.
“Pelo menos, Milagre morreu em casa”, disse Jaymee, baixinho. “Morreu junto à família.”
Jaymee e todos nós aprendêramos a lição que nos acompanharia para sempre: mesmo nas mais estranhas culturas animais, o amor de uma criança é capaz de superar o primordial chamado selvagem.

sábado, abril 21

Bem vindos à escola de pais

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1999
Autora : Colin Bowles

Está pensando em ter um bebê? Leia esta cartilha...

1 – Mulher: para se preparar para a maternidade, vista um penhoar e prenda um saco de feijão na barriga. Fique assim por nove meses. Depois disso, tire 10% dos feijões.
Homem: vá à farmácia do bairro, esvazie a carteira sobre o balcão e diga ao atendente para pegar o que quiser. Depois vá ao supermercado e acerte para que o seu ordenado seja pago diretamente ao escritório central.

2 - Para saber como serão suas noites, ande pela sala das 5 às 10 da noite, carregando um saco molhado, pesando de três a cinco quilos. Às 10 horas, largue o saco, ajuste o despertador para a meia-noite e vá para a cama. Levante-se à meia-noite e caminhe pela sala com o saco até 1 da manhã. Acerte o despertador para as 3. Não conseguindo dormir de novo, levante-se às 2 e prepare uma bebida. Vá para a cama às 2:45. Levante-se quando o despertador tocar às 3 horas. Cante no escuro até as 4. Programe o despertador para as 5. Levante-se. Prepare o café da manhã.
Faça isso durante cinco anos. Conserve o bom humor.

3 – Tire o miolo de um melão e faça um buraco na lateral, mais ou menos do tamanho de uma bola de golfe. Com um barbante, pendure-o no teto e balance-o de um lado para o outro. Em seguida, apanhe uma tigela de papinha e tente pôr colheradas da mistura no buraco feito no melão, fingindo que é um aviãozinho. Continue até conseguir introduzir metade da papinha. Despeje o resto em seu colo. Agora você já sabe como é dar comida a um bebê de 1 ano. Querendo se preparar para quando as crianças começarem a andar, espalhe manteiga no sofá e geléia em todas as cortinas. Esconda um pedaço de peixe frito atrás do aparelho de som e deixe-o lá por alguns meses.

4 – vestir crianças pequenas não é tão fácil quanto parece. Primeiro, compre um polvo e uma sacola de amarrar. Tente colocar o polvo dentro da sacola de modo que nenhum dos tentáculos escape. Tempo para a tarefa: a manhã inteira.

5 – Compre um sorvete de chocolate, coloque-o no porta-luvas do carro e deixe-o ali. Enfie uma moeda de 50 centavos no toca-fitas. Amasse um pacote de biscoitos de chocolate no banco traseiro. Risque ambos os lados do carro com uma chave. Pronto, seu carro está perfeito para a família.

6 – Apronte-se para sair. Espere do lado de fora do banheiro durante meia hora. Saia pela porta da frente. Volte para dentro. Saia. Entre de novo. Torne a sair e vá até o portão. Retorne à casa. Volte ao portão. Ande pela rua bem devagar por cinco minutos. Detenha-se para examinar cada ponta de cigarro, pedaço de chiclete, lenço de papel sujo e inseto morto que houver no caminho. Retorne. Grite que não agüenta mais até os vizinhos saírem de casa e olharem espantados para você. Agora já pode levar uma criancinha para passear.

7 – Vá ao supermercado, levando consigo o que encontrar de mais parecido com uma criança em idade pré-escolar: uma cabra adulta seria o ideal. Se pretende ter mais de um filho, leve mais de uma cabra. Faça as compras da semana sem perder os animais de vista. Pague tudo que eles comerem ou destruírem.

8 – Aprenda os nomes dos Teletubies. Quando se pegar cantarolando a música do programa no banheiro, está preparado para ter filhos.

9 – Repita sempre tudo o que disser pelo menos cinco vezes.

10 – Antes de ir em frente e ter filhos, procure um casal que os tenha e censure seus métodos de disciplina, a falta de paciência e o fato de terem deixado as crianças se tornarem incontroláveis. Sugira de que modo poderiam melhorar os hábitos de dormir dos filhos, treina-los para deixar as fraldas, portar-se à mesa e melhorar o comportamento em geral. Aproveite este momento – será a última vez na vida que terá soluções para todos os problemas.

sexta-feira, abril 20

Antes que elas cresçam

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1998
Autor : Affonso Romano de Sant’anna

Onde andou crescendo aquela danadinha, que você não percebeu?

