sábado, agosto 19

O cão que veio do frio

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1970
Autor : William Iversen

Vá para casa! – ordenei-lhe, depois de ele me haver seguido por três quarteirões inteiros.
- Seja bonzinho; vá para casa.
Ele era pouco mais que uma sombra tiritante, sentado ali na penumbra gelada, esperando que eu me virasse para poder continuar a me seguir. Ele estava indo para casa, como verifiquei. Mas eu não o sabia ainda.
- Passa! Fora! Vá para casa – ordenei eu severamente, da porta da frente da casa.
Então a porta abriu-se e Lois, minha mulher, esticou a cabeça para fora.
- Que é que há? – perguntou ela.
- Nada – disse eu. – É um cachorro qualquer. Está perdido e não quer ir embora.
Ela olhou bem para o meu novo amigo. Era um vira-lata desgrenhado e descarnado de ásperos pelos castanhos, cauda comprida demais e olhos mais tristemente comoventes do que quaisquer olhos tinha o direito de ser.
- Coitadinho – disse ela. – Ele está gelado e faminto.
Em coisa de minutos “Patrício” (ele chegou em 17 de março, dia de São Patrício, de modo que...) estava dentro de casa e Lois o enxugava energicamente com uma grande toalha de banho, marcada ELE.
- Por que você não pendura seu paletó e se apronta para jantar? – disse ela, entregando-me minha toalha molhada. – Enquanto isso vou arranjar um prato de restos de comida para Patrício.
Os “restos”, descobri, eram quatro ou cinco fatias escolhidas de carne acabada de assar, cortadas em pedacinhos mergulhados em molho quente.
- Você acha que ele gostaria de uns pedacinhos daquela torta de limão com suspiro? – perguntei, enquanto Patrício, na porta da sala de jantar, lambia os bigodes satisfeito.
- Não é hora de brincadeira – informou-me Lois, - A primeira coisa que temos de fazer é verificar a coluna dos achados e perdidos no jornal da tarde. Depois precisamos decidir onde ele vai passar a noite.
- Tem razão – concordei, - Que tal a garagem? Ponho um cobertor velho num caixote e ele pode dormir lá fora.
Cão nenhum jamais recebeu um olhar como o que Lois me lançou.
- Você não está falando sério, está? Lá fora ele vai morrer gelado.
- Bem, então, vamos ver, - Fingi estar pensando, agora já sabendo perfeitamente onde Patrício passaria a noite. – Temos aquele motel no trevo...
Mais tarde, quando eu lia os anúncios de achados e perdidos, a cauda de Patrício, agora seca, abanava e batia cada vez que eu olhava na direção dele.
- É uma pena que você não seja um gato amarelo com as patas brancas, ou um poodle francês chamado Gigi – disse-lhe eu, jogando o jornal para o lado. – Ninguém parece ter perdido um cão como você.
Ele pareceu querer desculpar-se. Então Lois veio da cozinha e ele levantou-se para cumprimenta-la. Um perfeito cavalheiro.
- Vamos ter de continuar a procurar – disse ela, ligando a televisão. – Lembre-me de comprar o jornal local, quando sair na semana que vem.
- Na semana que vem? – repeti, enquanto o filme da TV começava a surgir na tela.
“Você sabia que ia acabar assim”, murmurava uma atriz, sorrindo, num close-up. “Você sabia desde o princípio, não é?” “Sabia”, murmurei, “acho que sim”.

Em menos de uma semana eu me habituara com Patrício – até com ele dormindo na nossa cama, com a cabeça apoiada nas minhas pernas (Seu antigo dono devia ter canelas de ferro). Acostumei-me a vê-lo correr para me receber quando eu chegava a casa, às longas caminhadas que dávamos de noite – e também a verificar os anúncios dos achados e perdidos.
- Nada? – perguntava Lois esperançosa, quando eu entrava com o jornal.
- Nada – dizia eu.
O sorriso de alívio dela então passava de mim para Patrício – cuja cauda então fazia uma festa.
Embora eu não o demonstrasse tanto quanto Patrício e Lois, meu alívio não era em nada menor. Pois, mesmo naquele curto espaço de tempo, eu tinha descoberto que Patrício não era um cão comum. Apesar de todos os seus abanos e grunhidos sociáveis, ele tinha uma sobriedade que o tornava o tipo de cão com que a pessoa podia realmente conversar. Às vezes, quando eu estava trabalhando no escritório, ele vinha bater um papo. Qualquer que fosse o assunto – política, esporte, impostos ou apenas a vida de modo geral – nossas opiniões eram sempre idênticas.
- Ele tem uma boa cabeça – disse eu a Lois. – E isso compensa de sobra suas pequenas excentricidades.
As excentricidades de Patrício começaram a aparecer um dia depois que ele me encontrou.
- Ele fez uma coisa estranha hoje à tarde – disse Lois, quando nos sentamos para jantar. – Eu o soltei no quintal e ele trouxe para dentro as garrafas de leite.
- Como é isso? – perguntei.
- Ele trouxe para dentro as duas garrafas de leite vazias que eu tinha colocado ao lado da porta dos fundos. Insistiu em faze-lo.
- Você fez isso? – perguntei a Patrício, que estava sentado junto do meu pé esquerdo, prestando atenção a tudo.
Ele abanou o rabo de leve, meio inseguro, como quem diz que achava que sim.
- Deve ser alguma coisa que ele foi treinado para fazer – deduzi eu.
Mas nos dias seguintes essa teoria teve de ser ampliada para explicar o fato de que Patrício trazia para dentro qualquer coisa que deixássemos no quintal: luvas de jardinagem, uma colher de jardinagem, um pedaço de corda... e até um saco plástico cheio de lixo.
- E quem treinaria um cão para levar lixo para dentro de casa? – perguntou Lois.
Tinha outras excentricidades. No sábado fui à loja de ferragens para comprar tinta. Antes de sair, fui verificar se havia lugar para as latas na mala do carro. Assim que levantei a porta da mala, Patrício pulou para dentro e abancou-se lá.
- Patrício, meu velho – disse-lhe eu – não quero ser intrometido, mas que segredo encerra o seu passado? Será um fugitivo de uma vida de crimes; um ex-ladrão de garrafas de leite que está acostumado a fugir nas malas de carro abertas?
Patrício piscou e olhou para outro lado, como quem diz que o passado passou e que ele preferia não falar a respeito. Algum dia, talvez. Mas por enquanto eu tinha de ter confiança nele.
Foi o que eu fiz, e com o passar dos dias Patrício os poucos tornou-se o nosso cão – com vacinas, sua bola predileta e um lugar maior em nossas vidas do que eu pensava que fosse possível.

