terça-feira, abril 17

Ao meu pai, com orgulho

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1998
Autor : Jim Hutchison

Durante 30 anos, os atos desse bravo homem não foram reconhecidos. Mas a filha jurou mudar a situação.

Leila Sinclair Wise sentou-se no chão da sala, folheando o diário do pai. Continha recortes de jornal do tempo em que ele era jovem marujo. A então estudante de 20 anos, foi atraída pela manchete: “Terry Wise vira herói em tragédia de cruzeiro.”
Na adolescência, Leila participara de alguns cruzeiros com o pai até ele se aposentar, em 1993, como principal comissário de bordo. Freqüentemente lhe perguntava o que acontecera no Yarmouth Castle naquela noite terrível, três décadas atrás, na costa da Flórida. “Só cumpri meu dever”, dizia ele. Não a surpreendia. Orgulhava-se do pai, por nunca ter virado as costas para alguém necessitado.
Na infância em Victoria, Leila ouvia falar de muitos outros homenageados por heroísmo. Sentia que o pai havia sido ignorado. “Papai foi tão bravo”, disse à mãe, Solange. “Devia ter ganhado uma condecoração.”
Solange contatou o governo canadense várias vezes na tentativa de obter reconhecimento oficial pelo heroísmo do marido. “O incidente aconteceu há muito tempo, e agora é tarde demais”, era a resposta que lhe davam. Mas Leila estava determinada a prestigiar as proezas do pai. “Darei um jeito”, prometeu.
Em 1994, numa viagem de Natal à casa de inverno da família em Boca Raton,Flórida, a moça leu a respeito de um homem condecorado pela guarda costeira dos EUA por resgatar vítimas de acidentes de barco. Talvez a guarda costeira possa ajudar, pensou. Enviou cópias dos recortes sobre o Harmouth Castle à Divisão de Busca e Resgate da Guarda Costeira de Miami. O comandante Dan Neptun prometeu buscar registros do acidente. “Muitos homens da Guarda Conhecem a história do Yarmouth Castle”, afirmou.

Pesadelo em chamas
Às 17 horas de 12 de novembro de 1965, o Yarmouth Castle deixou Miami rumo a Nassau, Bahamas, com 376 passageiros e 176 tripulantes. Terry Wise, 23 anos, de Markham, Ontário, estava entusiasmado por se encontrar a bordo. Dois dias antes fora contratado como terceiro comissário de bordo, primeiro emprego no mar.
À meia-noite deu a última volta antes de se recolher. Música e risos vinham do salão de baile do navio, onde os passageiros comemoravam a primeira noite do cruzeiro ao Caribe, mais de 200 quilômetros a leste da Flórida.
Às 1h30 Wise foi acordado por um tripulante que batia à porta da cabine.
“Acorde!”, implorou a voz. “Há fumaça aqui fora!”
“Provavelmente cigarro no lixo”, resmungou Wise, vestindo o uniforme branco. Abriu a porta e encontrou a escada em meio a deques negros de fumaça. Correndo, tropeçou às cegas pelo corredor.
Não vou fazer isso, suspirou voltando para a cabine, batendo a porta. Enquanto a violenta fumaça enchia o quarto, enrolou uma toalha úmida no rosto, agachou-se e foi apalpando as paredes do corredor, batendo nas portas das cabines enquanto passava. Engatinhou vários lances de escada antes de emergir na popa do navio. Aspirando o ar frio, olhou incrédulo para o pesadelo ao redor.
O fogo tragara a proa. Passageiros em pânico corriam por todo lado, gritando pelos parentes desaparecidos. Outros gemiam deitados no convés. A tripulação movia-se confusamente.
O fogo começara por volta de 1 hora da manhã num depósito na proa e tomara a superestrutura de madeira do navio, atingindo com rapidez a ponte de comando e o rádio. Não havia a menor chance de enviar sinal. Quando o capitão foi chamado, o fogo escapara ao controle. Com o capitão e a tripulação privados da ponte, a embarcação estava à deriva.
Uma brisa ventilava a fumaça e as intensas labaredas se espalhavam pelo navio. Passageiros morriam nas cabines, sufocados por fumaça e calor. O único lugar para fugir das chamas era a popa.
Como todos a bordo, Wise foi tomado pelo pandemônio. Pouco treinado, não tinha idéia do que fazer. O Yarmouth Castle, construído em 1927, era um dos muitos navios que os americanos supunham seguros, por operar fora dos portos dos EUA. Na verdade, o registro panamenho da embarcação indicava que possuía regulamentos de segurança menos rigorosos do que os dos navios americanos.
Ciente do seu uniforme branco, Wise controlou-se. Essa divisa na manga significa que esperam algo de mim, pensou. Tinha de ajudar.