Há um período em que os pais ficam órfãos dos próprios filhos. É que as crianças crescem como pássaros estabanados. Crescem sem pedir licença, com estridência alegre, às vezes com alardeada arrogância.
Mas não crescem todos os dias de igual maneira. Crescem, de repente. Um dia sentam-se perto de você e dizem uma frase com tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.
Onde é que andou crescendo aquela danadinha, que você não percebia? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? E a pá de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme da escola?
Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você agora está ali na porta da discoteca esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais ao volante, esperando que os filhos saiam esfuziantes.
Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas lá estão elas, nossas crianças, com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas nos ombros ou a suéter amarrada na cintura. Está quente, dizemos que vão estragar a suéter, porém não tem jeito: é o emblema da geração. Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.
Não mais colheremos as crianças nas portas das discotecas e festas. Saíram do banco de trás e passaram para o volante das próprias vidas.
Deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir confidências. Não, não as levamos suficientes vezes ao cinema, não lhes demos hambúrgueres e refrigerantes o bastante, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas. Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo nosso afeto.
No princípio, subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, Natais, Páscoa, piscinas e outras crianças. Sim, havia as brigas dentro do carro, disputa pela janela, pedidos de sorvete e sanduíche, cantoria infantil. Depois chegou a idade em que ir para a casa de campo com os pais começou a ser esforço, sofrimento, pois era impossível largar a turma aqui na praia e os primeiros namorados.
O jeito é esperar. A qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos, e que não pode morrer conosco. Por essa razão avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.
Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.

quinta-feira, abril 19

A Riqueza e o Poder dos Chineses no Estrangeiro

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1971
Autor : Louis Kraar (condensado de Fortune)

Com diligência e flexibilidade, uma nação de expatriados domina as finanças, a indústria e o comércio do sudeste asiático.

