sexta-feira, agosto 18

A gerência cria um novo cargo

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1988
Autor : Bryce Fraser

A arte de conduzir um carrinho de mão através de estratagemas claros e menos claros.

“Está certo de que consegue resolver uma encrenca?” perguntou o homem do escritório central.
As minhas narinas contraíram-se, em grande parte devido ao cheiro de borracha proveniente da fábrica de pneus que ficava ali nos fundos, mas também numa tentativa de dar a impressão de um homem desejoso de enfrentar um problema.
“Certíssimo”, disse eu.
“A gerência criou um cargo novo”, disse o homem do escritório central. “Chefe de controle dos estoques.”
Acompanhou-me rapidamente a um armazém num canto da enorme fábrica e apresentou-me como o novo chefe.
O encarregado do armazém estendeu-me uma bata cinzenta e empurrou um carrinho de mão na minha direção.
“Que é isso?’ disse eu.
“É o seu carrinho”, respondeu. “Senão como é que você vai transportar as coisas?”
A ocorrência me deixou ligeiramente grilado. Depois de um recente biscate como estucador, tinha esperança de nunca mais ver um carrinho de mão.
Mas o homem do escritório central já ia longe. Resignei-me e segui-o, empurrando o tal carrinho através de corredores que pareciam estender-se indefinidamente, por entre máquinas e canos sibilando vapor.
Meu instrutor deteve-se numa pequena floresta de rolos de pano dispostos ao alto e deslocou um deles, por trás do qual se viam camadas de borracha preta.
“A indústria de pneus consiste em colocar lonas de borracha sobre outras lonas”, falou. “É só o que você precisa saber. Elas são diferentes umas das outras. Se as lonas corretas não estiverem no lugar apropriado na altura certa, você estará numa encrenca. Sua tarefa como chefe de controle de estoques é cuidar desse problema.”
Consultou uma prancheta. “Cada rolo tem uma etiqueta. Aqui temos, sim, um 24XB.” Examinou novamente a prancheta, depois deu um grito de exasperação. “O 24XB é dos tratores.”
“Esteja atento a esse pormenor”, disse, estendendo-me a prancheta.
Mas quando, após uma ronda de familiarização pela fábrica, tornei a levar o meu carrinho para o ponto de partida a fim de recolher a tal 24XB infrator, não consegui mais encontra-lo. Concluí que alguém já havia tomado as providências devidas: espalhara-se provavelmente a notícia da existência de um chefe de controle de estoques.
Já tinha reparado nos furtivos olhares de respeito por parte dos operários e percebi que, no meio das suas camisetas, calções e macacões, a minha bata sobressaía como um smoking numa cervejaria. Era obviamente mais do que uma simples bata: era um símbolo de autoridade.
Ao longo das duas horas seguintes, cirandei diligente e confiantemente de pilha em pilha, confrontando as etiquetas amarelas dos rolos de borracha com a minha lista. Com grande espanto, descobri que estava tudo no devido lugar. Depois de ter dado várias voltas à fábrica, o trabalho deixara de ter interesse; e ainda nem sequer era hora do almoço.
Então, quando passava os olhos por uma pilha de radiais, descobri um 35SR. Na minha lista dizia que os 35SR pertenciam aos caminhões, do outro lado da fábrica.
Dei um gritinho de triunfo. Nesse momento, porém, um homem alto, de macacão manchado de preto, olhou por cima do meu ombro e exclamou: “Um 35SR! Isso não devia estar aí!” Agarrou no rolo de borracha, atirou-o no carrinho de mão e saiu corredor afora, me deixando de mãos abanando o resto do dia.
A fábrica de pneus funcionava ininterruptamente e o turno em que eu estava começava às 6:30. No meu segundo dia, ao me arrastar para fora da cama na obscuridade de fins de inverno, consolei-me com o pensamento de que o dia anterior fora excepcional. A simples presença de um chefe de controle de estoque tornara toda a gente anormalmente eficiente. Mas isso não iria durar. Hoje seria ainda melhor: ou, do ponto de vista da empresa, pior.