O caos reinava
Da ponte de um navio próximo, Bahama Star, o capitão Carl Brown observava de binóculo o clarão laranja no céu. Não houvera chamado pelo rádio mas, ao se aproximar, reconhecera o Yarmouth Castle, uma hora à sua frente.
“Todos a postos!”, ordenou. “Alertem a guarda costeira e preparem a tripulação salva-vidas!”
Um cargueiro finlandês, o Finnpulp, também avistou o clarão e correu para o navio em chamas.
No Yarmouth Castle, Terry Wise manejava a mangueira de incêndio com dois tripulantes. No entanto, quando a válvula do hidrante foi aberta, só saiu um filete de água. Com os botes salva-vidas da proa destruídos, ele correu para ajudar meia dúzia de tripulantes que tentavam lançar botes na popa.
Quando Wise e os demais atiraram um bote, alguns tripulantes assustados nos deques inferiores obrigaram os passageiros a embarcar.
“Mulheres e crianças primeiro”, bradou Terry.
Ninguém prestou atenção. Ele também viu o capitão, vários tripulantes e passageiros se afastarem em outro bote. Wise ouviu gritos vindos de baixo, onde alguns quebravam vidros com cadeiras e forçavam passagem. Desceu e arrastou as pessoas até o deque. Aqueles que não conseguiu resgatar atiraram-se ao mar.
O passageiro Arnold Goldman, a esposa Betty e os dois filhos também haviam sido acordados pelo som de gente correndo e gritando lá fora. Assim que o construtor de Miami abriu a porta, um tripulante deu-lhe um empurrão, agarrou seus coletes salva-vidas e desapareceu. Como oficial da Força Aérea na Guerra da Coréia, Goldman fora treinado para emergências. “Segurem-se uns nos outros e fiquem juntos”, ordenou à família, conduzindo-os para fora.
Goldman procurou uma saída para o deque. Examinando as cabines vizinhas, achou três coletes salva-vidas que colocou na mulher e nos filhos. Eles entraram num bote mas tiveram de esperar que os tripulantes, com enorme esforço, conseguissem abaixá-lo. De repente, o bote virou, deixando a família encalhada longe demais do navio para poder voltar.
Se mergulhassem na água escura sem ninguém para resgata-los, Goldman temia que se afogassem. Conseguiu ajudar as crianças a subir a grade e voltar para o deque, mas Betty estava mais longe.
“Socorro”, gritou.
Ficou aliviado ao ver o rosto de um jovem oficial no deque. Goldman suspendeu a esposa para os braços de Terry Wise. Então, subiu.
“Obrigado!”, agradeceu, ofegante.
“Não se preocupe”, respondeu Wise. Juntos, os dois começaram a atirar na água cadeiras, bancos, colchões e tudo o que pudesse ajudar pessoas sem colete a se sustentarem.
Depois, como numa visão, um navio iluminado surgiu a estibordo, arremessando botes salva-vidas. Graças a Deus, murmurou Wise, olhando para o relógio. Eram 2h.25.