A mais formidável potência econômica na Ásia, depois do Japão, é uma nação de cerca de 21 milhões de pessoas que não tem pátria nem governo – os chineses no estrangeiro. Essa gente, extraordinariamente flexível e trabalhadora, está espalhada pelo Sudeste asiático, da Birmânia às Filipinas. Vive em comunidades fechadas, ligadas umas às outras através das fronteiras nacionais por laços de família e de clã forjados durante séculos. Embora profundamente cônscios de suas tradições, os chineses constituem o grupo mais moderno e adaptável naquela parte do mundo. Em todos os níveis, desde os grandes bancos comerciais até aos pequenos agricultores, dominam as finanças, a indústria e o comércio.
Seus núcleos principais são a colônia britânica de Hong Kong (onde 98,5% da população é chinesa). Em outras áreas os chineses constituem pequena parte da população: na Tailândia, cerca de 10%; Indonésia, 2,2%; Filipinas, menos de 1%. Ao todo, constituem apenas 6% da população da região, mas sua importância econômica é muito maior do que sugerem os números. Todos os anos, é fácil comprovar o alcance desse poder: quando os chineses se entregam às celebrações do seu Ano Novo, cessa a maior parte das atividades no Sudeste asiático.
“O denominador comum dos mercados nessa parte do mundo é o homem de negócios chinês”, observa Wong Nang Jang, banqueiro de Cingapura. O emprego de Wong é típico: é vice-presidente residente do First National City Bank de Nova York. Cada vez mais bancos e empresas estão descobrindo que os chineses são valiosos como empregados, gerentes... e aliados.
Os chineses expatriados participam de uma tradição cultural que encoraja a iniciativa individual. Embora falem uma porção de dialetos, todos usam a mesma linguagem escrita, o que facilita o comércio entre eles. E sua rede de associações de clãs e contatos pessoais atravessa as fronteiras nacionais. Comerciantes chineses na Indonésia vendem pimenta, café e borracha para parentes e amigos de confiança em Cingapura, que lhes enviam em troca têxteis, cosméticos e transistores – e muitas vezes reinvestem os lucros para seus associados distantes. Vendedores de arroz na Tailândia negociam pelo telefone com mercadores de Cingapura, jamais duvidando que seus acordos serão cumpridos.
Perigos e pressões. Existem muitos outros laços valiosos entre os chineses. Os membros das suas câmaras de comércio nas várias cidades e países constituem uma reserva de capital e se mantém informados de oportunidades de investimentos. Informações econômicas voam pelos jornais chineses, e quando são especialmente urgentes, devido a uma situação de mercado que se tenha modificado, são transmitidas por ondas curtas. Um sistema de crédito comunitário baseado em confiança recíproca, permite a muitos empresários chineses operarem durante seis meses ou mais antes de pagarem a seus fornecedores. Banqueiros e industriais chineses freqüentemente se associam em empreendimentos.
Em seus lares de adoção no Sudeste asiático, os chinesese conseguiram prosperar sob muitos regimes corruptos e instáveis. Agora enfrentam novos perigos: um crescente nacionalismo econômico e a inveja dos homens de negócios nativos, menos experientes e menos bem sucedidos. Às vezes a hostilidade irrompe em violência. Milhares de chineses foram massacrados na Indonésia em 1956-66, e a Malásia foi abalada por motins raciais em 1969. em quase toda parte, os chineses estão sendo submetidos a uma pressão econômica cada vez maior.
A fim de sobreviver e proteger sua situação comercial, os chineses estão reorganizando suas empresas em linhas modernas, diversificando seus investimentos e fundando empresas de capital aberto que se possam identificar mais visivelmente com os interesses das nações que os hospedam. A maioria está tentando estabelecer-se definitivamente nos novos países.
Foi o desejo de melhorar a sua situação que levou milhões dos camponeses pobres do sul da China a procurar uma oportunidade no Sudeste asiático, muitas vezes como simples cules. A onda de emigração começou há mais de 100 anos, no apogeu da expansão econômica colonial. Até mais ou menos 1930, os ingleses, holandeses e franceses importavam essa mão de obra barata e dócil para suas minas e plantações.
Visando a se ajudarem e protegerem mutuamente em terras estranhas, os imigrantes uniram-se com base em parentesco ou lugar de nascimento. Aqueles que tinham o mesmo sobrenome (como Lee ou Tan) formavam um Kongsi, ou sociedade beneficente *, Para tomar conta de novos membros do clã recém-chegados da China. Esses laços ainda contribuem para a união dos chineses no estrangeiro.
Com o correr dos anos, muitos trabalhadores foram acumulando capital. Fundaram pequenas lojas e casas comerciais. Tornaram-se industriais, mecânicos, alfaiates, donos de restaurantes e compradores de objetos usados. Os administradores coloniais achavam que a atitude apolítica dos emigrantes se ajustava bem às suas necessidades, e os chineses passaram a atuar como principais mediadores entre os ocidentais e a gente local. Uma conseqüência foi que outros povos asiáticos nunca tiveram oportunidade de adquirir tanta experiência comercial quanto os chineses. E depois que os países da região conquistaram sua independência, a estrutura comercial dos chineses continuou absoluta – fato que irritou a muitos de seus concorrentes.
Desde que os comunistas tomaram a China, em 1949, poucos exilados demonstraram qualquer desejo de voltar à sua pátria ancestral; na verdade, cerca de um milhão dos quase quatro milhões de chineses de Hong Kong são refugiados recentes do continente. A maior parte dos chineses no estrangeiro acredita que seu futuro está no Sudeste asiático, onde três quartas partes deles nasceram.
Evidentemente, persistem alguns laços de família e de negócios com a China. Um sentido duradouro de dever filial inspira os chineses no estrangeiro a enviar para seus parentes no continente cerca de 150 milhões de dólares anualmente, por meio das filiais do Banco da China em Hong Kong e Cingapura, controladas por Pequim. O banco também ajuda alguns homens de negócios chineses a importar produtos da China (principalmente tecidos, alimentos e artigos de consumo baratos) em boas condições financeiras. A maioria dos empresários considera essas transações simplesmente como operações lucrativas – embora Pequim reserve os melhores negócios para aqueles que asseguram sua lealdade a Mão Tse-Tung. Uma família que tem uma firma de contabilidade em Hong Kong adota uma atitude pragmática que não é rara: um irmão concentra-se nos grandes clientes internacionais, enquanto outro lida com os interesses comerciais comunistas.
