quinta-feira, agosto 31

O teste do sussurro

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1985
Autor : Mary Ann Bird

Oito palavras, não mais que oito, foi o que mudou para sempre a vida daquela menina.

Cresci sabendo que era diferente, e odiava isso. Nasci com uma fenda palatina, e quando entrei para a escola os colegas, fazendo troça de mim o tempo todo, forçaram-me a tomar consciência da minha aparência. Eu era uma garotinha de lábios defeituosos, nariz torno, dentes desiguais e fala meio truncada.
Quando os meninos me perguntavam o que havia acontecido com meus lábios, eu dizia que tinha levado um tombo quando era bebê e tinha cortado a boca num pedaço de vidro. Essa explicação me parecia de alguma forma mais aceitável do que dizer que eu havia nascido assim. Aos sete anos, estava convencida de que ninguém, além da minha família, jamais iria gostar de mim.
Foi então que passei para o segundo ano, e fui matriculada na classe da Sra. Leonard.
Ela era gordinha, bonita e cheirosa, tinha braços roliços, cabelos castanhos sedosos e olhos escuros quentes e risonhos. Todo mundo a adorava. Ninguém, porém, mais do que eu, e por uma razão muito especial.
Na nossa escola faziam-se anualmente teste de audição. Eu quase não escutava de um dos ouvidos, mas não queria revelar ainda mais esse problema, que me faria parecer mais diferente dos outros. Então resolvi mentir.
Eu havia aprendido a observar as outras crianças e a levantar a mão quando elas o faziam, durante os testes de grupo. O “teste do sussurro”, no entanto, necessitava de outra espécie de trapaça: cada criança devia ir até a porta da sala de aula, virar-se de lado e tapar um dos ouvidos; aí a professora sussurrava algo lá da sua mesa, e a criança tinha de repetir o que ela dissera. Depois fazia-se a mesma coisa com a outra orelha. Ainda no jardim de infância, eu havia descoberto que ninguém ia checar se o ouvido estava bem ocluso, e então eu fingia tapar o meu.
Fui a última como sempre, mas durante todo o tempo do teste fiquei imaginando o que a Sra. Leonard iria sussurrar para mim. Sabia, pela experiência dos anos anteriores que ela dizia coisas como “O céu é azul” ou “Esses sapatos são novos?”
Chegou a minha vez. Virei meu ouvido mau para ele e tapei firmemente o outro com a mão, depois levantei os dedos o suficiente para poder ouvir. Aguardei, e então ouvi as palavras que foi por certo Deus quem colocou nos lábios dela, oito palavras que mudaram para sempre a minha vida.
A Sra. Leonard, aquela professora bonita e cheirosa que eu adorava, disse suavemente: “Quem me dera que você fosse minha filhinha.”

quarta-feira, agosto 30

Um barato : entrar para o Livro de Recordes

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1980
Autor : Jerry Kirshenbaum

Você toca violino debaixo da água? Equilibra um monte de bolas de golfe umas em cima das outras? Mesmo que não o faça, Norris McWhirter talvez arranje uma categoria para você.

Creighton Carvello, de Cleveland, Inglaterra, aprendeu de cor o valor do símbolo matemático “pi” até a 15.186ª casa, registra o Guinness Book of World Records. Isto, porém, não chega a impressionar mais que a proeza do próprio compilador – chefe do livro, Norris Mcwhirter, que gravou na memória a maioria das 15 mil façanhas registradas na obra.
Homem esbelto, de 54 anos, com um jeito vivaz, McWhirter fala correntemente o jargão dos recordes mundiais, enriquecendo a conversa normal com trechos do seu livro. É só puxar o assunto das comunicações que ele informará que o recorde de mensagens recebidas em código Morse ( 75,2 palavras por minuto) permanece invícto desde que foi estabelecido em 1939 por Ted McElroy. Se você estiver falando em fanatismo, McWhirter talvez se refira a São Simeão o Estilita, monge do século VI que se encarapitou num pilar de pedra durante 45 anos... o que talvez constitua recorde do mais antigo dos recordes.
Ouvir-se um McWhirter tagarelar nessa linguagem profissional de recordes mundiais já é algo meio esquisito. Pois mais estranho ainda foi ouvir dois nesse bate papo. O segundo era o irmão gêmeo de Norris, chamado Ross, que até sua morte, em 1975*, ajudou a compilar o livro e a transforma-lo num best seller mundial.
Embora sua fama derive sobretudo dos registros de excentricidades, o livro não se restringe absolutamente a isso. Daí serem incluídos os preços alcançados em leilões de objetos de arte, o mais denso dos metais e o mais grave dos acidentes rodoviários, etc. Por trás desse modo de encarar o assunto, encontra-se a convicção de Norris McWhirter de que o exame dos recordes mundiais pode ser ao mesmo tempo divertido e educativo. “As pessoas fascinam-se com os extremos”, diz ele. “Anseiam por demarcações e por pontos de referência.”
O amplo interesse dos recordes é comprovado por duas indicações que a edição de 1979 contém sobre si mesma. Os leitores são informados de que esse livro é:
1- o título que mais rápido se vende, entre os de todas as épocas, tendo atingido uma vendagem de 40 milhões de exemplares no mundo inteiro
2- o livro mais furtado nas bibliotecas públicas inglesas

Deixando de lado esses superlativos, o Guinness está na sua 26ª edição na Grã-Bretanha e já foi traduzido em 23 linguas.
Nada, porém, revela mais impressionantemente o sucesso do livro do que o ardor com que as pessoas procuram incluir seus nomes nas páginas do dito. Jovens universitários, atletas fracassados, birutas variados e até algumas pessoas normais participam da “Guinnessmania”. É a riqueza de categorias do livro que enseja tal passatempo: tocar violino debaixo da água, por exemplo, ou manter aceso um cachimbo, ou mesmo o tipo de “maratona” do qual participa Arron Marshall, Austrália ocidental, que em 1978 passou 336 horas em pé, debaixo de um chuveiro, num centro comercial.
Parece que não faltam pessoas como Lang Martin, adolescente de Charlotte, North Carolina, que entrou para o Guinness porque consegue equilibrar seis bolas de golfe.
Uma quarta parte do livro é dedicada aos esportes e inclui passatempos obscuros como o iatismo na areia e as corridas de pombos. Além disso contém marcos não obtidos com facilidade em outras fontes. Você sabia que o jóquei mais leve do mundo foi um pedacinho de gente chamado Kitchener, pesando 18kg, que viveu no século XIX? Ou que um neozelandês de nome Paul Wilson correu 90m de costas, num tempo recorde de 13,3 segundos?
Para os recordes, entretanto, vale quase tudo. Os livro contém seções sobre comércio, ciências, construções, o mundo da natureza – 12 categorias ao todo. Na opinião do Guinness as cataratas não se limitam a borbotar e a jorrar: elas competem. A campeã é o Salto Angel, da Venezuela, com 979m de altura, “recorde mundial”. De maneira semelhante as borboletas estão em disputa com determinada espécie norte-americana denominada monarca, que já foi cronometrada em 27,35km/h, recorde mundial. Para os compiladores do Guinness, o universo é um enorme estádio empenhado na atividade de bater recordes.
Uma vez que os recordes lidam com o inédito e o exagero, o livro possui inevitavelmente um sabor de atração circense. Os compiladores, no entanto, não averbaram acontecimentos sangrentos infundados, proezas sexuais e acrobacias consideradas impróprias ou perigosas. Existe um tabu contra as variações ridículas. O redator esportivo Stan Greenberg diz que “às vezes recebemos uma carta que diz: ‘Fiz tantas flexões de braço, com minha namorada montada nas costas.’ Se nós incluíssemos isso, outra pessoa poderia relatar: ‘Pois eu fiz as flexões, com um cavalo nas costas.’ É preciso, portanto, estabelecer um limite.”
Embora McWhirter insista em fixar um limite e em evitar assuntos de cunho pessoal (como por exemplo os 10 maiores personagens de desenhos animados, em todos os tempos), o livro reflete em quase todas as páginas os caprichos do compilador-chefe. Ele não menciona coleções de folhas de alumínio e aldravas, mas não resiste à menção do maior rolo de barbante do mundo: 3,5m de diâmetro e 5.443kg de peso. Quando lhe dá na telha, condimenta o livro com o seu espírito galhofeiro. Os leitores talvez apreciem o relato daquele que Rusty Skuse, de Aldershot, Inglaterra, considera a dama mais tatuada do mundo: seu corpo foi decorado pelo próprio marido “em até 85% da totalidade”.
Os gêmeos McWhirter nasceram em 12 de agosto de 1925. Ambos se apaixonaram por fatos e cifras e compartilhavam do interesse pelos esportes. Os dois serviram como subtenentes na marinha inglesa durante a Segunda Guerra Mundial. Norris foi destacado para um caça-minas em Cingapura e Ross para outro, no Mediterrâneo. Os navios se dirigiram por caminhos diferentes para La Valeta, Malta... onde colidiram.
Em Oxford ambos foram corredores da equipe de atletismo. Depois da universidade lançaram um “serviço de fatos” para jornais, anuários e enciclopédias, e publicaram uma revista mensal sobre atletismo, intitulada Athetcs World.
A história da concepção do livro de recordes é uma lenda nos meios editoriais. Durante uma caçada em 1951, Sir Hugh Beaver, diretor-gerente da Guinness Ltda., a maior fábrica de cerveja da Europa, ficou imaginando qual seria a mais veloz das aves de caça do mundo. Nenhuma obra de consulta continha a resposta. Ele resolveu que a Guinness haveria de publicar uma relação de casos raros como este, para resolver discussões nos pubs. Um executivo mais jovem, que conhecera os gêmeos em Oxford, recomendou-os para o trabalho, e em 1954 eles foram convidados por Sir Hugh para compilar um livro de recordes. Decorridos 11 febricitantes meses, os McWhirter apresentaram algo admiravelmente adequado, conforme expressão do presidente do Conselho, Lorde Iveagh, para “transformar em luz o calor (gerado pela discussão)”.
Hoje o Guinness suscita 20 mil cartas por ano, em sua maioria submetendo novos recordes e desafios aos recordes já alcançados. Norris Mcwhirter se corresponde com peritos em diversos setores e ataca vigorosamente pilhas de revistas e livros não ficcionais, num esforço para se manter atualizado.
“A gente adquire uma técnica de leitura”, diz ele, “em que expressões como mais longo, mais curto, maior, mais veloz e outros ‘mais’ saltam logo à vista.”
Antes de aprovar os recordes, ele insiste em obter a corroboração de testemunhas independentes, recortes de jornais e fotografias. Relembra com um calafrio a vez em que um jovem inglês alegou haver batido o recorde de colocar moedinhas de três pence, com 12 facetas, umas em cima das outras, de lado. “O recorde era de 11”, recorda McWihirter, “e esse sujeito disse que havia empilhado 13. Incluiu até uma foto. Eu, porém, não gostei da história e por isso lhe telefonei e comecei a fazer perguntas. Ele acabou se abrindo: Está certo, vou lhe contar como foi que consegui fazer isso.”
“Ele tinha utilizado um adesivo forte e com este havia colado no teto uma cadeira, uma mesa e um tapete. Aí pendurou as moedas na mesa, com uma fita gomada transparente. Fotografara tudo e simplesmente virara a fotografia de cabeça para baixo.” Com um sorriso irônico, McWhirter acrescenta: “Ele merece o recorde mundial da engenhosidade.”
Apesar de todo o cuidado de McWhirter, uma ou outra mancada acontece de vez em quando. Em 1978 foi atribuído a um homem chamado Wayne Thompson o crédito de estabelecer o recorde de natação em logo percurso – ele nadara 2.998km descendo os rios Missouri e Mississipi. Depois de feita a inclusão do seu nome, descobriu-se que Thompson usara pés-de-pato, o que representava uma violação das estipulações do Guinness. Os admiradores sinceros da literatura dos recordes ficarão satisfeitos com a informação de que o nome desse Thompson já não figura nas edições atuais. É também reconfortante saber que foi corrigida uma discrepância no recorde de conservar na língua um drope, tipo salva-vida. A edição britânica, de 1979, deu o recorde como sendo de 87 minutos; nos Estados Unidos haviam-no incluído com 102 minutos. Parece que os redatores norte-americanos do livro não estavam a par da “sentença” de McWhirter, para que se parasse o cronômetro quando desaparecesse o furinho no centro do drope.
A Guinnessmania consegue ser ao mesmo tempo democrática e seletiva. Pois não é que Roger Guy English, de La Jolla, Califórnia, figurou no Guinness diversas vezes por dançar o twist, vencer uma maratona de beijos e por ficar acordado? Três recordes para um cara que nunca foi campeão olímpico! Mas não digam a Rick Murphy, instrutor de ginástica de Salt Lake City, que entrar para o Guinness é coisa de pouca importância. Murphy bateu em 1974 o recorde de caminhar plantando bananeira, percorrendo 45m sobre os braços, com as pernas par o ar. Viu seu nome incluído em uma edição (a de 1976) antes que outra pessoa batesse o mesmo recorde. “Fiquei orgulhoso de entrar para esse livro”, diz Murphy. “Foi a melhor coisa que já fiz na vida.”

terça-feira, agosto 29

O melhor presente de Natal

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1981
Autor : James Herriot

Ela não passava de uma vira-lata meio selvagem, mas nos trouxe um presente maravilhoso.

