segunda-feira, agosto 21

A liberdade, afinal

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1976
Autor : William Sambrot

Uma odisséia moderna

Mesmo aqui da distância, com um vasto oceano de permeio, eu poderia distingui-la entre a multidão de refugiados que esperavam para subir à prancha de embarque do navio. O temor invade-a, agora que o terrível momento se aproxima. Não teme por si própria ( isso, nunca temeu ), mas pelo marido que se encontra a seu lado, de ombros caídos e lábios tensos. Ele está gravemente enfermo, e ela receia que não lhe dêem permissão de partir.
O medo nunca a tinha abandonado, nunca, aqueles dias negros da blitzkrieg, quando os tanques nazistas quebraram a tranqüilidade da noite em sua aldeia na Polônia, com os alto falantes vomitando a todo volume a “Cavalgada das Valquírias.”
Desde essa noite, quando os desumanos soldados de Hitler trocaram seu nome por um número, o terrível medo sempre permaneceu com ela. Eles acabaram levando seu marido, Leo, embora ela tivesse lutado ferozmente para impedi-los. Mesmo quando alguém lhe deu uma pancada na cabeça, a ponto de deixa-la inconsciente, ela gemeu alto o nome dele.
Ao longo de todos esses terríveis anos, pude observa-la de longe – uma chama débil mas inquebrantável ardendo constantemente -, sua vontade de viver, de encontrar Leo – que a sustentava enquanto outros caíam. Ela fez o trabalho de dez mulheres, passando de um capo de concentração para outro, através do país destroçado, sofrendo infâmias sem vacilar.
Incansavelmente, seus olhos vivos e negros observavam os rostos dos prisioneiros que marchavam para os campos de trabalho, fileiras após fileiras – homens sem lar, sem família, sem recordações. Interminavelmente, seus olhos procuravam aquele rosto familiar e querido. Ela sabia que ele não estava morto.
E, quando, finalmente, meus soldados cansados e sujos, após a última batalha, a libertaram, eu a vi recomeçar sua busca. Seu amor era uma bússola guiando-a através de países arrasados, onde a esperança estava morta e onde a destruição e a fome eram como que uma mortalha a cobrir a terra.
Quando ela afinal encontrou seu Leo, mesmo daqui senti o baque em seu coração, a efusão de seus agradecimentos a Deus; mesmo daqui senti sua alegria.
Como trabalhou depois! Com as próprias mãos nuas, saiu a catar destroços para construir um cubículo para os dois. Com extremo cuidado, deitou seu Leo numa enxerga. Horas a fio, procurava comida. E seus olhos se voltavam sempre para o Ocidente, e eu podia ver o seu imperecível desejo de ser livre, de um dia vir a ter uma oportunidade para começar tudo de novo.
E finalmente quando a auxiliar da Cruz Vermelha lhe disse que ela e o marido haviam sido incluídos numa lista de pessoas que tinham permissão de emigrar para os Estados Unidos, ela caiu de joelhos e beijou-lhe a orla da saia. Daqui, de tão longe, pude ver as lágrimas nos olhos da jovem enquanto a ajudava a erguer-se.
Também ouvi quando o grave e preocupado médico norte-americano, fardado de major, lhe comunicou discretamente que tinha havido uma alteração, que Leo estava demasiado doente para poder seguir. Uma vez mais, ela caiu de joelhos, tão angustiada que nem tinha lágrimas, e de novo implorou por seu marido.
Falou dos anos de luta, e de como tinha conseguido mantê-lo vivo. Falou de como imaginava os Estados Unidos, e da grandeza do céu de Montana nos filmes que havia visto. Com as mãos calejadas e disformes pelo trabalho, mostrou-lh uma carta dos Estados Unidos. Tinha um emprego num rancho em Montana esperando por ela.
“Mas ele poderá não viver o tempo suficiente para conseguir chegar aos Estados Unidos”, explicou-lhe o médico. “Está muito doente. Terrivelmente anêmico.”
“Ele viverá”, murmurou ela. “A viagem não é nada. O senhor não vê tudo que nós sofremos, quantos tormentos passamos? Em Montana, ficará bom outra vez.”
Assim que, finalmente, o major assentiu e inscreveu os nomes dos dois na lista, mesmo daqui eu senti o pulsar do seu coração, quando ela ergueu as mãos e o abençoou. “Eu não sou Deus”, murmurou o médico.
Ela estava no meio da multidão ansiosa, completamente dominada pelo medo. Dentro em pouco, seus nomes seriam chamados. Leo não poderia vacilar nem cair antes de alcançarem a prancha de embarque.
Seus nomes foram chamados, e mesmo daqui pude ver a intensa força de seu corpo forte, enquanto empurrava, ou quase carregava o marido pela prancha acima, sussurrando, rezando, implorando-lhe que chegasse ao alto, porque sabia que isso significava a vida: que significava os Estados Unidos.
Conseguiram, e ninguém lhes ordenou que saíssem da fila. Então, ela se aproximou da amurada para olhar a terra triste que iria deixar para sempre.
“Meu nome é Ilya!”, disse chorando, e as lágrimas pela primeira vez lhe escorreram pelo rosto marcado. “Meu nome é Ilya!”
Eu observava daqui, à medida que eles vinham se aproximando no grande navio. Como ela tratou carinhosamente dele, agachada a seu lado durante horas, confortando-o com pequenas canções, com histórias da mágica terra de Montana, onde ninguém pediria um documento em troca do direito de viver!
Por fim, quando as silhuetas dos arranha-céus de Nove York despontavam por entre a neblina da manhã, e o momento estava se aproximando, eu a vi, arrastando e empurrando Leo, gritando para as outras pessoas, implorando, afastando os que gozavam de boa saúde, a fim de conseguir um lugar na amurada para que ele pudesse ver que tudo tinha terminado, que aqueles anos negros não voltariam mais e que ambos haviam nascidos outra vez.
Ele soergueu o marido, olhando para ele, enquanto este me fitava. E quando viu um brilho súbito nos olhos dele, ela soluçou de felicidade. Oh! A maravilha daquele momento! Porém, ela, Ilya, a mulher de coragem, não olhou. Estava satisfeita por me ver no reflexo dos olhos do marido.
Timidamente, cheios de respeito e bem agarrados um ao outro, desceram a prancha de desembarque a caminho de seu novo lar.
Atrás deles, ficavam os anos sombrios, anos iluminados apenas pela chama que bruxuleava e ardia dentro do coração de uma mulher. Só ela não me tinha visto, mas a chama que trazia, dentro de si se misturou com a minha e com a dos outros, e o facho que ergo com tanto orgulho brilhou mais intensamente por causa dela.

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