A China Nacionalista não fornece qualquer pátria substituta para esses chineses. Muito poucos aderem ao regime de Chiang Kai-shek ou acreditam que ele algum dia reconquiste o continente. Além disso, a China Nacionalista tem tão pouco poder quanto Mao para dar proteção contra as leis anti-chinesas e as dificuldades que sofrem os chineses no Sudeste asiático. A comissão para Assuntos de Chineses no Exterior, com sede em Formosa, corteja esses homens de negócios com uma revista comercial mensal e uma Conferência de Negociantes Chineses no Exterior realizada anualmente. Mas os investimentos diretos desses chineses em Formosa são relativamente pequenos, cerca de 145 milhões de dólares.
O lucro, mais do que o patriotismo, é o que leva os empresários do Sudeste asiático a negociar com as duas Chinas. Um funcionário do governo de Cingapura, que também é chinês, resume assim a atitude dos expatriados: “Eles são leais ao dólar todo poderoso... não a Mao nem a Chiang.”
Parentesco conta. Em toda parte, os chineses confiam na cooperação entre si para sua sobrevivência e a continuação de sua supremacia econômica. Lien Ying-chow, diretor gerente do Overseas Union Bank Ltd., em Cingapura, com mais de 150 milhões de dólares de ativo, muitas vezes associa-se em projetos industriais com banqueiros tailandeses originários de sua terra natal de Swatow. “Se nós chineses somos parentes ou se viemos da mesma aldeia, gostamos de nos ajudar uns aos outros a subir”, explicou ele. As relações de clã de Lien com homens de negócios sino-tailandeses promoveram de tal modo o comércio de milho da Tailândia com Cingapura, que lhe valeram, em 1965, uma condecoração do governo de Bancoc.
Kuok Hock Niel é um agressivo homem de empresa malaio que açambarcou 80% das importações de açúcar não refinado do seu país e utiliza plenamente a rede chinesa. É presidente da Kuok Brothers Ltd., firma da família, que opera nos mercados mundiais e já se expandiu para os setores da manufatura, navegação, hotéis e outros empreendimentos. O governo malaio há anos falava sobre a organização de uma linha de navegação nacional, mas foi Kuok quem a fez funcionar. O investimento foi realizado com dinheiro de seu próprio bolso associado ao capital e “know-how” do armador Frank Wen-King Tso, de Hong Kong, contando também com investimentos locais de membros das câmaras de comércio chinesas na Malásia e do governo. A Companhia Internacional de Navegação Malásia, da qual Kuok é presidente, lançou há pouco seu primeiro cargueiro.
Na Malásia, os chineses operam num meio racial especialmente sensível. Não só dominam economicamente, como também são quase em mesmo número que os nativos, em sua grande parte agricultores. A violência racial que irrompeu em maio de 1969 revelou o amargo ressentimento dos malaios por sua subserviência econômica. Agora o governo promete acabar com “os problemas de desequilíbrio racial econômico”. Pretende subsidiar uma classe empresarial malaia, obrigar as novas indústrias a empregar operários em números mais ou menos proporcionais à composição racial do país, e já ordenou que as empresas reservem parte de suas ações para investidores locais.
O ambiente é mais favorável em Hong Kong, um enclave capitalista aninhado à beira do continente de Mao. A habilidade comercial dos chineses, e uma mão de obra dócil, tornaram a colônia britânica um dos centros comerciais mais cosmopolitas da Ásia. Mas as perspectivas para os chineses em Hong Kong estão longe de serem risonhas. A concessão britânica sobre os Novos Territórios – que compreendem mais de nove décimos da área da colônia – deve expirar em 1997. Ninguém pode antecipar com certeza o que Pequim fará então.
O mundo de negócios. A república insular independente de Cingapura é a única nação onde os chineses constituem maioria política. Embora rejeitando o papel de “terceira China”, o rápido desenvolvimento econômico de Cingapura e a assistência social que dá aos trabalhadores tornam a cidade-estado um lugar extremamente atraente para os homens de negócios chineses.
Na Indonésia ocorreu uma abrupta reviravolta nas relações entre os chineses e os indonésios, desde o fracassado golpe comunista de 1965 que provocou um traumático morticínio. Unidades do exército e grupos de vigilantes massacraram cerca de 300.000 pessoas que consideravam simpatizantes comunistas; um número considerável de vítimas daquele banho de sangue era de chineses. A princípio o governo do General Suharto tentou expulsar os chineses das atividades comerciais; mas acabou compreendendo que precisa da esperteza desses homens de negócios para reabilitar a decadente economia do seu país.
A comunidade chinesa reagiu constituindo alianças protetoras de negócios com generais do regime militar, e procurando apoio financeiro de chineses da região. Admite um ministro indonésio: “Chegamos a um modus operandi com os chineses.” Um americano que goza de boa situação nos negócios locais comenta: “A classe comercial chinesa continua a comprar e vender, não só artigos de consumo, mas generais.”
Embora a aliança entre homens de negócios chineses e militares seja recente na Indonésia, há muito que uma relação semelhante tem animado a economia tailandesa, mais próspera. Este reino encoraja a assimilação dos chineses. Ali os generais do exército controlam a política do governo e participam dos conselhos diretores de muitas empresas, a maioria dirigidas por chineses.
As Filipinas confiam muito em sua comunidade comercial chinesa, não só para os serviços econômicos básicos, mas também para subornos sistemáticos. Políticos filipinos utilizam os chineses para financiar campanhas políticas em que os próprios chineses geralmente aparecem como os principais vilões. E eles pagam, porque é o único meio de conservarem seus negócios.
Como sobreviver. Em todo o Sudeste asiático os chineses estão modificando seus modos de operação para satisfazer a novas e mais difíceis condições. Entre outras coisas, eles agora compreenderam que firmas antiquadas, de família, raramente sobrevivem aos seus fundadores, especialmente diante da concorrência de empresas modernas. Uma companhia, The China Engineers Ltd., de Hong Kong, está diluindo os riscos espalhando conscienciosamente suas operações por todo o Extremo Oriente. O presidente e Diretor Gerente Y. H. Kwong, uma vez expulso da Birmânia, explica. “O motivo por que eu friso a necessidade de nos espalharmos nessa área é o perigo inerente de se operar em um só país, especialmente se se trata de um chinês. Espalhados como estamos, podemos sobreviver. Um prejuízo num local não me arruinaria.”
Apesar de conservarem uma forte identidade étnica, a maior parte dos chineses no exterior anseia por uma segurança permanente em seus atuais lares no Sudeste asiático. Os países que, como a Tailândia, promovem a plena aceitação dos chineses, verificam que eles são cidadãos leais e um imenso estímulo para a economia. É claro que os chineses desejam manter suas tradições, inclusive a coesão comunitária. Mas seu orgulho racial e costumes diferentes não são uma barreira real para a plena cidadania em terras do Sudeste asiático, já formadas por uma variedade de raças, religiões e comunidades estreitamente ligadas. E é difícil imaginar como o Sudeste asiático poderia sobreviver sem eles.