Minhas recordações do Natal ficarão sempre ligadas àquela gatinha. Vi-a pela primeira vez num dia de outono, quando fui chamado para examinar um dos cães da Sra. Ainsworth, e vi, com certa surpresa, a peluda e negra criatura sentada diante da lareira. “Não sabia que a senhora tinha um gato!”, comentei.
A senhora sorriu. “Não temos. A debbie é uma ‘pára-quedista’. Surge aqui duas ou três vezes por semana, e nós lhe damos de comer.”
“A senhora não tem às vezes a sensação de que ela quer ficar?”
“Não tenho não.” Sacudiu a cabeça. “É uma bichinha tímida. Entra de mansinho, come um pouco, depois some. Existe nela algo que nos encanta, mas não parece querer deixar que eu nem mais ninguém participe da sua vida.”
Olhei novamente para a gata. “Hoje ela não está só comendo...”
“É verdade. Pode parecer engraçado, mas de vez em quando ela entra aqui para se sentar aí à frente da lareira alguns minutos. Como se estivesse dando um prazer a si mesma!”
“Compreendo o que a senhora quer dizer.” Havia alguma coisa estranha na atitude de Debbie. Sentada, aprumada no tapete espesso diante da lareira, ela não procurava enroscar-se, lamber-se nem fazer coisa alguma; só olhava tranqüilamente para frente. Havia também qualquer coisa no tom negro empoeirado do seu pêlo, no seu aspecto esquelético, meio selvagem que acabou me dando uma pista. Aquilo era um acontecimento especial na sua vida, uma coisa rara e maravilhosa. Ela estava era se deliciando com um conforto nunca imaginado na sua existência cotidiana.
Enquanto eu a observava, ela se virou, saiu silenciosamente da sala e desapareceu. “É sempre assim, que a Debbie se comporta”, riu-se a Sra. Ainsworth. “Nunca fica mais de 10 minutos.”
A Sra Ainsworth era uma mulher gorducha, de fisionomia agradável, quarenta e poucos anos, o tipo da cliente com que sonham os cirurgiões veterinários: abastada, generosa e dona de três mimados bassês ingleses. Bastava que se aprofundasse um pouco a expressão habitualmente triste de um dos cães para que sua dona, alarmada, corresse ao telefone.
Por isso, minhas visitas à casa dos Ainsworth eram freqüentes ( ainda que não trabalhosas) e me davam bastante oportunidade para observar a gata que me havia intrigado. Houve uma ocasião em que os três cães se achavam deitados, roncando sobre o tapete, em frente à lareira. Debbie estava sentada entre eles na sua atitude habitual: aprumada, atenta, fitando com um olhar absorto o carvão em brasa.
Dessa vez tentei travar amizade com ela. Com uma adulação paciente e uma conversa meiga, consegui acariciar com um dedo a sua bochecha. Ela retribuiu o carinho esfregando a face na minha mão, mas logo estava pronta para partir. Uma vez fora de casa, projetou-se rápido por uma brecha na cerca, e a última visão que tive dela foi a de uma figurinha preta esvoaçando por um campo varrido pela chuva.
“Gostaria de saber para onde ela vai”, murmurei comigo mesmo.
A Sra. Ainsworth apareceu a meu lado. “Isso é uma coisa que nunca conseguimos descobrir.”

Só voltei a ter notícias da Sra. Ainsworth na manhã do dia de Natal, quando ela me telefonou. “Sr. Herriot, lamento tanto incomoda-lo, especialmente num dia como o de hoje!” A polidez, entretanto, não conseguia disfarçar a aflição da sua voz. “Trata-se da Debbie. Aconteceu alguma coisa. Por favor, venha depressa.”
Enquanto dirigia meu carro pelo largo do mercado, meditei novamente que Darrowby no dia de Natal parecia uma obra de Dickens que se houvesse materializado: a praça vazia, uma espessa camada de neve sobre os paralelepípedos da rua e pendurada nos beirais dos telhados; as luzes coloridas das árvores de Natal piscando às janelas das casas agrupadas, calorosamente convidativas, contra o branco frio das árvores cortadas por trás delas.
A casa da Sr. Ainsworth estava ricamente decorada com festonês de alumínio, ramos e frutos de azevinho. Um poderoso aroma emanava da cozinha – de peru com recheio de Artemísia e cebolas. Os olhos da dona, entretanto, iam cheios de sofrimento enquanto ela atravessava comigo o saguão.
Debbie estava ali, estirada, imóvel, de lado. Aconchegado a ela, um minúsculo gatinho preto. “Não a vejo há várias semanas”, explicou a Sra. Ainsworth. “Há cerca de duas horas ela entrou aqui, como que cambaleando, e trazendo na boca o gatinho. Depositou-o sobre o tapete, e a princípio achei graça; mas depois vi que as coisas não iam bem.”
Ajoelhei-me e passei a mão pelo pescoço e pelas costelas de Debbie. Pareceu-me mais magra que nunca, com o pêlo sujo e uma crosta de lama. Puxei-lhe então a pálpebra e vi a conjuntiva completamente branca; tive um péssimo pressentimento. Apalpei o abdome e, com uma certeza sinistra, meus dedos se fecharam em torno de um calombo duro nas profundezas das vísceras – um maciço linfossarcoma. Terminal e desesperador.
Dei a notícia à Sra. Ainsworth. “Ela está morrendo. Está em coma... muito além do sofrimento.”
“Oh, pobrezinha!” Ela soluçou e acariciou a cabeça da gata repetidas vezes, enquanto suas lágrimas incontidas caíam sobre o pêlo mal nascido. “Como deve ter sofrido” Acho que eu podia ter feito mais por ela.”
Durante alguns momentos mantive-me em silêncio, sentindo a sua dor. Depois disse suavemente: “Ninguém poderia ter feito mais do que a senhora fez.”
“Talvez se eu a tivesse guardado aqui, com conforto...Deve ter sido horrível, lá fora na friagem, quando ela estava tão gravemente doente. Ainda por cima tendo filhotes...quantos teria?”
Levantei os ombros. “Não creio que venhamos a saber a verdade. Talvez só este. Isso às vezes acontece... e ela o trouxe para a senhora, não foi?”
“É verdade, ela trouxe.” Assim que a Sra Ainsworth estendeu a mão e levantou aquela coisinha preta enlameada, a boquinha se abriu num “miau” silencioso. “Não é curioso? Ela estava morrendo e trouxe seu filhote para cá. No dia de Natal.”
Abaixei-me e coloquei a mão no coração de Debbie. Já não batia. Embrulhei a bichinha num pano e levei-a para o carro. Voltei, e a Sra Ainsworth continuava a acariciar o gatinho. Suas lágrimas havia secado. “Nunca tive um gato.”
Sorri. “Bem, parece que agora já tem.”

O gatinho cresceu rapidamente, transformando-se num bichano luzidio e elegante, com uma personalidade impetuosa que lhe valeu o nome de Buster (Demolidor). Em todos os sentidos, ele era o oposto da sua tímida mãe. Caminhava empertigado como um rei pelos preciosos tapetes do solar dos Ainsworth.
Durante minhas visitas, eu observava com prazer o seu desenvolvimento, mas a ocasião que me ficou na lembrança foi o dia de Natal seguinte, um ano depois da chegada de Buster.
Como de costume, eu saíra para fazer a minha ronda de visitas, pois os animais nunca chegaram a reconhecer o Naral como dia feriado. Estava a caminho de casa, impregnado de uma euforia rosada devida aos brindes que fizera com fazendeiros hospitaleiros, quando ouvi a Sra Ainsworth exclamando: “Feliz Natal, Sr. Herriot! Entre para tomar um drinque e se aquecer.” Eu não estava precisando de aquecimento, mas sem hesitar parei junto ao meio-fio. Dentro de casa, via-se toda a alegria festiva do ano anterior, mas sem a tristeza, porque havia Buster.
Ele corria trás de cada um dos três bassês da Sra. Ainsworth, orelhas erguidas, olhos brilhantes, travessos, batendo neles com a pata e depois fugindo veloz como um raio.
A Sra. Ainsworth se ria. “O senhor sabe, ele atormenta demais os cachorrinhos!” Para os bassês, a chegada de Buster foi mais ou menos como a intromissão de um forasteiro irreverente num clube seleto de Londres.
“Quero lhe mostrar uma coisa.” A Sra. Ainsworth apanhou, do aparador, uma bola dura de borracha e saiu seguida de Buster. Atirou-a para o outro lado do gramado e o gato saltou atrás dela, com os músculos ondulando sob o brilho negro do seu pêlo. Agarrou a bola entre os dentes, trouxe-a até sua dona, deixou-a cair no chão e ficou esperando com expectativa. Meu queixo caiu de incredulidade. Um perdigueiro felino!
Os bassês assistiam a tudo com desdém. Nada os induziria jamais a correr atrás de uma bola...

segunda-feira, agosto 28

"Olá, Herói!"

fonte : Revista Seleções
data : Novembro de 1970
autor : Sandra KirkPatrick (Tenente do Corpo de Enfermeiras da Marinha Americana)

Uma enfermeira fala dos triunfos e derrotas, dos risos e lágrimas dos quatro anos que passou trabalhando com mutilados do Vietnam.