Às vezes eu ainda acordo de noite e me espanto de poder mexer as pernas sem tirar a cabeça de Patrício das minhas canelas. Por um momento fico imaginando onde estará ele. Mas só por um momento. Depois me lembro da noite de junho em que estávamos voltando de um passeio a pé e aquele camarada grandalhão e bem-humorado pisou no freio do pickup dele e gritou: “Olá, Buster!”
Lembro-me como Patrício ficou paralisado – e depois, quando de repente se lembrou, como saltou até ao fim da sua corrente, ganindo de alegria. Você adivinhou – o cão pertencia àquele homem. Ou melhor, pertencia aos quatro filhos dele. As crianças é que lhe tinham dado o nome de Buster.
O homem chamava-se Charlie Taylor e morava com a família a uns 800 metros de nós. Como não tivesse documentos para provar que Patrício lhe pertencia, ele voltou mais tarde com uma batelada de fotografias que mostravam o nosso Patrício – o seu Buster – em todas as fases.
- Aque está ele trazendo os brinquedos dos garotos do quintal – disse Charlie Taylor, orgulhoso – Eu o ensinei a fazer isso quando era pequenino. E aqui está ele outra vez, pronto para um passeio no meu pickup.
O pickup era o carro da família e Patrício sempre viajava atrás.
Bem, pelo menos suas excentricidades estavam explicadas. E não havia dúvida de que ele pertencia aos Taylor. Seu riso feliz, que Lois e eu raramente tínhamos visto, tornou-se sua expressão mais comum desde a hora em que os quatro jovens Taylor marcharam pelo nosso portão adentro. O único momento em que sumiu foi quando ele afinal embarcou no caminhão e Lois e eu o afagamos pela última vez. Naqueles poucos segundos ele era novamente o nosso cão e seus olhos imploravam compreensão.
Quando o carro partiu, ele olhou para trás uma ou duas vezes, mas estava muito escuro para podermos ver a expressão dele. Só víamos a cabeça sacudindo na porta de trás.
Prefiro não me deter sobre o resto daquela noite, nem sobre os dias e semanas que se seguiram. A ausência de Patrício enchia a casa.
No Natal recebemos um cartão dos Taylor, assinado por toda a família sob o endereço comercial impresso: “Charlie E. Taylor, Melhoramentos e Reformas do Lar”.
Então, num domingo de manhã, exatamente há uma semana, Charlie passou aqui por casa. Eu estava fazendo a barba, e ouvi que ele dizia a Lois:
- Vocês não tem de ficar com ele. Podemos dá-lo a outra pessoa.
E ouvi Lois dizer:
- Oh, não. Adoraríamos ficar com ele!
É Patrício, pensei. Os Taylor estavam-no devolvendo! Com o rosto meio ensaboado, segui as vozes até à cozinha.
- Olhe – disse Lois, segurando um negócio peludo que tinha um rabo comprido demais. – Um dos filhos de Patrício!
- Nós o cruzamos com Tammy, do vizinho – explicou Charlie. – Ela é meio collie, com orelhas de spaniel, mas este filhote saiu bem bonzinho.
- Não há dúvida que saiu – disse Lois, pondo o cachorrinho no chão.
- É igualzinho a Patrício, e abana o rabo como Patrício também.
Patrício II foi o nome que lhe demos, e ele é bem filho de seu pai. Terá de crescer um pouco até poder apanhar uma garrafa de leite, ou pular para cima da minha cama. E se a gente tenta falar seriamente com ele, sobre qualquer assunto, ele rola e se põe de costa para que lhe cocemos a barriga. Mas eu diria que ele é, sem dúvida alguma, o maior melhoramento do lar que Charlie Taylor já fez na vida.

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