*Kongsi em chinês refere-se aos huis, ou sociedades secretas, bem como associações de clã ou de distrito. Os europeus, porém, usam kongsi apenas para estas últimas, considerando as huis subversivas.

quarta-feira, abril 18

Meu nome é "Ike"

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1998
Autor : Gary Paulsen

Ele surgiu exatamente na hora em que o menino mais precisava.

A maior parte de minha infância em Thef River Falls, Minesota, foi muito solitária. Problemas familiares, enorme timidez e total falta de traquejo social causavam minha solidão. Por isso, praticar a caça não foi apenas uma entrada para o mundo encantado – foi minha salvação.
A partir dos 12 anos, eu vivia para caçar e pescar. Nos dias de aula, caçava pela manhã e à noite. Nas sextas-feiras eu me embrenhava na floresta e costumava passar lá o fim de semana.
Mesmo assim, eu ainda não aprendera a amar a solidão como hoje. Quando via algo bonito – o sol entre as folhas, um cervo se esgueirando na contraluz –, tinha vontade de mostrar para alguém e dizer: “Olhe só!” Mas não havia ninguém para ouvir.
Foi aí que encontrei Ike.
Era o começo da temporada de caça ao pato. Acordei ás 3 horas da madrugada, saí de nosso apartamento e andei quatro quarteirões até o pátio da estrada de ferro. Depois atravessei a ponte e segui pela margem do rio até entrar na floresta.
Caminhar no escuro era difícil. Após mais de dois quilômetros, fiquei andando num pântano e tentei sair para a margem do rio onde o terreno era mais firme.
A lama escorregava como graxa. Caí, mas consegui subir para a margem outra vez, segurando a espingarda com uma das mãos e agarrando as raízes das plantas com a outra. Quando subi, uma parte do escuro se mexeu, chegou perto do meu rosto e fez “ulf”.
Por um instante fiquei gelado. Em seguida, afastei os arbustos e me joguei na rampa. Enquanto isso, pensei: Um urso!
Agarrei um cartucho no bolso e o coloquei na espingarda. Estava mirando o alvo quando algo me fez parar.
O que quer que fosse, permanecera sentado no alto da margem do rio olhando para mim, embaixo. A luz só lhe marcava a silhueta. De um cachorro. Grande, preto, mas cachorro.
Abaixei a espingarda e tirei a lama de meus olhos.
“A quem você pertence?”, perguntei.
O cachorro não se mexeu e tornei a subir a rampa.
“Olá!”, gritei em direção à floresta. “Seu cachorro está aqui!”
Ninguém respondeu.
“Então você está perdido.”
Animais perdidos costumar ser arredios e estar com fome. No entanto, esse cachorro – um labrador – estava bem alimentado e seu pêlo era farto. Ficou ao meu lado.
“Bem”, disse eu, “o que faço com você?”
Quase por impulso, acrescentei:
“Quer caçar?”
Ele conhecia aquela palavra. Bateu o rabo no chão e, agitado, foi para a beira do rio.
Eu nunca tinha caçado com um cachorro, mas comecei a segui-lo. Já havia luz suficiente para atirar, por isso preparei a espingarda. Não havíamos andado mais do que 45 metros quando dois patos selvagens surgiram de dentro da densa vegetação à margem do rio e levantaram vôo.
Ergui a espingarda, engatilhei, mirei pouco acima do pato à minha direita e puxei o gatilho. Houve um estrondo e a ave caiu na água.
Antes, quando atirava em patos sobre o rio, tinha de esperar até a correnteza trazer o corpo para a margem. Dessa vez foi diferente. Com o cheiro da pólvora ainda no ar, o cachorro deu grande salto e mergulhou. Agitando a água, foi em linha reta na direção do pato morto. Abocanhou-o delicadamente, virou-se e nadou de volta. Subiu a margem do rio e colocou-o ao lado do meu pé direito. Depois, afastou-se um pouco e sentou.
A essa altura, o sol já tinha surgido e vi que o cachorro trazia coleira e identificação. Afaguei-o – ele permitiu, discretamente – e puxei a identificação.
Meu nome é Ike.
Era só o que dizia. Não tinha endereço nem nome do dono.
“Bem, Ike, obrigado por me trazer o pato.”
Ele abanou a cauda e foi assim que tudo começou.
No resto da temporada, cacei no rio todos os dias de manhã cedo. Atravessava a ponte, chegava ao rio e lá estava Ike. No meio da segunda semana, achei que iríamos caçar juntos pelo resto da vida.
Terminada a caçada, ele caminhava a meu lado até chegarmos à ponte. Então, sentava e nada nesse mundo o fazia ir mais longe.
Eu tentava esperar para ver aonde ele ia. Mas assim que ficava óbvio que eu não queria ir embora, ele simplesmente deitava e dormia. Certa vez, atravessei a ponte e me escondi atrás de uma construção para olhar.
Ele ficou ali até eu sumir de vista, depois virou, seguiu na direção norte pelo rio e entrou na floresta.
Se a outra parte de sua vida era mistério, quando juntos éramos amigos leais. Eu cozinhava mais um ovo para o sanduíche dele e se não havia pato, nós conversávamos. Quer dizer, eu falava. Ike sentava com a enorme cabeça apoiada em meu joelho, olhando-me com os grandes olhos castanhos enquanto eu lhe fazia carinho e contava todos os meus problemas.
Nos fins de semana que passava ao ar livre, eu construía um alpendre e fazia fogueira. Ike se enroscava na beira do meu cobertor. Muitas vezes pela manhã eu o vi sob o cobertor ressonando, com meu braço por cima dele.
Era como se Ike sempre tivesse sido parte de minha vida. Até que, certa manhã, não apareceu. Esperei na ponte várias manhãs, porém não o vi mais. Achei que tivesse sido atropelado por um carro, ou que os donos se tivessem mudado para outro lugar. Nunca mais soube dele. Senti muita falta de Ike.
Cresci e passei pela parte mais louca de minha vida, com os erros que todos os jovens cometem. Mais tarde, tornei a me interessar por cachorros – por cães condutores de trenós – e participei da corrida Iditarod no Alasca.
Depois da primeira corrida, voltei para Minesota com muitos slides. Um de meus patrocinadores foi uma loja de artigos esportivos. Certa noite fiz uma projeção dos slides aberta ao público.
Havia na platéia um senhor numa cadeira de rodas. Quando contei que Cookie, meu cachorro-guia, tinha salvado minha vida, seus olhos se encheram de lágrimas. Ele balançou a cabeça, concordando. Terminada a projeção, veio me cumprimentar.
“Tive um cachorro com o seu Cookie, que salvou minha vida.”
“Ah, você andava de trenó puxado por cães?”
Ele negou.
“Não, nada disso. Eu morava em Thief River Falls quando fui convocado para a Guerra da Coréia. Tinha um labrador que costumava caçar comigo. Fui ferido e fiquei paralítico. Ao sair do hospital, ele estava me esperando. Passou o resto da vida a meu lado. Sem meu cão, eu teria enlouquecido. Ficava horas conversando com ele...”
Falou mais baixo e os olhos lacrimejaram.
“Até hoje sinto falta dele.”
Olhei para o homem e depois desviei o olhar pela janela. Era primavera e a neve estava derretendo, mas eu via um garoto de 13 anos com um labrador, de tocaia, à espera de um pato, no outono.
Thief River Falls, foi o que ele disse – e Guerra da Coréia. A mesma época e o mesmo lugar.
“Seu cachorro chamava-se Ike?”, perguntei.
O homem sorriu e concordou.
“Sim, mas como? Você o conheceu?!”
Foi por isso que Ike nunca mais voltou. Tinha outra tarefa a cumprir.
“Sim, ele era meu amigo”, respondi.