Insegura e tímida, parei à entrada do pavilhão 76B do Hospital da Marinha em Oakland, Califórnia. Eu não o sabia naquela manhã de novembro de 1965, mas aquilo era o começo de uma grande aventura.
Dos 40 pacientes que se encontravam na grande enfermaria à minha frente apenas cinco teriam mais de 20 anos. A maioria eram fuzileiros navais; eram todos mutilados recentes do Vietnam – sem pernas, sem braços, sem pernas nem braços. Aqui e além faltava um olho.
“Por que eles?” Tive ímpetos de chorar. “São tão jovens! Que devo dizer? Que fazer?”
Uma enfermaria de mutilados não era a idéia que eu fazia do lugar ideal para trabalhar. Minha experiência anterior não me havia preparado para os mutilados nem para os assobios e gritos de entusiasmo com que fui recebida: “Quem é a nova enfermeira?” “Puxa, como é alta!” “Olá, pernalta!”
Parecia uma casa de doidos. Rádios e televisores ligados. Impelidas por pacientes sem pernas, usando bengalas como varas de esquiar, cadeiras de rodas rodavam por ali a velocidades vertiginosas. A Tenente Pat McDonald, a que eu ia substituir, conduziu-me por entre as fileiras de camas.
Aí fui apresentada a Jim, de 17 anos apenas, sem a perna e o braço direitos, cortados rente. Ele estendeu-me uma peça de plástico que substituía sua mão esquerda. Apertei-a com firmeza, e ela ficou em minha mão. Todos riram – menos eu.
Mais tarde vim a saber que Jim estava num abrigo individual quando uma granada lhe caiu aos pés. Não explodiu, e durante horas angustiosas ele ficou ali com medo de se mexer. Uma explosão próxima finalmente a detonou. Agora ele estava rindo do meu embaraço.
Na cama seguinte um rapaz que perdera uma perna levantou alegremente o coto. Ele desenhara uma careta na atadura, com uma caneta grossa. Vocês tem razão: fiquei desalentada.
Após aquela ruidosa recepção tive vontade de pedir transferência para outro setor. Não sei bem por que não o fiz, e passei quatro anos trabalhando com aqueles e mais 200 outros mutilados da guerra do Vietnam, primeiro em Oakland, depois no Hospital Naval Americano de Guam. O que aprendi com aqueles bravos jovens nunca poderei medir. Uma coisa, porém, eu sei: participar de seus triunfos e derrotas ensinou-me humildade e aceitação do que vier na vida. Outra coisa importante: aprendi que nada mutila a coragem.
Perigo – Tubarões! Entre si os mutilados riam-se de suas desgraças. “Camarada, você e sua conversa não param de pé”, era um argumento concludente. Todo mundo era recebido com um “Olá, herói” ou: “Lá vem o fuzileiro!’
A reação, porém, era bem diferente quando gente de fora interferia na vida deles. Quando um fuzileiro se casou na capela do hospital, assistido por oito companheiros, um repórter publicou uma fotografia da cerimônia com a legenda: “Ao todo apenas quatro pernas e 12 braços.” A enfermaria ficou indignada: “Por que tinham de dizer que somos diferentes?”
O moral dos mutilados sempre me impressionava. Podiam ser aleijados, mas raramente eram tristes. E na maior parte do tempo eram verdadeiramente irreprimíveis.
Certa vez, na sala de Fisioterapia, um oficial da Marinha, conhecido por seu temperamento pouco comunicativo, passou junto da piscina onde Tom, um fuzileiro magricela, que tinha perdido uma perna, estava fazendo tratamento de imersão. Erguendo o coto acima da água, Tom agitou-o para o oficial, gritando: “Socorro! Socorro! Um tubarão!”
Nem tudo eram pilhérias, naturalmente. No meio da noite, horas propícias à meditação, eu muitas vezes me tornava Madre Confessora. “Serei aceito?” perguntava um rapaz. Ou: “Eu não quero ser o herói da cidade.” “Poderei dirigir?” “Como vou ganhar a vida?” Às vezes havia ressentimento: “Eles não se preocupam conosco, não é, Miss Kirkpatrick?”
De madrugada, nas minhas rondas à luz de lanterna elétrica, controlando os aparelhos de ministração do soro, dando uma pílula aqui, ajeitando as cobertas além, eu sofria com eles. Aquelas fisionomias tão jovens para já terem visto tanto denunciavam sua dor mesmo dormindo. Lágrimas rolavam-me pelas faces e eu pedia: “Ó meu Deus, sê bom para eles!”
As feridas mais profundas. A rejeição ou a indiferença era o que mais feria. Uma vez, depois da visita de sua esposa e do pai, encontrei Roger, um rapaz de 19 anos que havia perdido as duas pernas e um olho, chorando na cama. “Ela quer o divórcio”, disse ele, “e meu pai só queria saber se a pensão continuaria sendo enviada.”
Mas havia os casos confortadores, Gordon, um marinheiro, tinha perdido as pernas quando um cabo de retenção de avião na plataforma de vôo de seu porta-aviões rebentou e bateu nelas. A mulher dele, uma garota bonita e alegre, nunca chorava nem se queixava. Levava a filha deles de quatro anos e o menino de três para visitá-lo todas as semanas e as crianças aceitavam bem a situação.
Durante as visitas ele divertia-as mostrando-lhes como os novos membros funcionavam. Havia sempre muitos risos. Como eu admirava aquela mulher!
Não havia segredos no Pavilhão 76B. A notícia de que alguém recebera carta da namorada acabando com o namoro espalhava-se, e todo mundo tentava animar o paciente.
“Olá, Jack, você devia ver o que a minha garota fez comigo!”
E houve o dia em que também eu recebi uma carta de rejeição. Fiquei muito reprimida e creio que não consegui esconder os meus sentimentos. Inevitavelmente a notícia se espalhou pela enfermaria. Na manhã seguinte havia 43 cartas na minha mesa de trabalho – todas propostas de casamento ou declarações de amor.
Como vêem, não é de admirar que eu considere os quatro anos que passei trabalhando com os mutilados como os mais compensadores da minha vida. Quantas vezes, ainda hoje, a lembrança da coragem e alegria deles me dava ânimo.
Os mutilados sempre me agradeciam pela menor coisa que eu fizesse por eles. Hoje eu é que desejo agradecer o que eles fizeram por mim.

sábado, agosto 26

"Aposto que dava para beijá-la..."

fonte : Revista Seleções
data : Novembro de 1980
autor : James Stewart-Gordon

Ah, que maravilhoso é o primeiro amor da juventude!

Os filmes antigos que passam de noite na televisão nos transportam, de vez em quando, num tapete mágico, para o passado. Foi o que me aconteceu não faz muito tempo, e retornei àquele verão em que descobri que ser jovem e apaixonado é muito duro, mas que ser jovem, apaixonado e tímido demais para exprimi-lo pode levar muito tempo para esquecer, e até, às vezes, a gente nunca esquece.

Aos 15 anos, quase 16, as minhas relações humanas não incluíam garotas. Durante a semana eu jogava futebol, beisebol, e boxe às sextas-feiras à noite, no clube de pugilismo da escola, só para rapazes. Aos sábados, se a equipe não jogava, eu ia ao cinema, onde, por uma ninharia, qualquer um podia mergulhar numa dupla personalidade e encher a cabeça de sonhos. Desde essa época não mudou muito o enredo dos filmes românticos, mas para mim, eles eram o espelho da vida real – uma garota sensacional trava conhecimento com um rapaz bonito e confiante, que lhe faz a corte com lindas frases, em vez de ramos de flores.
Num sábado chuvoso, ainda sob o feitiço de um filme com Douglas Fairbanks Jr., entrei na mercearia, ao lado do cinema. Por trás do balcão dos doces estava uma moça que eu nunca vira. Era loura, devia ter a minha idade, e, quando sorria, aparecia-lhe uma covinha no rosto. Era a coisa mais linda que eu já tinha visto. Minha vontade foi fascina-la com uma daquelas frases à Fraibanks, mas tudo o que consegui fazer foi apontar para o tabuleiro e dizer com voz trêmula e aos soluços: “Pode me pesar cinco centavos de chocolate, por favor?”
Ela tirou o doce com uma pazinha de latão, pesou-o e meteu-o num saco de papel branco. As nossas mãos quase se tocaram quando lhe entreguei a moeda.
Vivi a semana seguinte num mundo de sonhos, preenchido por uma loura com uma covinha no rosto, que me sorria quando me dirigia a ela num desenvolto diálogo memorizado dos filmes.
Comecei a minha vida dupla no sábado seguinte. A nossa equipe tinha um jogo previsto, mas eu me levantara cedo para de novo admirar a minha recente deusa do amor. No ônibus da equipe tomei uma daquelas decisões que, dizem, mudaria a vida de um homem. “Professor”, implorei, “a minha mãe deu uma queda grave, e preciso voltar já para casa. Tenho de faltar ao jogo.”
O cinema não começava senão daí a uma hora. Passei pela loja várias vezes; via a moça, fazia que ia entrar e depois parava – queria desesperadamente dizer-lhe qualquer coisa, mas nada me ocorria.
Depois lembrei-me de uma frase de um filme com Spencer Tracy e Joan Bennett: “Você é nova por aqui, não é?” As palavras pareciam perfeitas. Ali perto havia um parque. Sentado num banco, ensaiei a minha frase de abertura, tentando pronuncia-la com o ar casual de Tracy.
Quando finalmente entrei na loja, tentando, com dificuldade, parecer descontraído, dirigi-me ao balcão dos doces à procura da loura. Em seu lugar havia uma moça de cabelos escuros, com uns brincos compridos nas orelhas. Antes que me apercebesse, a frase que eu vinha ensaiando saiu da minha boca: “Você é nova por aqui, não é?”
Perdi todo o meu aprumo e desatei a correr para dentro do cinema.
Era já noite quando saí do cinema. Com o moral de certo modo levantado, decidi tentar novamente a mercearia. A loura com a covinha no rosto estava no balcão. Caminhei para ela tão seguramente quanto pude e tentei sorrir, imitando Clark Gable no papel de um corajoso jogador. Nunca tinha gasto mais do que uns tostões em doces, mas senti que a ocasião merecia um pouco de alarde. Atirando a minha última moeda em cima do balcão, eu disse: “Ponha aí 10 centavos para mim.”
Ela sorriu, encheu o saco e passou-o a mim. Agarrei-o com um gesto que me pareceu ser despreocupado e ia dizendo, tal como Gable, “Até logo!” – mas, nesse preciso momento, uma mulher obesa acompanhada de duas crianças muito gordas me empurrou para o lado.
As semanas seguintes foram de terna admiração. A minha cabeça estava cheia de idéias românticas, e comecei a passar pela loja quase diariamente, depois da escola, fingindo estudar as pilhas de mercadorias nas vitrinas, enquanto na verdade admirava aquela cabeça loura. Pensava agora como poderia encontra-la fora da loja, para lhe poder falar. Nunca antes me tinha apaixonado.
Num belo sábado a moça por que eu tinha esperado toda a semana apareceu, não sei de onde, pelos fundos da loja e, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela me saudou: “Oi!”
O tempo parou para mim. Quando finalmente consegui responder, apenas gaguejei: “Vou para o cinema e queria uns docinhos.”
Ela sorriu e eu notei que os seus olhos eram muito azuis. “Chocolate ou doce de nozes cristalizados?”
“Queria cinco centavos de mistura”, dei por mim dizendo. Não consegui despregar os olhos da garota, enquanto ela escolhia os doces e os metia dentro de um saco. Eu sabia que cinco centavos só davam direito a três pedaços de doce, mas ela pôs cinco dentro do saco e aceitou a minha moeda sem qualquer comentário. Ela estava muito perto de mim, com o rosto virado para o meu. Ia agradecer-lhe, quando a moça dos brincos chamou. “Maria.” Ela foi-se embora.
Então Maria era o seu nome! Muito confuso, entrei no cinema, no meu segundo mundo, e, algumas horas depois, quando saí, ainda repetia para mim próprio o nome “Maria!”
Nessa sexta-feira, no boxe, o meu pensamento encontrava-se de tal maneira com Maria que esqueci de me esquivar e Tommy Walgren, o melhor pugilista do clube, me esmurrou no nariz. Deixou-me sangrando e, mais tarde, estimulado pelo seu sucesso, chamou-me à parte e mostrou-me a foto de uma garota usando um vestido branco. “Chama-se Marjorie”, confessou-me. “Conheci-a na semana passada e ela me ofereceu um retrato.”
O meu espírito vacilou. “Você a conheceu e ela lhe deu logo uma fotografia?”
“Claro”, disse Tommy, muito senhor de si. “Vou me encontrar com ela amanhã e dar-lhe a minha foto também.”
Eu precisava dizer algo para reabilitar a minha dignidade. “A minha namorada chama-se Maria”, adiantei. “Parece com Joan Bennett.”
“Oba!” exclamou Walgren. “Joan Bennett? Você tem retrato dela?”
Corei. “Tenho... no armário do meu quarto.”
Walgren estava fascinado. “Você pode leva-lo para a escola na próxima semana?”
“Claro”, disse eu, fingindo um ar natural.
Só mais tarde na cama, saboreando o meu momento de triunfo, compreendi que o melhor que tinha a fazer era arranjar uma foto de alguém que se parecesse com Joan Bennett. Foi então que me lembrei de que na mercearia havia retratos de atrizes de cinema. Se conseguisse encontrar uma desconhecida que se parecesse com a Joan Bennett, poderia mostrá-la a Tommy e “comprovar” a minha mentira. Foi em vão, no entanto, a tentativa que fiz na seção de molduras da loja. Completamente desanimado, voltei-me para o balcão dos doces. Maria lá estava, sorrindo.
“Oi!”, cumprimentou-me.
Durante um breve momento, pensei vagamente em pedir-lhe: “Você pode me dar um retrato seu?” Mas não disse nada. Apenas comprei um bocadinho de chocolate. Fosse como fosse, eu tinha de arranjar coragem para pedir a Maria que se encontrasse comigo num lugar, onde pudéssemos conversar. Mas como?
Nessa tarde, num dos filmes, Pat O’Brien disse para uma bailarina: “Vamos nos encontrar depois do espetáculo.” Eles realmente se encontraram e o romance começou. A frase fincou pé no meu espírito e decidi tentá-la com Maria. Ela ficaria espantada com o meu savoir-faire e aceitaria. Então eu ia poder dizer-lhe como ela se parecia com a Joan Bennett... e pedir-lhe a foto.
Quando o filme acabou, dirigi-me ao balcão de doces. Estava lá a moça dos cabelos escuros, mas, de Maria, Nem sinal. “Cadê a Maria?”, perguntei.
“Foi para casa”, disse a moça dos cabelos escuros. Depois olhou para mim. “Você gosta dela, não gosta?” Corado, tentei dizer qualquer coisa, mas as palavras não me saíam. Virei-me e fugi para a rua.
Na segunda-feira fui para a escola bastante acabrunhado. Tommy não estava lá, tinha pegado sarampo e só voltaria dentro de duas semanas. Em parte eu estava salvo, mas a pergunta da moça dos cabelos escuros e a minha vermelhidão pesavam terrivelmente no meu espírito. Sabia que nunca mais poderia encarar Maria.
Quando Tommy regressou e me pediu para ver a foto dela, eu lhe disse que tínhamos acabado. “Eu e a Marjorie, também acabamos”, disse ele – e nenhum de nós voltou a falar de namoradas.
Meses mais tarde tornei a ver Maria. Num dia em que tinha ido à cidade, à tardinha, quando regressava a casa de metrô, ela entrou numa das estações em que paramos. Sorriu e dirigiu-se para mim.
“Oi!”, disse ela. “Por onde é que você tem andado?”
Comecei a dizer algo, mas o barulho do trem não a deixava ouvir e tive de me curvar para me aproximar do seu ouvido. Pude sentir o seu perfume: era maravilhoso. Não consegui lembrar de uma única frase de um filme para lhe dizer... e ali ficamos, silenciosamente, até chegarmos à minha estação. Quando as portas se abriram, houve um pouco de silêncio.
“Você ainda costuma passar pela loja?” perguntou-me Maria.
“Não”, respondi. “Nunca mais.”
“Eu também já não trabalho lá”, disse ela.
O meu coração pulou. Se pudesse descobrir onde ela trabalhava, poderia tornar a vê-la. E principei a perguntar-lhe: “Onde é que você trabalha agora?”
Ela estava ao meu lado, com o rosto virado para mim. De repente, a porta começou a fechar-se; agindo num impulso automático, saltei para fora, antes que ela me pudesse responder.
Essa foi a última vez que a vi.
Uma noites destas, ao terminar o velho filme na televisão, pensei em Maria, a minha deusa do balcão dos doces. Eu era muito novo e inexperiente para lhe dizer que desejava conhece-la melhor, mas, quando me levantei e desliguei o aparelho, disse para mim mesmo: “Aposto que dava para beija-la...”
Vi a minha mulher subindo as escadas, segurando um monte de revistas e uma almofada elétrica.
“Ei!”, chamei, “que é que você vai fazer depois do espetáculo?” Eu parecia mesmo um artista de cinema... e não corei.

sexta-feira, agosto 25

O salvamento de um golfinho

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1985
Autor : Juhn G. Fuller

O simpático mamífero estava passando um mau bocado numa praia de Cape Cod e um pequeno exército de voluntários se apresentou para ajudar. Mas tudo estava contra eles: nenhum golfinho encalhado jamais havia conseguido voltar ao mar.

