quarta-feira, abril 4

Voando para casa

Fonte : Revista Seleções
Data : Maio de 1998
Autor : Bill Lishman

Não sabia se me seguiriam, mas alguém tinha de lhes mostrar o caminho.

Durante a infância na fazenda de meu pai em Ontário, Canadá, bandos de gansos em migração passavam bem no alto, indicando com seus grasnados a rota norte ou sul. Aquelas visões eram sempre emocionantes, despertando-me admiração e sensação de aventura. Desejava ardentemente estar lá no alto com eles, ver o mundo a partir do seu posto de observação.
Certo dia, quando eu tinha 8 anos, um velho avião de pulverizar plantações deu um “mergulho” sobre nossas terras. Voou por baixo dos cabos de alta tensão e então avançou, passando a poucos centímetros do celeiro. fiquei observando enquanto ele acelerava e desaparecia. A partir daquele instante, soube que tinha de voar.
Minha primeira tentativa foi um fracasso. Adolescente, alistei-me junto aos Cadetes da Força Aérea Canadense, mas logo descobri que era parcialmente daltônico, eliminando qualquer possibilidade de vôo militar.
Ainda assim, mesmo enquanto seguia a carreira de escultor, tinha certeza de que, de algum modo, iria voar. Foi então que, durante uma apresentação de aviação em 1976, presenciei algo inspirador. Um homem aparafusara o motor de um kart e uma hélice na parte posterior da asa-delta, e lá estava ele, deslizando no solo plano e logo circulando pelos céus, exatamente como um pássaro.
Dois anos depois, planejei repetir aquele vôo nas terras de um vizinho. Sempre fui mecânico habilidoso e, após diversas asas vergadas, construí meu próprio ultraleve com trem de pouso triciclo direcionável. Já então fanático aviador, montei o hangar na minha propriedade, preparei a pista de pouso de 200 metros e, quando o tempo estava bom, transportava-me para o ar.