Mas não foi. Após umas quantas rodas infrutíferas pelas pilhas impecavelmente arrumadas, retirei-me para o banheiro e li o jornal de bolso.
Tenho a compulsão do trabalho, e fui ficando deprimido à medida que passava mais um dia da semana, passeando com o carrinho de mão vazio, enquanto toda a gente trabalhava ativamente – misturando, cortando, lubrificando, fixando, vulcanizando, acondicionando. Para manter o espírito ocupado, enquanto me arrastava pela fábrica, tentava fazer versos.
Na segunda semana já tinha começado a trapacear. Se o escritório central achava que havia encrenca, raciocinava eu, então é porque havia mesmo. Agarrava um rolo de borracha, decorava o número, punha-o no carrinho e avançava ao acaso, com os olhos meio fechados para dificultar as coisas. Depois de dar umas voltas e reviravoltas, depositava o rolo numa pilha, sem reparar onde me encontrava, e fugia.
Depois de verificar deliberadamente mais algumas pilhas ao acaso só para me desorientar ainda mais, permitia-me pensar: acho que há um rolo de 19JR fora do lugar. O melhor é resolver essa encrenca. Tinha finalmente um objetivo de trabalho.
Às vezes, no entanto, não era capaz de relocalizar o rolo fora de lugar. Era intrigante, mas o fracasso contribuía para tornar o trabalho interessante.
Até que um dia, enquanto eu andava à cada de um 59PB extraviado, reconheci o rolo passando por mim, empurrado pelo tal sujeito alto de macacão manchado de preto que me arrebatara um 35SR no meu primeiro dia de trabalho.
“Ei!” disse eu, “onde é que você vai com esse 59PB?”
“Colocar no lugar dele”, respondeu o homem.
“Eu trato disso”, repliquei.
“Mas esse trabalho é meu”, disse ele.
“Por acaso é meu”, respondi. “Eu sou o chefe de controle de estoques.”
“Eu também”, disse ele.
Entreolhamos-nos espantados, depois trocamos impressões. Parecia que um manda-chuva da empresa, em visita à fábrica, descobrira um único rolo fora do lugar e, no pânico daí resultante, duas pessoas do escritório central, agindo independentemente uma da outra, tinham contratado alguém para resolver a alegada encrenca.
“Que é que vamos fazer?”, perguntei.
“Ficar calados, amigo”, murmurou o meu colega. “Caso contrário, um de nós estará na rua antes do almoço... e não vou ser eu.” E, dito isso, desapareceu com o meu rolo de 59BP.
Três minutos depois, estávamos os dois andando na direção um do outro. Virei então para a direita e ele para a esquerda e, como num filme cômico dos anos 30, desembocamos no corredor seguinte, demos meia-volta e avançamos na direção oposta.
Esse elemento veio dar ao meu trabalho um novo estímulo. Agora tinha duas ocupações – descobrir o rolo extraviado e evitar o outro chefe de controle de estoques.
Estava indeciso quanto a extraviar um 27AB ou um 30WY, quando ouvi um “Pssit!” por trás das pilhas.
“Ouça”, disse o meu duplo, “estou ficando cheio dessa brincadeira. Quando entrarmos de manhã, eu fico com a extremidade norte da fábrica e você com a sul. Mas vamos nos manter afastados, para ninguém perceber que somos dois.”
Refleti um momento. A proposta não oferecia o gênero de variedade que eu tanto aprecio num trabalho.
“Tenho uma idéia”, disse. “Por que é que não trocamos de hora a hora? Para não nos encontrarmos quando mudarmos, eu vou para norte pela ala leste e você vai para sul pela ala oeste, passando pelos banheiros.”
E assim fizemos. Mas não foi a solução ideal: até as crianças se fartam de brincar de esconder. Fui o primeiro a desistir, e apresentei minha demissão.
“Você não pode ir embora!” protestou o homem do escritório central. Mas fui firme, e ele abanou a cabeça, preocupado. “Tenho de admitir”, disse ele. “não vai ser fácil arranjar quem faça o trabalho tão bem como você.”

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