Durante toda a primeira semana de dezembro de 1983, o tempo na costa do Atlântico Norte estivera incerto. A chuva castigava a ponta de Cape Cod em Provincetown, Massachusetts. Na quarta-feira, 7 de dezembro, ventos com a velocidade de 15 nós levantavam ondas de quase um metro e a temperatura havia caído quase a 0º .
Apesar do tempo, duas pessoas passeavam pela praia. Um pouco antes do meio-dia, elas escutaram um som estranho sobrepondo-se ao barulho do vento, uma combinação de grito fantasmagórico com um assobio agudo. Não foi difícil descobrir de onde vinha. Bem perto da praia, um grande objeto escuro se debatia dentro da água. Um golfinho solitário, indefeso na areia, era sacudido de um lado para o outro pela arrebentação.

Armadilha. Quase todos os que moram ali em Provincetown acham um golfinho extraviado uma coisa muito especial, e os dois que o encontraram correram a um telefone para chamar o Centro de Estudos do Litoral, que fica a uns quilômetros. Dois funcionários que vieram investigar o caso confirmaram que um golfinho do Atlântico Norte, com quase 2m de comprimento e branco nos flancos, estava se debatendo na areia, em meio metro de água. Não ficaram surpresos: é nessa época que as baleias e os golfinhos que singram as águas frias do Atlântico mais se extraviam. Parece que as praias que descem em declive suave transtornam o sonar de navegação dos grandes mamíferos, tornado-se uma armadilha enganadora para eles.
Rapidamente, a Rede de Salvamento de Animais Extraviados, Seção Nordeste – um grupo de organizações marinhas situadas ao longo da costa Atlântica dos Estados Unidos -, entrou em ação. Funcionários do Centro de Provincetown correram para a praia, com botas de cano alto, uma lona impermeável e luvas. Caminhando com dificuldade pela água gelada, introduziram a lona por baixo do animal que se debatia.
Para lidar com um golfinho ferido é preciso muito cuidado. Sua pele delicada, frágil como um papel de seda molhado, deve ser protegida para não secar (para isso, nesta ocasião, utilizou-se óleo de cozinha comum). O animal deve ser mantido molhado e frio, do contrário, literalmente cozinha em sua própria gordura. Uma vez removido da água, o peso do golfinho é seu inimigo. As nadadeiras podem ser esmagadas, e a respiração, cortada. A perspectiva era sombria; nenhum golfinho de alto-mar extraviado jamais havia voltado são e salvo às suas águas de origem.
O grupo de resgate da Rede de Salvamento estava, porém, decidido a salvar este. “Detesto ver morrer uma coisa tão bonita como o golfinho”, disse um dos rapazes, expressando o pensamento de todos. Fizeram-se chamadas telefônicas para Hyannis, na parte sul de Cape Cod , onde o Fundo Internacional para o Bem-Estar Animal mantém um avião de salvamento, e para o Aquário Marinho de Mystic, em Connecticut, o qual possuía um tanque disponível e um caminhão equipado com uma maca, além de borrifadores de água de carregar nas costas, recipientes térmicos para o gelo e latas de óleo. Tanto o avião quanto o caminhão seriam necessários para levar o golfinho até Mystic, a 300km de distância.
Mas o caminhão provavelmente não chegaria lá antes do anoitecer. Com todo aquele frio e o terrível cansaço, poderiam os voluntários resistir até lá? A maré estava baixando e eles tiveram de carregar o golfinho mais para fora da praia. As botas de cano alto estavam agora tão geladas do lado de dentro como por fora. A lona ficou escorregadia. Alguns homens estavam perto da exaustão. Um apelo, transmitido pela estação de rádio local, trouxe mais de 12 novos voluntários para tentar ajudar o golfinho, que se debatia em evidente sofrimento.
O caminhão para o resgate chegou de Mystic logo depois das 18:00. Correndo para a água, o treinador de animais Curt Horton descobriu uma ferida sangrando junto à nadadeira peitoral esquerda e concluiu que o golfinho não estava em condições de ser rebocado de volta para o mar. Após quase 10 minutos de luta, os voluntários conseguiram levar o pesado animal até o caminhão próximo. A caminho do aeroporto, Horton e Pat Bubucis, um funcionário de Mystic, untaram o golfinho com gordura e borrifaram com água dos seus tanques portáteis. Durante esse tempo todo, os olhos do golfinho pareciam suplicar.
No aeroporto, os homens mal conseguiram fazer que o animal coubesse no avião Cessna, que esperava. Cobriram-no, então, com gelo para o vôo de 40 minutos. Durante a viagem, o golfinho começou a tremer – um sinal de que estava exaurido e em estado de choque. Às 7:45 o avião aterrou na pista de Groton, em Connecticut, a 15km de Mystic.
Secretárias, pesquisadores e dirigentes do aquário – todos apreciadores de mamíferos marinhos – estavam esperando. Um golfinho incapacitado tem de ser movido continuamente de um lado para o outro do tanque, afastado das bordas de cimento e mantido cuidadosamente com o dorso para cima, a fim de não se afogar. Os funcionários e os voluntários teriam de trabalhar 24 horas por dia.
O golfinho ferido foi baixado por meio de uma maca para dentro do tanque de 10m de largura e ensaiou seus primeiros movimentos com a cauda. Dois voluntários delicadamente formaram um círculo, com seus braços em volta dele, mantendo cuidadosamente seu respiradouro acima da água. Sabe-se que o delicado sonar do golfinho se confunde num tanque circular, e uma virada de mau jeito provocaria afogamento. De repente o golfinho libertou-se, retorcendo-se, e projetou-se para o fundo. Um dos voluntários mergulhou, tirou-o do fundo do tanque e empurrou-o para a superfície, onde começou a nadar de novo.

Faraó marinho. O veterinário Larry Dunn verificou que o golfinho era um macho de 1,83m e 105kg. Era um belo animal, de coloração inteiramente diferente do cinza monocromático dos que são exibidos em espetáculos em aquário (Turciops Truncatus). Tinha o dorso preto brilhante e a barriga branca, e uma mancha cor de marfim sob a barbatana dorsal. Finas linhas pretas, partindo dos cantos exteriores dos olhos e seguindo para trás, faziam lembrar um faraó egípcio. A curva sorridente da boca contrastava com o seu olhar desesperado.
Na manhã seguinte, um membro da equipe jogou um arenque com uma carga de antibióticos na superfície do tanque, para atrair o bicho.
Não houve reação. Experimentou-se atirar-lhe trutas vivas, ao preço de 1,5 dólar nos Estados Unidos, cada uma. Também foram desprezadas. Finalmente um voluntário segurou as mandíbulas do golfinho e abriu-as à força, revelando quatro fileiras de dentes pontiagudos como agulhas. Outro enfiou o arenque na boca do golfinho. Todos que estavam ali gritaram de alegria.
Os voluntários estavam começando a sentir um afeto pouco científico pelo golfinho. Enquanto o animal descrevia círculos intermináveis na água, que lhes batia até os ombros, todos se admiravam com a delicadeza inalterável que ele demonstrava.
Enquanto isso, outras equipes continuavam trabalhando 24 horas por dia. Na segunda noite, embora o animal estivesse calmo e dócil, aumentou a preocupação geral pelo fato de ele não comer os outros arenques que lhe foram oferecidos. Certa das 3:00 da madrugada seguinte, ele finalmente irrompeu à superfície, atravessou o tanque e arremeteu contra a parede de concreto, batendo com a mandíbula. O sangue esguichou-lhe da boca. A água à sua volta avermelhou-se. Sua mandíbula inferior tinha ficado deslocada. Vários dentes se haviam quebrado.
Uma radiografia mostrou que havia uma fratura no maxilar inferior. Agora, toda a alimentação teria de ser forçada e a mandíbula ferida aberta com muito cuidado.
Sua alimentação passou a ser feita num frenesi desesperado. O treinador Dave Merritt foi o primeiro a calcular mal um movimento, e uma rabanada de Harvey causou-lhe uma distensão nas costas. A treinadora Annie Jones foi a seguinte: atirada longe, acabou numa cama por mais de uma semana, também com dores nas costas. O veterano Curt Horton seguiu o mesmo caminho: ficou fora de circulação por quase duas semanas, com ruptura num disco lombar.
Apesar de tudo, Harvey dava sinais de melhora. Em fins de dezembro, já devorava 6kg de arenques por dia. E estava alegre. Começou a nadar em volta dos membros da equipe, deixando que o acariciassem e o segurassem. Retorcia-se, nadava e ficava de cabeça para baixo. Com a mandíbula quase curada, tornou-se delicado novamente.
Aí, o turbulento Atlântico Norte se manifestou de novo. Dois outros golfinhos extraviados juntaram-se a Harvey no tanque. Um morreu de pneumonia; o outro, uma fêmea que a equipe apelidou de B. J., era impetuoso, apesar do seu pulmão direito ter sido comprimido. Surgiu a esperança de que, juntos, os dois golfinhos pudessem ser os primeiros a voltar às suas águas de origem. De repente, porém, B. J. fracassou em seus esforços para chegar à superfície. Quando a equipe ainda se preparava para ajuda-la, Harvey rapidamente deslizou a seu lado, colocou-se embaixo dela e sustentou-a até que readquirisse a capacidade de respirar por si própria. Seu progresso foi tão grande que, em meados de fevereiro, Larry Dunn marcou para o dia 11 de abril a data de liberação dos dois golfinhos.
Nos princípios de março, entretanto, B. J. começou a regurgitar. Embora Harvey viesse em seu auxílio novamente, B. J. exalava um hálito fétido, o que era mau sinal. A pneumonia logo se instalou e certa noite ela desceu ao fundo e morreu. Se isso acontecera tão subitamente com B. J., que dizer de Harvey? E quando fosse solto no Atlântico, conseguiria encontrar o auxílio e a companhia dos de sua espécie? A euforia diminuiu.
Algumas semanas depois, durante uma pescaria, o capitão Manny Rezendes, da traineira Christina Eleni, avistou um grande cardume de golfinhos da mesma espécie da de Harvey, entre Block Island e Mantank Point, Nova York. Rezendes, cuja esposa trabalhava no Aquário de Mystic, ofereceu seus serviços. A data da libertação de Harvey foi confirmada para 11 de abril. Enquanto Harvey era colocado de novo na maca, Roger Ryley observou: “O tanque parece um berço vazio.”
Harvey foi untado com gordura, recoberto de gelo, borrifado com água e levado para o cais. Os membros da equipe afagaram-lhe a cabeça. Quando a traineira atravessou Long Island Sound, rumo à linha dos 55m no Atrântico, as conversas a bordo cessaram. Havia a possibilidade de que o animal pudesse ser rejeitado pelo cardume, mesmo se fosse encontrado.
À 1:15 da tarde, o barco viu-se cercado pelas barbatanas negras e pontiagudas de 24 golfinhos. Enquanto eles nadavam em torno do barco, Harvey mantinha-se quieto. O motor foi posto em ponto morto. Curt Horton fez uma festinha no pescoço de Harvey. Em seguida, puseram o animal no oceano.
Harvey meneou a cabeça de um lado para o outro na água, como uma criança perdida que procurasse a mãe. Nenhum golfinho se aproximou dele. Estavam ainda nadando em círculos, a distância. Harvey começou a nadar muito devagar.
Aí aconteceu! Um outro animal chegou próximo deles. Como se fosse um balé, as duas barbatanas começaram a se mover juntas. Depois as outras, no cardume, começaram a aglomerar-se em volta do par. Ergueram-se vivas na traineira. Harvey tinha sido aceito por seus companheiros.
Enquanto a traineira voltava para Connecticut, vários golfinhos do cardume nadaram na sua esteira, como se agradecessem aos homens por terem salvo um de sua espécie.