Voar como os pássaros
Minhas manhãs antes do café, ou em tardes límpidas antes do por do sol, eu perambulava pelas correntes aéreas como um gavião solitário, circulando indolentemente pelos céus.
Em certo dia de outono, ao retornar de um vôo na madrugada, patos – milhares deles – levantaram vôo do campo, todos de uma vez. Logo eu me encontrava no meio deles. O ar estava cheio de patos – à frente, embaixo, acima, atrás das asas que cintilavam na primeira claridade. Foi emoção indescritível. Pareciam me aceitar em seu bando e acompanhei-os no vôo, apenas mais um pássaro na esquadrilha.
Então, em 1986, li um artigo sobre Bill Carrick, naturalista que, para a realização de um filme, treinara um bando de gansos para voar atrás de sua lancha. No treinamento, Carrick utilizou o processo chamado imprinting, pelo qual os pássaros se vinculam ao primeiro objeto em movimento que vêem ao sair da casca. Normalmente, é um dos pais, mas quando incubados artificialmente, podem muito bem vincular-se ao ser humano.
Pensei que talvez pudesse aplicar as técnicas dele ao ultraleve. Procurei Carrick, que considerou a minha idéia – por mais louca que parecesse – possível.
Naquela primavera levou para minha casa um bando de gansinhos que aprovaram Paula, minha mulher, eu e nossos três filhos. Eu sabia que gansos recém saídos do ovo se vinculam a seres humanos logo se acostumando a seguir quem cuida deles. Mais tarde, podem ser condicionados a acompanhar um veículo assim que se habituem ao seu ruído e formato. Nosso plano era condicionar os gansos primeiro à moto e, depois, ao ultraleve.
Quando percorri com a moto a pista de pouso de cima a baixo, os filhotes acompanharam perfeitamente minha velocidade. Aproximavam-se tanto que eu podia sentir a ponta da asa do líder quase me roçar o rosto. Um dos gansos costumava voar a cerca de 10 centímetros acima da minha cabeça, projetando pescoço e cabeça como o bico de um estranho chapéu.
No fim de julho, eu trouxe o ultraleve e tentei fazer com que os gansos o seguissem. Assustaram-se, porém, com as asas gigantes e o estranho ruído. Não me seguiam de jeito nenhum. Obviamente não se tratava de projeto de curto prazo.
No ano seguinte, recomecei com outro grupo de bolinhas fofas amarelas. O treinamento dos gansinhos passou a ser operação de família. Meus filhos Aaron e Geordie serviam de arrebanhadores de gansos, manobrando os pássaros para dentro e fora de seus cercados. Minha filha Carmen, então com 4 anos, madrugava todos os dias para me ajudar com o exercício matinal de corrida.
Eu atraía os pássaros dizendo: “Ganso, ganso, ganso!”
E Carmen chamava alto: “”Andem, gansos, andem, gansos!”
Eu taxiava, então, de uma extremidade à outra da pista de pouso, com os gansos correndo atrás. Estavam sempre mudando de curso. Precisei de muita força de vontade para continuar a reuni-los e tentar de novo. Isto é loucura, pensei. Estou perdendo tempo.
Quando os pássaros começaram a voar no final de julho, fiquei imaginando se permaneceriam comigo no ar ou se lançariam para a outra vida, deixando-me para trás. O grande dia chegou. Taxiei, seguido pelos pássaros. No ar, olhei para trás, mas não estavam em parte alguma. Por fim, avistei-os no solo, confortavelmente reunidos perto do lago.
Foi desanimador. Pousei e fiz com que Aaron reunisse os gansos na pista. Decolei novamente e, dessa vez eles me seguiram. No entanto, mudaram logo de curso e retornaram ao lago. Sentia meu coração pesado enquanto estacionava o aeroplano e colocava os gansos de volta no cercado.
A manhã seguinte foi perfeita, nenhum sopro de vento, o sol brilhando. Aumentei a rotação do motor para chamar a atenção dos gansos, acelerei e decolei em menos de 30 metros. Em vez de se espalharem, tentaram me alcançar. Então desacelerei até a velocidade mínima de sustentação. Pouco a pouco iam encurtando a distância – e de repente eu estava rodeado de gansos por todos os lados!
A turbulência do ar provocada pelas minhas asas desestabilizaram um pouco os gansos. Logo, o líder encontrou o lugar mais eficiente para voar e os outros instintivamente entraram em formação atrás dele. Minha cabeça girava de um lado para o outro. Não conseguia tirar os olhos dos pássaros.
Eram tão espetaculares! Eu estava completamente fascinado. Ao sobrevoarmos a casa a uns 100 metros de altitude, vi Paula e as crianças dando saltos e acenando. Fui tomado de enorme emoção ao perceber que realmente havíamos conseguido.
A partir de então, aproveitei todas as oportunidades para voar, e os gansos demonstraram igual entusiasmo. Nas tardes de verão, quando cruzávamos os céus, éramos um espetáculo de parar o trânsito. Sempre havia diversos carros estacionados ao longo da estrada, com passageiros atônicos olhando para nós.
Ao presenciar o sucesso inicial, Bill Carrick sugeriu que adaptássemos o que havíamos aprendido para ajudar a salvar uma espécie de cisne selvagem, o trumpeter swan. Pesando até 10 quilos, com envergadura de asa próxima de 2,5 metros, esta é a maior ave aquática do mundo. É também espécie em vias de recuperação. Existem apenas três populações: uma na região norte do Meio Oeste, outra nas Montanhas Rochosas e uma terceira que se aninha no Alasca e passa o inverno ao longo da costa do Pacífico. Esforços estão sendo feitos para retornar a espécie ao seu habitat tradicional, que abrange a maior parte da América do Norte.
Em 1989 tomamos o avião para Minnesota e exibimos filmes sobre nosso trabalho em uma reunião da Trumpeter Swan Society. Obtivemos apoio entusiástico de William Sladen, professor emérito da Universidade John Hopkins, que desejava fazer com que a migração dos Trumpeters retornasse à região de Chesapeake Bay, em Maryland. Ao contrário de outros pássaros, no entanto, os trumpeters não conhecem as rotas de migração instintivamente: aprendem o caminho com seus pais. Em conseqüência, muitas populações de pássaros levados a diferentes locais pelo homem perdem a habilidade de migrar – ou então seguem rotas perigosas que ameaçam sua sobrevivência.