terça-feira, abril 17

Ao meu pai, com orgulho

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1998
Autor : Jim Hutchison

Durante 30 anos, os atos desse bravo homem não foram reconhecidos. Mas a filha jurou mudar a situação.

Leila Sinclair Wise sentou-se no chão da sala, folheando o diário do pai. Continha recortes de jornal do tempo em que ele era jovem marujo. A então estudante de 20 anos, foi atraída pela manchete: “Terry Wise vira herói em tragédia de cruzeiro.”
Na adolescência, Leila participara de alguns cruzeiros com o pai até ele se aposentar, em 1993, como principal comissário de bordo. Freqüentemente lhe perguntava o que acontecera no Yarmouth Castle naquela noite terrível, três décadas atrás, na costa da Flórida. “Só cumpri meu dever”, dizia ele. Não a surpreendia. Orgulhava-se do pai, por nunca ter virado as costas para alguém necessitado.
Na infância em Victoria, Leila ouvia falar de muitos outros homenageados por heroísmo. Sentia que o pai havia sido ignorado. “Papai foi tão bravo”, disse à mãe, Solange. “Devia ter ganhado uma condecoração.”
Solange contatou o governo canadense várias vezes na tentativa de obter reconhecimento oficial pelo heroísmo do marido. “O incidente aconteceu há muito tempo, e agora é tarde demais”, era a resposta que lhe davam. Mas Leila estava determinada a prestigiar as proezas do pai. “Darei um jeito”, prometeu.
Em 1994, numa viagem de Natal à casa de inverno da família em Boca Raton,Flórida, a moça leu a respeito de um homem condecorado pela guarda costeira dos EUA por resgatar vítimas de acidentes de barco. Talvez a guarda costeira possa ajudar, pensou. Enviou cópias dos recortes sobre o Harmouth Castle à Divisão de Busca e Resgate da Guarda Costeira de Miami. O comandante Dan Neptun prometeu buscar registros do acidente. “Muitos homens da Guarda Conhecem a história do Yarmouth Castle”, afirmou.