quinta-feira, agosto 24

Pétalas secas

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1979
Autor : Lotta Dempsey

Em 1930, quando Jorge VI e sua filha Elizabeth, depois rainha, estiveram no Canadá, ela mandou distribuir pelos pacientes internados nos hospitais os buquês de flores que lhe haviam sido presenteados. Naquele dia eu estava na sala de partos do Hospital St. Michael.
Anos mais tarde, no dia do aniversário de meu filho, juntei seus presentes e saí para jantar com ele, sua mulher e minha netinha.
O chofer do táxi que peguei, um jovem, estava tão mal-humorado que chegava a ser grosseiro; e disparou a correr. Para faze-lo ir mais devagar eu lhe disse: “Quer ir com um pouquinho mais de calma? E que estou levando aqui uns presentes para meu filho que faz aniversário hoje e algumas coisas são quebráveis.”
“Hoje também é dia do meu, e ninguém vai me dar presente nenhum”, respondeu ele com uma ponta de amargura.
Comecei então a conversar e descobri que ele estava separado da mulher, sem dinheiro e farto da vida. Perguntei-lhe a idade. “Engraçado, você é da mesma idade que meu filho. Onde é que você nasceu?”
“Em Toronto, no hospital St. Michael.”
“Pois então sua mãe e eu certamente estivemos juntas lá!” exclamei.
“Ela morreu quando eu era criança”, atalhou ele, azedo.
Do banco de trás, aproximei-me dele e toquei seu ombro. “Quer saber como foi o dia em que você nasceu?”
Ele fez que sim com a cabeça. Contei-lhe então sobre o povo nas ruas por causa da visita real e de minha preocupação que o médico ficasse preso no tráfego. Chegamos no momento em que eu falava dos botões de rosa da princesa. O motorista parou o carro, e encarou-me com um olhar maravilhado; depois me disse numa voz muito, muito suave. “Ah, então isso explica aquelas pétalas secas dentro da Bíblia de mamãe. Eu, a vida inteira, quis saber.”

quarta-feira, agosto 23

América, para francês ver

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1970
Autor : Pierre e Renée Gosset

Quando um francês pensa em visitar os Estados Unidos, ele pensa primeiro em Nova York e Washington – e depois na parte autêntica, isto é, na Luisiana e em Nova Orleans, os cowboys, os índios... e a Califórnia, naturalmente – Disneylândia, Hollywood, São Francisco.
Os autores deste artigo, um casal de franceses, fizeram esta viagem recentemente, e ambos ficaram profundamente impressionados. Damos a seguir uma lista das “marcantes impressões” desse casal, algumas favoráveis, outras não.

Positivo
A vastidão do país – vai da extensão de suas paisagens ao espaço cósmico dos armários.

A gentileza com os estranhos – “Lindo!” diz a velhinha olhando o croqui feito por Renée e achando-o detestável.

Os vinhos da Califórnia, excelentes e honestos.

Letreiros multicores a gás néon dando a cidades indistintas um encanto que elas não possuem à luz do dia.

A avidez do povo pela boa pintura, a boa música, os bons museus (e a entrada grátis nesses museus).

Torta de maçã, torta de pêra, torta de tudo. E o sorvete incomparável.

Beleza de país de parques e passeios e de nomes bonitos nas tabuletas da estrada – Pascagoula, Tangipahoa.

A inebriante sensação de liberdade: depois de passar pela imigração, em dois meses ninguém me pediu documentos.

Humor casual, sem pretensão: “Se o amigo é favorável do crédito para todos, empreste-nos 10 dólares.” “Venda-nos seu carro e seja um pedestre rico.”

Ninguém verificou a quilometragem do carro alugado quando o devolvemos.

Sólidas pontes, essenciais à paisagem americana.

Os letreiros. “Este motel pertence a Mary, Paul Smith e ao banco.” Na porta de um restaurante: “Faça sua refeição aqui – para não morrermos de fome.”

Os pequenos prazeres depois de um dia ao volante: uísque e gelo no quarto, televisão funcionando. E água quente, infatigavelmente quente.

A juventude não-hippie americana – idealista, interessada em política.

O inacreditável serviço telefônico americano, que permite ao viajante comprar uma geladeira e despacha-la para outro continente ou entrevistar o diretor de uma universidade.

Os parques nas margens das estradas, prova de consideração pelo contribuinte.

Em toda parte a profunda sensação de estar vivendo em um país ainda em formação.


Negativo
Café tão fraco que se enxerga o fundo da xícara.

A cerveja, da mesma família do café.

Mocinhas com rolos no cabelo, no sábado, no domingo (será que elas nunca se penteiam?).

A luz fraca e os preços fortes nos restaurantes de luxo.

A mania de “o maior do mundo” – desde o Radio City Music Hall às empadas de Tia Nattie. Tudo o que é conhecido num raio de 10 quilômetros passa à categoria de “maior do mundo”.

Os almoços só de velhinhas, que se tratam de “meninas”.

A mania de transformar em monumentos históricos tudo o que é velho.

Os restaurantes que teimam em servir vinhos franceses de segunda classe em vez de vinhos californianos de primeira.

Motéis construídos bem à beira da estrada. Por que não uma cadeia de motéis em lugares sombreados, longe do barulho?

Ui, que café!


Quelle Surprìse!
Encontrar um urso nas Montanhas Blue Ridge, a apenas 80 quilômetros de Washington, D. C.

Deixar os sapatos na porta do quarto, para serem engraxados, como se faz na Europa – e na manhã seguinte encontra-los na lata de lixo.

Aquele letreiro na beira das estradas: “Pense”. Em que?

“Economize”. Cada vez que a gente segue o conselho, gasta dinheiro.

O motorista americano – incrivelmente cortês, cordial, desinibido.

A dificuldade de se vestir de acordo com a estação. A lã é muito quente para os ambientes aquecidos, o algodão é muito frio para o ar condicionado.

A paciência infinita dos fregueses que fazem fila nos restaurantes, e a docilidade com que aceitam a mesa indicada.

A quantidade de tempo que as pessoas mais importantes reservam para quem marca entrevista.

Os modos impecáveis das pessoas.

O policial de quase dois metros que nos mandou parar numa cidadezinha da Luisiana. (Que será que fizemos?) “Quer dar-nos o prazer de participar do nosso piquenique?”

Frutas frescas au naturel nos restaurantes parece que são proibidas.

O cuidado com a preservação da natureza. Metade do país ainda deve ser mata.

O americano antigo que ainda não desapareceu, com suas casas de madeira com varanda, jardins cheios de esquilos, almoços promovidos pela igreja, vida calma.

Os descontos para turistas, tão anunciados no estrangeiro. Ninguém ouviu falar deles nos Estados Unidos.

O enorme consumo de papel em sacos, embrulhos, caixas. Até revistas – até selos – são embrulhados.

E a maior das surpresas: sentir-se identificado com um mundo tão estranho.

terça-feira, agosto 22

Falso paraíso

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1979
Autor : Isaac Bashevis Singer

Uma história, cheia de advertência para crianças de todas as idades, narrada pelo Prêmio Nobel de Literatura de 1978.

Em algum lugar, há muito tempo, vivia um homem rico de nome Kadish. Ele tinha um único filho, Atzel. Na casa de kadish morava uma parente distante, uma moça órfã chamada Aksah. Atzel era um rapaz alto, de cabelos e olhos negros. Aksah tinha olhos azuis e cabelos dourados. Ambos tinham a mesma idade. As duas crianças comiam juntas, estudavam juntas, brincavam juntas. Todo mundo imaginava que se casariam quando crescessem.
Porém, assim que os dois ficaram adultos, Atzel caiu enfermo. Sua moléstia ninguém jamais vira: ele imaginava que já tinha morrido.
Como entrara em sua cabeça uma idéia tão estranha? Parece que uma velha babá, que lhe vivia contando historias sobre o paraíso, dissera-lhe que no paraíso não era preciso trabalhar nem estudar. Ali comia-se carne de touro selvagem ou de baleia, bebia-se o vinho dos justos, dormia-se até fartar, e ninguém tinha obrigações.
Atzel era preguiçoso por natureza. Detestava levantar-se cedo e estudar. Sabia que algum dia teria de tomar conta dos negócios do pai e não o desejava.
Já que a única maneira de chegar ao paraíso era morrer, tratou de fazer isso o mais rápido possível. Pensou tanto no assunto que logo começou a achar que estava mesmo morto.
Claro que os pais ficaram extremamente preocupados. Aksah chorava escondido. A família fazia o possível para convencer Atzel de que ele estava vivo, mas o rapaz se recusava a acreditar, e dizia: “Por que é que não me enterram logo? Estão vendo que já morri. É por causa de vocês que não consigo atingir o paraíso.”
Vieram muitos médicos para examinar Atzel e todos tentaram convencer o rapaz de que ele continuava vivo. Observavam que ainda comia e falava, mas Atzel começou a comer cada vez menos e a falar raramente. A família temia que ele morresse com aquilo.
Desesperado, Kadish consultou um grande especialista, famoso por seus conhecimentos e sua sabedoria. Era o Dr. Yoetz. Após ouvir a descrição da doença de Atzel, disse ele a Kadish: “Prometo curar seu filho em oito dias, com uma condição: você deve fazer exatamente o que eu mandar, por mais estranho que pareça.”
Kadish concordou e o Dr. Yoetz avisou que iria visitar Atzel no mesmo dia. Kadish voltou para casa e disse à mulher, a Aksah e aos criados que todos teriam de seguir estritamente as ordens do médico, sem perguntas.
Quando o Dr. Yoetz chegou, foi levado ao quarto de Atzel. O rapaz jazia na cama, pálido e magro com o jejum.
O médico deu uma olhada em Atzel e vociferou: “Por que é que vocês mantém um cadáver em casa? Por que já não fizeram o enterro?”
Ouvindo estas palavras, os pais sentiram um medo terrível, mas o rosto de Atzel iluminou-se num sorriso e ele disse: “Estão vendo, eu tinha razão.”
Embora Kadish e a mulher tivessem ficado perplexos com a atitude do médico, lembraram-se da promessa feita por Kadish e foram imediatamente tratar das providências para o funeral.
O médico pediu então que eles preparassem um quarto da casa para parecer o paraíso. As paredes foram forradas de cetim; as janelas, fechadas, e as cortinas, cerradas completamente. Velas ardiam ali dia e noite. Os criados vestiram-se de branco com asas nas costas, fingindo de anjos.
Atzel foi colocado num caixão aberto e realizou-se uma cerimônia fúnebre. Todo aquele contentamento cansou-o de tal maneira que o rapaz logo dormiu depois do ato.
Quando acordou, encontrou-se num quarto que não reconhecia.
“Onde estou?” perguntou.
“No paraíso, meu amo” respondeu um criado.
“Estou com uma fome horrível”, disse Atzel. “Caía bem, agora, uma carnezinha de baleia com vinho consagrado.”
O chefe dos criados bateu palmas e apareceram outros, todos de asas nas costas, trazendo bandejas douradas repletas de carne, peixe, romãs e caquis, abacaxis e pêssegos. Um criado alto, com uma longa barba branca, carregava um cálice dourado cheio de vinho.
Atzel comeu avidamente. Quando terminou, declarou que queria descansar. Dois anjos despiram-no, banharam-no e carregaram-no para uma cama com lençóis de seda e um dossel de veludo violeta. Atzel imediatamente dormiu um sono profundo e feliz.
Quando acordou já era de manhã, mas podia muito bem ser noite. As venezianas continuavam cerradas, as velas acesas. Logo que os criados o viram acordado, trouxeram-lhe a mesma refeição da véspera.
Atzel perguntou: “Vocês não tem aí leite, café e pão com manteiga?”
“Não. No paraíso, sempre se come a mesma comida”, respondeu o criado.
“Já é dia ou ainda é noite?” perguntou Atzel.
“No paraíso, meu amo, não há dia nem noite.”
Atzel comeu novamente peixe, carne, frutas e bebeu vinho, mas seu apetite não era tão grande como antes. Ao terminar, indagou: “Que horas são?”
“No paraíso, o tempo não existe”, respondeu o criado.
“Que é que eu vou fazer agora?”
“No paraíso, meu amo, não se faz nada.”
“Onde estão os outros santos?”
“No paraíso, cada família tem um lugar próprio.”
“Não posso visitar os outros?”
“No paraíso, as casas são muito distantes. Levaria milhares de anos para ir de uma a outra.”
“Quando é que minha família virá?”
“Seu pai ainda tem 20 anos de vida: sua mãe: 30. Enquanto viverem, não poderão vir aqui.”
“E Aksah?”
“Ela tem mais 50 anos de vida.”
“Vou ter de ficar sozinho esse tempo todo?”
“Sim, meu amo.”
Atzel balançou a cabeça alguns instantes, pensando. Depois perguntou: “Que é que Aksah vai fazer?”
“Agora ela está de luto por sua causa, mas, mais cedo ou mais tarde, ela o esquecerá, conhecerá outro rapaz e com ele se casará. É assim que acontece com os vivos.”
Atzel levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. Pela primeira vez em anos tinha vontade de fazer alguma coisa, mas não havia nada para fazer no paraíso. Sentia saudades do pai e da mãe; sentia falta de Aksah. Desejou estudar, sonhou em viajar; quis cavalgar, conversar com os amigos.
Chegou uma hora em que não conseguiu ocultar sua tristeza. Observou então a um dos criados: “Percebo agora que viver não é tão ruim como eu pensava.”
“Viver, meu amo, é difícil. Tem-se de estudar, trabalhar. Aqui tudo é fácil.”
“Eu preferiria cortar lenha e carregar pedras a ficar sentado aqui. Quanto tempo isso vai durar?”
“Toda a eternidade.”
“Ficar aqui para sempre?” Atzel, desesperado, começou a arrancar os cabelos. “Prefiro matar-me.”
“Mas um homem morto não pode suicidar-se.”
No oitavo dia, quando Atzel chegou ao auge do desespero, um dos criados, conforme o combinado, aproximou-se e disse: “Meu amo, houve um erro. O senhor não está morto. Deve deixar o paraíso.”
“Estou vivo?”
“Sim, o senhor está vivo e terei de leva-lo de volta à Terra.”
Atzel ficou fora de si de tanta alegria. O criado então vendou-lhe os olhos e fez que ele caminhasse de um lado para outro, através dos longos corredores da casa; depois trouxe-o até a sala onde a família o esperava e descobriu-lhe os olhos.
Fazia um dia bonito; o sol brilhava pelas janelas abertas. Lá fora, no jardim florido, as aves cantavam e as abelhas zumbiam. Alegremente ele abraçou e beijou os pais e Aksah.
Disse para a moça. “Você ainda me ama?”
“Sim, Atzel, não pude esquece-lo.”
“Se é assim, é hora de nos casarmos.”
Pouco tempo depois celebrou-se o casamento. O Dr. Yoetz era o convidado de honra. Músicos tocavam; convidados chegavam de cidades distantes. Todos trouxeram lindos presentes para os noivos. As comemorações duraram sete dias e sete noites.
Atzel e Aksah ficaram extremamente felizes e ambos viveram até uma idade avançada. Atzel deixou de ser preguiçoso e tornou-se o comerciante mais trabalhador de toda a região.
Só depois do casamento foi que ele soube como o Dr. Yoetz o havia curado e que vivera num paraíso falso. Nos anos seguintes ele e Aksah várias vezes contaram a história da maravilhosa cura do Dr. Yoetz para os filhos e netos, sempre terminando com as palavras: “Mas, é claro, como é o paraíso de verdade ninguém sabe...”