Operação migração
Sladen nos convidou a conduzir um bando de aves ao Airlie Center, nas proximidades de Warrenton, Virgínia, onde ele é diretor de estudos do meio ambiente. Que maravilhosa maneira de colocar em prática o que aprendi com os gansos, pensei.
Decidimos que, em razão da condição dos trumpeters, não nos arriscaríamos a realizar experiências com eles até estarmos seguros do que fazíamos. Começaríamos com substitutos, criando um bando de gansos canadenses, treinando-os para seguir o ultraleve e guiando-os, por etapas, cerca de 200 quilômetros ao sul de Airlie Center. Depois verificaríamos se teriam conseguido retornar a Ontário sozinhos na primavera seguinte.
Em abril de 1993, Joe Duff, meu amigo e também piloto de ultraleve, juntou-se a mim na criação dos gansos. Em julho, as aves já estavam completamente emplumadas. Logo, Joe e eu – e mais 18 gansos – estávamos realizando vôos de treinamento. Em meados de outubro a Operação Migração estava pronta. Nossa primeira etapa consistia em vencer quase 16 quilômetros da travessia do lago Ontário.
Equipei-me às 6 horas do dia 19 de outubro. Minha aeronave borburejava em ponto morto. Joe iria a princípio me seguir e depois, vez por outra, assumir a liderança. Fiz o sinal de positivo e a um só tempo os gansos levantaram vôo. Acelerando ao máximo, minha aeronave sacolejava no ar. Rumei em direção aos pássaros e gradualmente eles entraram em formação acima de minhas asas.
Em pouco tempo, a costa do Lago Ontário surgiu oito quilômetros adiante. Além delas, filtravam-se fragmentos de raios solares como focos retorcidos de luz alaranjada sobre o fundo azul. Enquanto cruzávamos a linha da costa, os gansos desfizeram a formação e sentimos o silêncio. Joe e eu sempre nos preocupamos com a possível reação dos pássaros diante da imensa massa de água. E se eles se cansassem na metade do caminho e pousassem na água? No entanto, os receios se provaram infundados quando retornaram a formação junto à minha asa.
Aos nos aproximarmos dos Estados Unidos, os pássaros pareciam uma fileira de contas deslocada para a direita. Nossa viagem durou sete dias, com atrasos devido à neblina, aos ventos e ao turbulento fluxo do sudoeste.
Finalmente, às 17h30 de 25 de outubro, chegamos a Airlie, onde nos aguardava o professor Sladen. A luz era perfeita, o ar parado e o cenário surrealista ao aterrisarmos em um prado bem iluminado juntamente com os 18 gansos, logo apelidados de ultragansos.
Os pássaros tiveram de ser desabituados do contato humano e gradualmente se tornaram livres. Durante todo o inverno a dúvida permaneceu: Conseguiriam reconstituir seu vôo e retornar para nós na primavera?
Dois pássaros morreram em acidentes durante os três meses seguintes. Em 1º de abril, embora outras aves aquáticas já tivessem ido embora de Airlie duas semanas antes, nossos 16 sobreviventes permaneciam ali. Entretanto, no dia seguinte, eles haviam partido. Para onde?
Passou-se uma semana. Nenhuma só pena foi avistada. Verificamos diversos lagos nas redondezas. Nada dos ultragansos. Em 14 de abril dirigimo-nos ao norte. Gettysburg: nada de gansos. Trou Run: idem. Liguei para o aeródromo à beira do lado em Nova York onde aterrissamos a primeira vez. A voz feminina perguntou: “Já falou com sua mulher hoje?” Disse que não e telefonei imediatamente para Paula.
Havia notícias surpreendentes. Nossos gansos haviam conseguido! Bem cedo naquele dia ela foi dar uma volta até a pista e lá estavam eles: ultragansos grasnando ruidosamente. Havia funcionado! Saltamos e gritamos de alegria. Ao voltarmos para casa, fomos até o cercado e soltamos os gansos. Rumaram diretamente ao lago para um mergulho rápido. Logo em seguida, partiram para se juntar aos bandos de passagem.

Graças aos ultragansos, hoje acredito que temos chance de preservar algumas das mais magníficas criaturas entre as aves. Algum dia, imitando meu primeiro vôo quando planei asa a asa com imenso grupo de patos, espero ser alcançado por outra assombrosa multidão, esta repleta de trumpeters swans.
E assim, talvez eu, e outros como eu, possamos garantir que as crianças no futuro olhem para cima e admirem as maravilhas da natureza em pleno vôo.

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