Medo de se mexer.
Quando o Bahama Star chegou, a ponte do Yarmouth Castle ruiu sob o fogo. O capitão Brown atirava botes salva-vidas.
“Pulem na água! Vocês serão resgatados”, ele berrou pelo alto-falante.
O Finnpulp, a apenas 500 metros de distância, também fazia o mesmo.
Agora, cercados pelos botes do Bahama Star, era hora de Wise, Goldman, a mulher e os filhos escaparem.
“Minha família e eu pularemos de um deque mais baixo”, gritou Goldman. “Mas não tenho colete.”
Ele tem de ficar com a familia, pensou Wise.
“Pegue o meu”, disse, tirando-o e entregando-o a Goldman.
Wise foi de deque em deque, arrastando pessoas para longe do fogo. Perto da escada, encontrou uma senhora semiconsciente, queimada, com apenas algumas mechas de cabelo. Wise amarrou-lhe o colete salva-vidas, enrolou-a em farrapos molhados e entregou-a a um tripulante, que a levou ao bote.
O navio em chamas estava bastante inclinado. Apenas dois outros oficiais permaneciam a bordo. Quando um deles se aproximou da grade, berrou para Wise:
“Você vem?”
Quase todos os passageiros restantes eram idosos. Posso sair a qualquer hora, pensou Wise. Eles precisam de ajuda para sair.
“Ainda não”, respondeu. O oficial pulou no mar.
Chegando até a popa do andar de baixo, Wise encontrou vários passageiros amontoados num inferno. Enquanto os mais jovens atendiam aos chamados do capitão Brown para pular, muitos idosos tinham medo de se mexer. “Devem sair logo”, advertiu Wise aos encostados na grade. “Vou ajuda-los.”
Soltou os dedos de cada passageiro da grade. Verificava se os coletes estavam ajustados e convencia as pessoas a descer pela corda, orientando-as. Quando não tinham forças, Wise as levantava e as jogava na água. Todas foram resgatadas por botes salva-vidas.
O capitão Brown testemunhou o jovem oficial sozinho no deque do Yarmouth Castle combatendo as chamas, arrastando pessoas para colocá-las na água. “Aquele homem está salvando muitas vidas”, disse.
“Pule! Não há mais ninguém!”
Satisfeito, Terry correu para a grade, agarrou uma corda e desceu até o bote que passava lá embaixo. Salvara mais de 30 pessoas.
Uma vez no deque do Bahama Satar, Wise vio o Yarmouth Castle sumir sob as ondas às 6 horas da manhã, afundando com 88 passageiros e dois membros da tripulação.
Enquanto os helicópteros da guarda costeira levavam os feridos para o hospital, Wise fez a lista de sobreviventes, ajudou os médicos a bordo e confortou os passageiros.
No rastro do acidente, legisladores dos EUA estenderam os padrões de segurança contra incêndio a todos os navios que operavam fora dos portos americanos. Terry Wise seguiu carreira de principal comissário de bordo. Casou-se com Solange sete anos após o naufrágio do Yarmouth Castle, e em 1973 Leila nasceu.

Silêncio nunca mais.
Na casa de Boca Raton, Terry Wise recebeu um telefonema, em março de 1995, do comandante da Guarda Costeira dos EUA, Dan Neptun. “Gostaríamos que almoçasse conosco”, disse Neptun.
No dia 23 de março, no posto da guarda costeira de Fort Lauderdale, o capitão Robert Gravino prestou a mais alta homenagem civil da guarda a Terry Wise, em reconhecimento por seu extraordinário heroísmo a bordo do Yarmouth Castle.
“Até agora ele foi um herói sem condecorações”, observou Gravino na cerimônia. “Temos uma longa dívida. Somos gratos a Leila Sinclair Wise por insistir que o valor de seu pai fosse finalmente reconhecido.”
Ao acordar na manhã seguinte, Arnold Goldman viu a foto de Terry Wise na primeira página do Miami Herald. Durante anos tentara encontrar o oficial que lhe dera o colete salva-vidas. “É ele!”, contou à mulher. Ligou para Wise e disse-lhe. “Nunca me esqueci do que fez por minha família. Só queria agradecer.”
Com o sonho de toda a vida realizado, Leila Sinclair Wise acrescentou novo título ao diário do pai: “Estados Unidos prestam homenagem a herói canadense em incêndio de navio ocorrido em 1965.”
“Tenho tanto orgulho de você!”
“Ainda não consigo acreditar que tenha feito isso”, responde Terry, abraçando a filha.

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