segunda-feira, agosto 21

A liberdade, afinal

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1976
Autor : William Sambrot

Uma odisséia moderna

Mesmo aqui da distância, com um vasto oceano de permeio, eu poderia distingui-la entre a multidão de refugiados que esperavam para subir à prancha de embarque do navio. O temor invade-a, agora que o terrível momento se aproxima. Não teme por si própria ( isso, nunca temeu ), mas pelo marido que se encontra a seu lado, de ombros caídos e lábios tensos. Ele está gravemente enfermo, e ela receia que não lhe dêem permissão de partir.
O medo nunca a tinha abandonado, nunca, aqueles dias negros da blitzkrieg, quando os tanques nazistas quebraram a tranqüilidade da noite em sua aldeia na Polônia, com os alto falantes vomitando a todo volume a “Cavalgada das Valquírias.”
Desde essa noite, quando os desumanos soldados de Hitler trocaram seu nome por um número, o terrível medo sempre permaneceu com ela. Eles acabaram levando seu marido, Leo, embora ela tivesse lutado ferozmente para impedi-los. Mesmo quando alguém lhe deu uma pancada na cabeça, a ponto de deixa-la inconsciente, ela gemeu alto o nome dele.
Ao longo de todos esses terríveis anos, pude observa-la de longe – uma chama débil mas inquebrantável ardendo constantemente -, sua vontade de viver, de encontrar Leo – que a sustentava enquanto outros caíam. Ela fez o trabalho de dez mulheres, passando de um capo de concentração para outro, através do país destroçado, sofrendo infâmias sem vacilar.
Incansavelmente, seus olhos vivos e negros observavam os rostos dos prisioneiros que marchavam para os campos de trabalho, fileiras após fileiras – homens sem lar, sem família, sem recordações. Interminavelmente, seus olhos procuravam aquele rosto familiar e querido. Ela sabia que ele não estava morto.
E, quando, finalmente, meus soldados cansados e sujos, após a última batalha, a libertaram, eu a vi recomeçar sua busca. Seu amor era uma bússola guiando-a através de países arrasados, onde a esperança estava morta e onde a destruição e a fome eram como que uma mortalha a cobrir a terra.
Quando ela afinal encontrou seu Leo, mesmo daqui senti o baque em seu coração, a efusão de seus agradecimentos a Deus; mesmo daqui senti sua alegria.
Como trabalhou depois! Com as próprias mãos nuas, saiu a catar destroços para construir um cubículo para os dois. Com extremo cuidado, deitou seu Leo numa enxerga. Horas a fio, procurava comida. E seus olhos se voltavam sempre para o Ocidente, e eu podia ver o seu imperecível desejo de ser livre, de um dia vir a ter uma oportunidade para começar tudo de novo.
E finalmente quando a auxiliar da Cruz Vermelha lhe disse que ela e o marido haviam sido incluídos numa lista de pessoas que tinham permissão de emigrar para os Estados Unidos, ela caiu de joelhos e beijou-lhe a orla da saia. Daqui, de tão longe, pude ver as lágrimas nos olhos da jovem enquanto a ajudava a erguer-se.
Também ouvi quando o grave e preocupado médico norte-americano, fardado de major, lhe comunicou discretamente que tinha havido uma alteração, que Leo estava demasiado doente para poder seguir. Uma vez mais, ela caiu de joelhos, tão angustiada que nem tinha lágrimas, e de novo implorou por seu marido.
Falou dos anos de luta, e de como tinha conseguido mantê-lo vivo. Falou de como imaginava os Estados Unidos, e da grandeza do céu de Montana nos filmes que havia visto. Com as mãos calejadas e disformes pelo trabalho, mostrou-lh uma carta dos Estados Unidos. Tinha um emprego num rancho em Montana esperando por ela.
“Mas ele poderá não viver o tempo suficiente para conseguir chegar aos Estados Unidos”, explicou-lhe o médico. “Está muito doente. Terrivelmente anêmico.”
“Ele viverá”, murmurou ela. “A viagem não é nada. O senhor não vê tudo que nós sofremos, quantos tormentos passamos? Em Montana, ficará bom outra vez.”
Assim que, finalmente, o major assentiu e inscreveu os nomes dos dois na lista, mesmo daqui eu senti o pulsar do seu coração, quando ela ergueu as mãos e o abençoou. “Eu não sou Deus”, murmurou o médico.
Ela estava no meio da multidão ansiosa, completamente dominada pelo medo. Dentro em pouco, seus nomes seriam chamados. Leo não poderia vacilar nem cair antes de alcançarem a prancha de embarque.
Seus nomes foram chamados, e mesmo daqui pude ver a intensa força de seu corpo forte, enquanto empurrava, ou quase carregava o marido pela prancha acima, sussurrando, rezando, implorando-lhe que chegasse ao alto, porque sabia que isso significava a vida: que significava os Estados Unidos.
Conseguiram, e ninguém lhes ordenou que saíssem da fila. Então, ela se aproximou da amurada para olhar a terra triste que iria deixar para sempre.
“Meu nome é Ilya!”, disse chorando, e as lágrimas pela primeira vez lhe escorreram pelo rosto marcado. “Meu nome é Ilya!”
Eu observava daqui, à medida que eles vinham se aproximando no grande navio. Como ela tratou carinhosamente dele, agachada a seu lado durante horas, confortando-o com pequenas canções, com histórias da mágica terra de Montana, onde ninguém pediria um documento em troca do direito de viver!
Por fim, quando as silhuetas dos arranha-céus de Nove York despontavam por entre a neblina da manhã, e o momento estava se aproximando, eu a vi, arrastando e empurrando Leo, gritando para as outras pessoas, implorando, afastando os que gozavam de boa saúde, a fim de conseguir um lugar na amurada para que ele pudesse ver que tudo tinha terminado, que aqueles anos negros não voltariam mais e que ambos haviam nascidos outra vez.
Ele soergueu o marido, olhando para ele, enquanto este me fitava. E quando viu um brilho súbito nos olhos dele, ela soluçou de felicidade. Oh! A maravilha daquele momento! Porém, ela, Ilya, a mulher de coragem, não olhou. Estava satisfeita por me ver no reflexo dos olhos do marido.
Timidamente, cheios de respeito e bem agarrados um ao outro, desceram a prancha de desembarque a caminho de seu novo lar.
Atrás deles, ficavam os anos sombrios, anos iluminados apenas pela chama que bruxuleava e ardia dentro do coração de uma mulher. Só ela não me tinha visto, mas a chama que trazia, dentro de si se misturou com a minha e com a dos outros, e o facho que ergo com tanto orgulho brilhou mais intensamente por causa dela.

sábado, agosto 19

O cão que veio do frio

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1970
Autor : William Iversen

Vá para casa! – ordenei-lhe, depois de ele me haver seguido por três quarteirões inteiros.
- Seja bonzinho; vá para casa.
Ele era pouco mais que uma sombra tiritante, sentado ali na penumbra gelada, esperando que eu me virasse para poder continuar a me seguir. Ele estava indo para casa, como verifiquei. Mas eu não o sabia ainda.
- Passa! Fora! Vá para casa – ordenei eu severamente, da porta da frente da casa.
Então a porta abriu-se e Lois, minha mulher, esticou a cabeça para fora.
- Que é que há? – perguntou ela.
- Nada – disse eu. – É um cachorro qualquer. Está perdido e não quer ir embora.
Ela olhou bem para o meu novo amigo. Era um vira-lata desgrenhado e descarnado de ásperos pelos castanhos, cauda comprida demais e olhos mais tristemente comoventes do que quaisquer olhos tinha o direito de ser.
- Coitadinho – disse ela. – Ele está gelado e faminto.
Em coisa de minutos “Patrício” (ele chegou em 17 de março, dia de São Patrício, de modo que...) estava dentro de casa e Lois o enxugava energicamente com uma grande toalha de banho, marcada ELE.
- Por que você não pendura seu paletó e se apronta para jantar? – disse ela, entregando-me minha toalha molhada. – Enquanto isso vou arranjar um prato de restos de comida para Patrício.
Os “restos”, descobri, eram quatro ou cinco fatias escolhidas de carne acabada de assar, cortadas em pedacinhos mergulhados em molho quente.
- Você acha que ele gostaria de uns pedacinhos daquela torta de limão com suspiro? – perguntei, enquanto Patrício, na porta da sala de jantar, lambia os bigodes satisfeito.
- Não é hora de brincadeira – informou-me Lois, - A primeira coisa que temos de fazer é verificar a coluna dos achados e perdidos no jornal da tarde. Depois precisamos decidir onde ele vai passar a noite.
- Tem razão – concordei, - Que tal a garagem? Ponho um cobertor velho num caixote e ele pode dormir lá fora.
Cão nenhum jamais recebeu um olhar como o que Lois me lançou.
- Você não está falando sério, está? Lá fora ele vai morrer gelado.
- Bem, então, vamos ver, - Fingi estar pensando, agora já sabendo perfeitamente onde Patrício passaria a noite. – Temos aquele motel no trevo...
Mais tarde, quando eu lia os anúncios de achados e perdidos, a cauda de Patrício, agora seca, abanava e batia cada vez que eu olhava na direção dele.
- É uma pena que você não seja um gato amarelo com as patas brancas, ou um poodle francês chamado Gigi – disse-lhe eu, jogando o jornal para o lado. – Ninguém parece ter perdido um cão como você.
Ele pareceu querer desculpar-se. Então Lois veio da cozinha e ele levantou-se para cumprimenta-la. Um perfeito cavalheiro.
- Vamos ter de continuar a procurar – disse ela, ligando a televisão. – Lembre-me de comprar o jornal local, quando sair na semana que vem.
- Na semana que vem? – repeti, enquanto o filme da TV começava a surgir na tela.
“Você sabia que ia acabar assim”, murmurava uma atriz, sorrindo, num close-up. “Você sabia desde o princípio, não é?” “Sabia”, murmurei, “acho que sim”.