Pesadelo em chamas
Às 17 horas de 12 de novembro de 1965, o Yarmouth Castle deixou Miami rumo a Nassau, Bahamas, com 376 passageiros e 176 tripulantes. Terry Wise, 23 anos, de Markham, Ontário, estava entusiasmado por se encontrar a bordo. Dois dias antes fora contratado como terceiro comissário de bordo, primeiro emprego no mar.
À meia-noite deu a última volta antes de se recolher. Música e risos vinham do salão de baile do navio, onde os passageiros comemoravam a primeira noite do cruzeiro ao Caribe, mais de 200 quilômetros a leste da Flórida.
Às 1h30 Wise foi acordado por um tripulante que batia à porta da cabine.
“Acorde!”, implorou a voz. “Há fumaça aqui fora!”
“Provavelmente cigarro no lixo”, resmungou Wise, vestindo o uniforme branco. Abriu a porta e encontrou a escada em meio a deques negros de fumaça. Correndo, tropeçou às cegas pelo corredor.
Não vou fazer isso, suspirou voltando para a cabine, batendo a porta. Enquanto a violenta fumaça enchia o quarto, enrolou uma toalha úmida no rosto, agachou-se e foi apalpando as paredes do corredor, batendo nas portas das cabines enquanto passava. Engatinhou vários lances de escada antes de emergir na popa do navio. Aspirando o ar frio, olhou incrédulo para o pesadelo ao redor.
O fogo tragara a proa. Passageiros em pânico corriam por todo lado, gritando pelos parentes desaparecidos. Outros gemiam deitados no convés. A tripulação movia-se confusamente.
O fogo começara por volta de 1 hora da manhã num depósito na proa e tomara a superestrutura de madeira do navio, atingindo com rapidez a ponte de comando e o rádio. Não havia a menor chance de enviar sinal. Quando o capitão foi chamado, o fogo escapara ao controle. Com o capitão e a tripulação privados da ponte, a embarcação estava à deriva.
Uma brisa ventilava a fumaça e as intensas labaredas se espalhavam pelo navio. Passageiros morriam nas cabines, sufocados por fumaça e calor. O único lugar para fugir das chamas era a popa.
Como todos a bordo, Wise foi tomado pelo pandemônio. Pouco treinado, não tinha idéia do que fazer. O Yarmouth Castle, construído em 1927, era um dos muitos navios que os americanos supunham seguros, por operar fora dos portos dos EUA. Na verdade, o registro panamenho da embarcação indicava que possuía regulamentos de segurança menos rigorosos do que os dos navios americanos.
Ciente do seu uniforme branco, Wise controlou-se. Essa divisa na manga significa que esperam algo de mim, pensou. Tinha de ajudar.

O caos reinava
Da ponte de um navio próximo, Bahama Star, o capitão Carl Brown observava de binóculo o clarão laranja no céu. Não houvera chamado pelo rádio mas, ao se aproximar, reconhecera o Yarmouth Castle, uma hora à sua frente.
“Todos a postos!”, ordenou. “Alertem a guarda costeira e preparem a tripulação salva-vidas!”
Um cargueiro finlandês, o Finnpulp, também avistou o clarão e correu para o navio em chamas.
No Yarmouth Castle, Terry Wise manejava a mangueira de incêndio com dois tripulantes. No entanto, quando a válvula do hidrante foi aberta, só saiu um filete de água. Com os botes salva-vidas da proa destruídos, ele correu para ajudar meia dúzia de tripulantes que tentavam lançar botes na popa.
Quando Wise e os demais atiraram um bote, alguns tripulantes assustados nos deques inferiores obrigaram os passageiros a embarcar.
“Mulheres e crianças primeiro”, bradou Terry.
Ninguém prestou atenção. Ele também viu o capitão, vários tripulantes e passageiros se afastarem em outro bote. Wise ouviu gritos vindos de baixo, onde alguns quebravam vidros com cadeiras e forçavam passagem. Desceu e arrastou as pessoas até o deque. Aqueles que não conseguiu resgatar atiraram-se ao mar.
O passageiro Arnold Goldman, a esposa Betty e os dois filhos também haviam sido acordados pelo som de gente correndo e gritando lá fora. Assim que o construtor de Miami abriu a porta, um tripulante deu-lhe um empurrão, agarrou seus coletes salva-vidas e desapareceu. Como oficial da Força Aérea na Guerra da Coréia, Goldman fora treinado para emergências. “Segurem-se uns nos outros e fiquem juntos”, ordenou à família, conduzindo-os para fora.
Goldman procurou uma saída para o deque. Examinando as cabines vizinhas, achou três coletes salva-vidas que colocou na mulher e nos filhos. Eles entraram num bote mas tiveram de esperar que os tripulantes, com enorme esforço, conseguissem abaixá-lo. De repente, o bote virou, deixando a família encalhada longe demais do navio para poder voltar.
Se mergulhassem na água escura sem ninguém para resgata-los, Goldman temia que se afogassem. Conseguiu ajudar as crianças a subir a grade e voltar para o deque, mas Betty estava mais longe.
“Socorro”, gritou.
Ficou aliviado ao ver o rosto de um jovem oficial no deque. Goldman suspendeu a esposa para os braços de Terry Wise. Então, subiu.
“Obrigado!”, agradeceu, ofegante.
“Não se preocupe”, respondeu Wise. Juntos, os dois começaram a atirar na água cadeiras, bancos, colchões e tudo o que pudesse ajudar pessoas sem colete a se sustentarem.
Depois, como numa visão, um navio iluminado surgiu a estibordo, arremessando botes salva-vidas. Graças a Deus, murmurou Wise, olhando para o relógio. Eram 2h.25.