Em menos de uma semana eu me habituara com Patrício – até com ele dormindo na nossa cama, com a cabeça apoiada nas minhas pernas (Seu antigo dono devia ter canelas de ferro). Acostumei-me a vê-lo correr para me receber quando eu chegava a casa, às longas caminhadas que dávamos de noite – e também a verificar os anúncios dos achados e perdidos.
- Nada? – perguntava Lois esperançosa, quando eu entrava com o jornal.
- Nada – dizia eu.
O sorriso de alívio dela então passava de mim para Patrício – cuja cauda então fazia uma festa.
Embora eu não o demonstrasse tanto quanto Patrício e Lois, meu alívio não era em nada menor. Pois, mesmo naquele curto espaço de tempo, eu tinha descoberto que Patrício não era um cão comum. Apesar de todos os seus abanos e grunhidos sociáveis, ele tinha uma sobriedade que o tornava o tipo de cão com que a pessoa podia realmente conversar. Às vezes, quando eu estava trabalhando no escritório, ele vinha bater um papo. Qualquer que fosse o assunto – política, esporte, impostos ou apenas a vida de modo geral – nossas opiniões eram sempre idênticas.
- Ele tem uma boa cabeça – disse eu a Lois. – E isso compensa de sobra suas pequenas excentricidades.
As excentricidades de Patrício começaram a aparecer um dia depois que ele me encontrou.
- Ele fez uma coisa estranha hoje à tarde – disse Lois, quando nos sentamos para jantar. – Eu o soltei no quintal e ele trouxe para dentro as garrafas de leite.
- Como é isso? – perguntei.
- Ele trouxe para dentro as duas garrafas de leite vazias que eu tinha colocado ao lado da porta dos fundos. Insistiu em faze-lo.
- Você fez isso? – perguntei a Patrício, que estava sentado junto do meu pé esquerdo, prestando atenção a tudo.
Ele abanou o rabo de leve, meio inseguro, como quem diz que achava que sim.
- Deve ser alguma coisa que ele foi treinado para fazer – deduzi eu.
Mas nos dias seguintes essa teoria teve de ser ampliada para explicar o fato de que Patrício trazia para dentro qualquer coisa que deixássemos no quintal: luvas de jardinagem, uma colher de jardinagem, um pedaço de corda... e até um saco plástico cheio de lixo.
- E quem treinaria um cão para levar lixo para dentro de casa? – perguntou Lois.
Tinha outras excentricidades. No sábado fui à loja de ferragens para comprar tinta. Antes de sair, fui verificar se havia lugar para as latas na mala do carro. Assim que levantei a porta da mala, Patrício pulou para dentro e abancou-se lá.
- Patrício, meu velho – disse-lhe eu – não quero ser intrometido, mas que segredo encerra o seu passado? Será um fugitivo de uma vida de crimes; um ex-ladrão de garrafas de leite que está acostumado a fugir nas malas de carro abertas?
Patrício piscou e olhou para outro lado, como quem diz que o passado passou e que ele preferia não falar a respeito. Algum dia, talvez. Mas por enquanto eu tinha de ter confiança nele.
Foi o que eu fiz, e com o passar dos dias Patrício os poucos tornou-se o nosso cão – com vacinas, sua bola predileta e um lugar maior em nossas vidas do que eu pensava que fosse possível.

Às vezes eu ainda acordo de noite e me espanto de poder mexer as pernas sem tirar a cabeça de Patrício das minhas canelas. Por um momento fico imaginando onde estará ele. Mas só por um momento. Depois me lembro da noite de junho em que estávamos voltando de um passeio a pé e aquele camarada grandalhão e bem-humorado pisou no freio do pickup dele e gritou: “Olá, Buster!”
Lembro-me como Patrício ficou paralisado – e depois, quando de repente se lembrou, como saltou até ao fim da sua corrente, ganindo de alegria. Você adivinhou – o cão pertencia àquele homem. Ou melhor, pertencia aos quatro filhos dele. As crianças é que lhe tinham dado o nome de Buster.
O homem chamava-se Charlie Taylor e morava com a família a uns 800 metros de nós. Como não tivesse documentos para provar que Patrício lhe pertencia, ele voltou mais tarde com uma batelada de fotografias que mostravam o nosso Patrício – o seu Buster – em todas as fases.
- Aque está ele trazendo os brinquedos dos garotos do quintal – disse Charlie Taylor, orgulhoso – Eu o ensinei a fazer isso quando era pequenino. E aqui está ele outra vez, pronto para um passeio no meu pickup.
O pickup era o carro da família e Patrício sempre viajava atrás.
Bem, pelo menos suas excentricidades estavam explicadas. E não havia dúvida de que ele pertencia aos Taylor. Seu riso feliz, que Lois e eu raramente tínhamos visto, tornou-se sua expressão mais comum desde a hora em que os quatro jovens Taylor marcharam pelo nosso portão adentro. O único momento em que sumiu foi quando ele afinal embarcou no caminhão e Lois e eu o afagamos pela última vez. Naqueles poucos segundos ele era novamente o nosso cão e seus olhos imploravam compreensão.
Quando o carro partiu, ele olhou para trás uma ou duas vezes, mas estava muito escuro para podermos ver a expressão dele. Só víamos a cabeça sacudindo na porta de trás.
Prefiro não me deter sobre o resto daquela noite, nem sobre os dias e semanas que se seguiram. A ausência de Patrício enchia a casa.
No Natal recebemos um cartão dos Taylor, assinado por toda a família sob o endereço comercial impresso: “Charlie E. Taylor, Melhoramentos e Reformas do Lar”.
Então, num domingo de manhã, exatamente há uma semana, Charlie passou aqui por casa. Eu estava fazendo a barba, e ouvi que ele dizia a Lois:
- Vocês não tem de ficar com ele. Podemos dá-lo a outra pessoa.
E ouvi Lois dizer:
- Oh, não. Adoraríamos ficar com ele!
É Patrício, pensei. Os Taylor estavam-no devolvendo! Com o rosto meio ensaboado, segui as vozes até à cozinha.
- Olhe – disse Lois, segurando um negócio peludo que tinha um rabo comprido demais. – Um dos filhos de Patrício!
- Nós o cruzamos com Tammy, do vizinho – explicou Charlie. – Ela é meio collie, com orelhas de spaniel, mas este filhote saiu bem bonzinho.
- Não há dúvida que saiu – disse Lois, pondo o cachorrinho no chão.
- É igualzinho a Patrício, e abana o rabo como Patrício também.
Patrício II foi o nome que lhe demos, e ele é bem filho de seu pai. Terá de crescer um pouco até poder apanhar uma garrafa de leite, ou pular para cima da minha cama. E se a gente tenta falar seriamente com ele, sobre qualquer assunto, ele rola e se põe de costa para que lhe cocemos a barriga. Mas eu diria que ele é, sem dúvida alguma, o maior melhoramento do lar que Charlie Taylor já fez na vida.

sexta-feira, agosto 18

A gerência cria um novo cargo

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1988
Autor : Bryce Fraser

A arte de conduzir um carrinho de mão através de estratagemas claros e menos claros.

“Está certo de que consegue resolver uma encrenca?” perguntou o homem do escritório central.
As minhas narinas contraíram-se, em grande parte devido ao cheiro de borracha proveniente da fábrica de pneus que ficava ali nos fundos, mas também numa tentativa de dar a impressão de um homem desejoso de enfrentar um problema.
“Certíssimo”, disse eu.
“A gerência criou um cargo novo”, disse o homem do escritório central. “Chefe de controle dos estoques.”
Acompanhou-me rapidamente a um armazém num canto da enorme fábrica e apresentou-me como o novo chefe.
O encarregado do armazém estendeu-me uma bata cinzenta e empurrou um carrinho de mão na minha direção.
“Que é isso?’ disse eu.
“É o seu carrinho”, respondeu. “Senão como é que você vai transportar as coisas?”
A ocorrência me deixou ligeiramente grilado. Depois de um recente biscate como estucador, tinha esperança de nunca mais ver um carrinho de mão.
Mas o homem do escritório central já ia longe. Resignei-me e segui-o, empurrando o tal carrinho através de corredores que pareciam estender-se indefinidamente, por entre máquinas e canos sibilando vapor.
Meu instrutor deteve-se numa pequena floresta de rolos de pano dispostos ao alto e deslocou um deles, por trás do qual se viam camadas de borracha preta.
“A indústria de pneus consiste em colocar lonas de borracha sobre outras lonas”, falou. “É só o que você precisa saber. Elas são diferentes umas das outras. Se as lonas corretas não estiverem no lugar apropriado na altura certa, você estará numa encrenca. Sua tarefa como chefe de controle de estoques é cuidar desse problema.”
Consultou uma prancheta. “Cada rolo tem uma etiqueta. Aqui temos, sim, um 24XB.” Examinou novamente a prancheta, depois deu um grito de exasperação. “O 24XB é dos tratores.”
“Esteja atento a esse pormenor”, disse, estendendo-me a prancheta.
Mas quando, após uma ronda de familiarização pela fábrica, tornei a levar o meu carrinho para o ponto de partida a fim de recolher a tal 24XB infrator, não consegui mais encontra-lo. Concluí que alguém já havia tomado as providências devidas: espalhara-se provavelmente a notícia da existência de um chefe de controle de estoques.
Já tinha reparado nos furtivos olhares de respeito por parte dos operários e percebi que, no meio das suas camisetas, calções e macacões, a minha bata sobressaía como um smoking numa cervejaria. Era obviamente mais do que uma simples bata: era um símbolo de autoridade.
Ao longo das duas horas seguintes, cirandei diligente e confiantemente de pilha em pilha, confrontando as etiquetas amarelas dos rolos de borracha com a minha lista. Com grande espanto, descobri que estava tudo no devido lugar. Depois de ter dado várias voltas à fábrica, o trabalho deixara de ter interesse; e ainda nem sequer era hora do almoço.
Então, quando passava os olhos por uma pilha de radiais, descobri um 35SR. Na minha lista dizia que os 35SR pertenciam aos caminhões, do outro lado da fábrica.
Dei um gritinho de triunfo. Nesse momento, porém, um homem alto, de macacão manchado de preto, olhou por cima do meu ombro e exclamou: “Um 35SR! Isso não devia estar aí!” Agarrou no rolo de borracha, atirou-o no carrinho de mão e saiu corredor afora, me deixando de mãos abanando o resto do dia.
A fábrica de pneus funcionava ininterruptamente e o turno em que eu estava começava às 6:30. No meu segundo dia, ao me arrastar para fora da cama na obscuridade de fins de inverno, consolei-me com o pensamento de que o dia anterior fora excepcional. A simples presença de um chefe de controle de estoque tornara toda a gente anormalmente eficiente. Mas isso não iria durar. Hoje seria ainda melhor: ou, do ponto de vista da empresa, pior.
Mas não foi. Após umas quantas rodas infrutíferas pelas pilhas impecavelmente arrumadas, retirei-me para o banheiro e li o jornal de bolso.
Tenho a compulsão do trabalho, e fui ficando deprimido à medida que passava mais um dia da semana, passeando com o carrinho de mão vazio, enquanto toda a gente trabalhava ativamente – misturando, cortando, lubrificando, fixando, vulcanizando, acondicionando. Para manter o espírito ocupado, enquanto me arrastava pela fábrica, tentava fazer versos.
Na segunda semana já tinha começado a trapacear. Se o escritório central achava que havia encrenca, raciocinava eu, então é porque havia mesmo. Agarrava um rolo de borracha, decorava o número, punha-o no carrinho e avançava ao acaso, com os olhos meio fechados para dificultar as coisas. Depois de dar umas voltas e reviravoltas, depositava o rolo numa pilha, sem reparar onde me encontrava, e fugia.
Depois de verificar deliberadamente mais algumas pilhas ao acaso só para me desorientar ainda mais, permitia-me pensar: acho que há um rolo de 19JR fora do lugar. O melhor é resolver essa encrenca. Tinha finalmente um objetivo de trabalho.
Às vezes, no entanto, não era capaz de relocalizar o rolo fora de lugar. Era intrigante, mas o fracasso contribuía para tornar o trabalho interessante.
Até que um dia, enquanto eu andava à cada de um 59PB extraviado, reconheci o rolo passando por mim, empurrado pelo tal sujeito alto de macacão manchado de preto que me arrebatara um 35SR no meu primeiro dia de trabalho.
“Ei!” disse eu, “onde é que você vai com esse 59PB?”
“Colocar no lugar dele”, respondeu o homem.
“Eu trato disso”, repliquei.
“Mas esse trabalho é meu”, disse ele.
“Por acaso é meu”, respondi. “Eu sou o chefe de controle de estoques.”
“Eu também”, disse ele.
Entreolhamos-nos espantados, depois trocamos impressões. Parecia que um manda-chuva da empresa, em visita à fábrica, descobrira um único rolo fora do lugar e, no pânico daí resultante, duas pessoas do escritório central, agindo independentemente uma da outra, tinham contratado alguém para resolver a alegada encrenca.
“Que é que vamos fazer?”, perguntei.
“Ficar calados, amigo”, murmurou o meu colega. “Caso contrário, um de nós estará na rua antes do almoço... e não vou ser eu.” E, dito isso, desapareceu com o meu rolo de 59BP.
Três minutos depois, estávamos os dois andando na direção um do outro. Virei então para a direita e ele para a esquerda e, como num filme cômico dos anos 30, desembocamos no corredor seguinte, demos meia-volta e avançamos na direção oposta.
Esse elemento veio dar ao meu trabalho um novo estímulo. Agora tinha duas ocupações – descobrir o rolo extraviado e evitar o outro chefe de controle de estoques.
Estava indeciso quanto a extraviar um 27AB ou um 30WY, quando ouvi um “Pssit!” por trás das pilhas.
“Ouça”, disse o meu duplo, “estou ficando cheio dessa brincadeira. Quando entrarmos de manhã, eu fico com a extremidade norte da fábrica e você com a sul. Mas vamos nos manter afastados, para ninguém perceber que somos dois.”
Refleti um momento. A proposta não oferecia o gênero de variedade que eu tanto aprecio num trabalho.
“Tenho uma idéia”, disse. “Por que é que não trocamos de hora a hora? Para não nos encontrarmos quando mudarmos, eu vou para norte pela ala leste e você vai para sul pela ala oeste, passando pelos banheiros.”
E assim fizemos. Mas não foi a solução ideal: até as crianças se fartam de brincar de esconder. Fui o primeiro a desistir, e apresentei minha demissão.
“Você não pode ir embora!” protestou o homem do escritório central. Mas fui firme, e ele abanou a cabeça, preocupado. “Tenho de admitir”, disse ele. “não vai ser fácil arranjar quem faça o trabalho tão bem como você.”