Medo de se mexer.
Quando o Bahama Star chegou, a ponte do Yarmouth Castle ruiu sob o fogo. O capitão Brown atirava botes salva-vidas.
“Pulem na água! Vocês serão resgatados”, ele berrou pelo alto-falante.
O Finnpulp, a apenas 500 metros de distância, também fazia o mesmo.
Agora, cercados pelos botes do Bahama Star, era hora de Wise, Goldman, a mulher e os filhos escaparem.
“Minha família e eu pularemos de um deque mais baixo”, gritou Goldman. “Mas não tenho colete.”
Ele tem de ficar com a familia, pensou Wise.
“Pegue o meu”, disse, tirando-o e entregando-o a Goldman.
Wise foi de deque em deque, arrastando pessoas para longe do fogo. Perto da escada, encontrou uma senhora semiconsciente, queimada, com apenas algumas mechas de cabelo. Wise amarrou-lhe o colete salva-vidas, enrolou-a em farrapos molhados e entregou-a a um tripulante, que a levou ao bote.
O navio em chamas estava bastante inclinado. Apenas dois outros oficiais permaneciam a bordo. Quando um deles se aproximou da grade, berrou para Wise:
“Você vem?”
Quase todos os passageiros restantes eram idosos. Posso sair a qualquer hora, pensou Wise. Eles precisam de ajuda para sair.
“Ainda não”, respondeu. O oficial pulou no mar.
Chegando até a popa do andar de baixo, Wise encontrou vários passageiros amontoados num inferno. Enquanto os mais jovens atendiam aos chamados do capitão Brown para pular, muitos idosos tinham medo de se mexer. “Devem sair logo”, advertiu Wise aos encostados na grade. “Vou ajuda-los.”
Soltou os dedos de cada passageiro da grade. Verificava se os coletes estavam ajustados e convencia as pessoas a descer pela corda, orientando-as. Quando não tinham forças, Wise as levantava e as jogava na água. Todas foram resgatadas por botes salva-vidas.
O capitão Brown testemunhou o jovem oficial sozinho no deque do Yarmouth Castle combatendo as chamas, arrastando pessoas para colocá-las na água. “Aquele homem está salvando muitas vidas”, disse.
“Pule! Não há mais ninguém!”
Satisfeito, Terry correu para a grade, agarrou uma corda e desceu até o bote que passava lá embaixo. Salvara mais de 30 pessoas.
Uma vez no deque do Bahama Satar, Wise vio o Yarmouth Castle sumir sob as ondas às 6 horas da manhã, afundando com 88 passageiros e dois membros da tripulação.
Enquanto os helicópteros da guarda costeira levavam os feridos para o hospital, Wise fez a lista de sobreviventes, ajudou os médicos a bordo e confortou os passageiros.
No rastro do acidente, legisladores dos EUA estenderam os padrões de segurança contra incêndio a todos os navios que operavam fora dos portos americanos. Terry Wise seguiu carreira de principal comissário de bordo. Casou-se com Solange sete anos após o naufrágio do Yarmouth Castle, e em 1973 Leila nasceu.

Silêncio nunca mais.
Na casa de Boca Raton, Terry Wise recebeu um telefonema, em março de 1995, do comandante da Guarda Costeira dos EUA, Dan Neptun. “Gostaríamos que almoçasse conosco”, disse Neptun.
No dia 23 de março, no posto da guarda costeira de Fort Lauderdale, o capitão Robert Gravino prestou a mais alta homenagem civil da guarda a Terry Wise, em reconhecimento por seu extraordinário heroísmo a bordo do Yarmouth Castle.
“Até agora ele foi um herói sem condecorações”, observou Gravino na cerimônia. “Temos uma longa dívida. Somos gratos a Leila Sinclair Wise por insistir que o valor de seu pai fosse finalmente reconhecido.”
Ao acordar na manhã seguinte, Arnold Goldman viu a foto de Terry Wise na primeira página do Miami Herald. Durante anos tentara encontrar o oficial que lhe dera o colete salva-vidas. “É ele!”, contou à mulher. Ligou para Wise e disse-lhe. “Nunca me esqueci do que fez por minha família. Só queria agradecer.”
Com o sonho de toda a vida realizado, Leila Sinclair Wise acrescentou novo título ao diário do pai: “Estados Unidos prestam homenagem a herói canadense em incêndio de navio ocorrido em 1965.”
“Tenho tanto orgulho de você!”
“Ainda não consigo acreditar que tenha feito isso”, responde Terry, abraçando a filha.