quinta-feira, agosto 17

O verão do girassóis

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1988
Autor : Sheila Stroup

O que não passa de um mero punhado de sementes encerra um tesouro secreto.

Encontro-me na casa em que cresci, sentada no chão da sala de estar, vasculhando uma caixa de fotografias antigas – de abóboras a serem transformadas em lanternas, de aniversários e dias passados no jardim zoológico. Aqui estão a mamãe em criança e um retrato em tons sépia do meu avô, um homem baixo e seco com um sorriso nos olhos. Foi tirada defronte desta casa, quando tanto um como a outra ainda eram jovens.
Meu avô construiu esta casa para a família em 1910 e aqui viveu até vovó morrer, em 1941. Cedeu-a então aos meus pais e hospedou-se na casa de uma viúva de idade, que o deixava usar o quintal dos fundos como jardim. A casa parece pálida e nua nesta velha fotografia, como um banhista no primeiro dia de verão. Nem uma árvore lhe faz sombra. Mas o meu avô sempre foi um plantador de árvores. Os seus áceres, carvalhos e pinheiros erguem-se hoje lado a lado, enormes patriarcas estendendo os seus ramos protetores sobre a nossa casa.
Finalmente, agarro a fotografia de que tenho estado à procura. É uma 8 X 10, retocada com amarelos e verde-pálidos, com a orla carcomida pelo tempo. É uma fotografia minha. Estou de pé, com uma perna trepassada sobre a outra e os braços cruzados à índio. Estou de macacão e nada mais. Atrás de mim, seis enormes girassóis curvam-se sob o peso de suas corolas douradas e abraçam-me. Minha expressão é radiante, e o sorriso, aberto. Sim, é o verão dos meus sete anos, o meu verão dos girassóis.
É junho, e a escola está fechada. As aulas de natação só começam em julho. Vou à Igreja Metodista uma vez por semana para a minha lição de piano, e desço a avenida até a biblioteca. Na família estão todos cheios de trabalho, mas este verão eu sou nova ou velha demais para fazer o que quer que seja. Vivo despreocupadamente os longos dias de junho, enquanto todos trabalham afincadamente.
Numa manhã em que estou sentada lendo na varanda, aparece vovô no seu Plymouth branco. Acena-me da calçada. Seu rosto está enrugado, bronzeado pelas horas que passa no jardim, e parece-me incrivelmente velho nos seus 76 anos. Está quase surdo, embora não o admita, e é difícil a gente se comunicar com ele.
Senta-se comigo na varanda. “Está um lindo dia, Sheila. Quente... uma delícia.” Meu avô usa camisas de flanela, mesmo nos dias mais tórridos. Tem os olhos cheios de veias, como bolas de gude antigas, e o seu hálito cheira o mofo de sótão.
“Quer ir comigo à biblioteca?” pergunto eu.
“Não”, diz ele. “Está um dia bonito demais para leituras. Vem comigo. Eu trouxe para você uma coisa.”
Vamos para os fundos da casa. Ele tira a enxada e uma pequena forquilha da garagem e me leva para o canto mais distante do jardim. Ensina-me então como revolver a fértil terra preta.
“É o melhor lugar do jardim. Tente não cortar ao meio as minhocas”, me diz ele. Meu modo de trabalhar é desajeitado, pesado. Vovô mantém-se cautelosamente à distância.
“Muito bem, muito bem” diz ele. Tira um lenço do bolso e desdobra-o com cuidado. Contém uma dúzia de sementes estriadas.
“Agora, plante isso. Mantenha-as afastadas umas das outras, a uma distância igual à que vai do teu cotovelo até a ponta do dedo. Enterre as sementinhas na terra, e pronto.”
Ajoelho-me. Meço, enterro. Meço, enterro. É bom mexer no solo quente. Arrasto o regador para o nosso pequeno canteiro e rego as minhas dedadas.
Antes de ir embora, meu avô me lembra de regar as sementes e diz que voltará dentro de uma semana. Rego o canteiro freqüentemente e, quando ele volta, as 12 sementes brotaram todas. Erguem seus minúsculos braços folhosos para o céu. A primeira coisa que faço depois do café da manhã é ir inspecionar o canteiro.
Vovô mostra-me como limpar com muito cuidado cada planta e manda-me arrancar dois pedúnculos menores que os outros. Por que? Eu devia saber. Passaram a ser meus filhos
Ele explica que a terra apenas pode alimentar um determinado número de plantas. Eu posso escolher – umas quantas plantas bonitas e saudáveis ou um monte de plantas doentes.
Descobrimos os restos de um pássaro azul morto, no canteiro de pepinos. Damos-lhe um enterro apropriado na base de uma das nossas plantas. Meu avô me explica que aquela avezinha irá alimentar a flor, transformando-se de certo modo em flor. Um pássaro transformar-se numa flor! A idéia deixa-me zonza.
“Vovô, que flores são essas?” pergunto. “Você nunca me disse.”
“São girassóis. As minhas preferidas.” Parece admirado por se ter esquecido de me dizer aquilo.
De repente, os caules das plantinhas já estão da minha altura. Estamos em julho. As hastes depressa ficaram mais altas que eu. Formam corolas vicejantes, de um amarelo brilhante, e seguem o sol de verão através do céu. De manhã, quando olho pela janela do meu quarto, elas me cumprimentam. Tenho a estranha sensação de que fazem parte de mim, e que eu, por minha vez, faço parte delas. Quando alcançam o esplendor máximo, mamãe tira-nos uma fotografia juntas.
O verão chega ao fim. Os pirilampos desaparecem e as noites tornam-se mais frias. Pairam no ar os odores de sapatos novos de couro e lápis de cera, de corredores de escola e folhas queimadas.
Um sábado vovô vem nos visitar. Quer me mostrar uma coisa no jardim. “Traz um saco de papel”, pede.
Vamos direto aos girassóis. Agora estão feios, com as corolas inclinadas em ângulos esquisitos. Tem os caules ocos e estão murchos; abandonei-os na sua velhice. Meu avô se aproxima, corta uma das corolas com seu canivete e a entrega a mim. É bem mais pesada do que eu pensava. Suas mãos mostram-me com ternura as sucessivas fieiras de sementes apertadinhas no seu invólucro. Centenas e centenas delas! Deixa cair algumas na minha mão. São iguaizinhas às que plantamos meses atrás. Uma pequena semente transformou-se nestas sementes todas! Fico assombrada com o que vovô e eu fizemos. Como é que uma semente se pode transformar em tantas?
Vovô abana a cabeça. Não sabe. “Toda vida é um milagre”, diz.
Cortamos as corolas carregadas de sementes e as pusemos uma a uma dentro do saco. Vovô me diz que as guarde, para alimentar os passarinhos depois das nevadas.
“Vamos para dentro”, diz ele. “O inverno está para chegar. Estou com frio.”
Enquanto caminhamos juntos, começo a perceber que vovô é como os girassóis: passadas a beleza e a pujança da vida, ele encerra ainda um tesouro secreto. Timidamente, dou-lhe a mão.


quarta-feira, agosto 16

Uma última floração

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1988
Autor : Ikuma Dan

Um encontro poético, debaixo de cerejeiras em flor, entre homens de bom senso...

Na parte sul da cidade de Fukuoka, uma das maiores cidades de Kyushu, uma rua de 4m de largura, paralela a um açude, fazia um estreitamento impossível para o trânsito, que ficava reduzido a passo de caracol. Por isso, a prefeitura de Fukuoka decidiu alarga-la para 12m – o que significava que uma aléia de cerejeiras que havia na margem do açude teria de ser cortada.
Uma árvore, ainda com seus botõezinhos muito fechados, já tinha caído pela serra dos homens das obras. Tal como as suas companheiras, ela já era bastante crescida, possivelmente com mais de 50 anos. No dia seguinte, um cartão com um poema – do tipo daqueles em que os poetas japoneses de outros tempos escreviam versos inspirados pela beleza das flores das cerejeiras – apareceu suspenso num dos ramos da árvore que vinha a seguir.
Estava dirigido ao prefeito da cidade de Fukuoka.

Ao Guarda das cerejeiras, Digníssimo
Prefeito Shindo,
Tenha piedade das flores; conceda-lhes,
por favor, um adiamento
de uma quinzena de vida
Para que possam florir uma derradeira
primavera.

A notícia do poema espalhou-se e, pouco tempo depois, uma resposta tremulava num galho da árvore. No cartão, que ondulava ao sabor da brisa fresca da primavera incipiente, estavam escritos os seguintes versos:

O coração que chora pelas flores
É o nobre e leal coração de Yamato*
Que esse espírito bondoso sobreviva
para todo o sempre.
Guarda das Cerejeiras de Chikuzen,** Kazuma.

Kazuma era o pseudônimo do prefeito Shindo. O corte das árvores ia ser adiado.Cidadãos agradecidos cobriram os ramos da árvore com versos, aplaudindo a sua decisão.
Mais tarde, as cerejeiras floriram, formando uma nuvem rosa-pálido contra o céu azul de Fukuoka, como que derramando nos seus últimos dias de vida um último fluxo de energia.

Poderão achar que essa é uma história de somenos importância, mas ela nos conta um admirável desabrochar de comunicação entre as pessoas, já quase esquecido no Japão moderno – uma comovente revelação de confiança entre os seres humanos. Quem quer que fosse aquela alma gentil que desejava que às árvores fosse concedida uma última oportunidade de florirem, ela não envergou um capacete para organizar uma manifestação. Apenas pendurou um simples poema no ramo da cerejeira. Isso sim, é qualquer coisa que alegra o coração.
Ainda mais comovente foi o prefeito ter respondido da mesma forma, com um poema dirigido àqueles que estavam entristecidos com o destino das árvores, concedendo-lhes aquela última floração. Mas importante acima de tudo foi o requerente não ter pedido que as árvores ficassem de pé para sempre, à custa do necessário alargamento da rua, mas que, simplesmente, lhes fosse concedida uma última primavera. Isto, acho eu, é uma maneira verdadeiramente sensata e delicada de demover as autoridades.

*Japão
**Nome que antigamente era conhecida a região onde se situa Fukuoka.


Graças à troca de poemas, as autoridades da cidade de Fukuoka reconsideraram os seus planos de construção. O sentido da rua foi alterado, o passeio alargado e a aléia de cerejeiras foi deixada de pé.