segunda-feira, agosto 14

Subindo a montanha com Helen keller

Fonte : Revista Seleções

Data : Julho de 1976

Autor : Lili Palmer

No verão de 1950, meu marido e eu estávamos morando numa casa construída na colina, em Portofino, Itália. A vista era extraordinária. Embaixo, à direita, ficava o porto azul, com sua romântica península e seu velho castelo. À nossa esquerda, havia a minúscula baía esmeralda de Paraggi, com sua praia branca orlada de ciprestes.

Existia, no entanto, uma serpente em nosso paraíso: o caminho que subia a falésia até nossa casa. As autoridades municipais não nos permitiram construir uma estrada adequada em lugar daquele caminho de cabras. O único veículo que conseguia subir a estreita vereda, fazer as curvas em S da íngreme ladeira e agüentar os buracos da estrada era nosso velho jipe.

Um dia, a Condessa Margot Besozzi, que morava um pouco mais acima, telefonou para dizer que a prima tinha chegado a Portofino com uma dama de companhia e que seu jipe estava enguiçado. Quem sabe eu poderia ir ao Hotel Splendido buscar as duas senhoras no jipe? “Basta perguntar por Helen Keller”, disse ela.

“Margot”, ofeguei. “Você não quer dizer Helen Keller, pois não?”

“Claro”, respondeu. “Ela é minha prima. Você não sabia?”

Corri à garagem, pulei no jipe e desci aos solavancos a montanha.

Eu tinha 12 anos quando meu pai me deu para ler a autobiografia de Helen Keller. Nesse livro, ela falava de Anne Sullivan, a extraordinária mulher que o destino escolheu para ser professora da criança cega e surda. Miss Sullivan transformou a pequena criatura rebelde e selvagem num membro civilizado da sociedade, ensinando-a a falar. Lembro-me ainda perfeitamente da sua descrição das primeiras semanas de luta física com a criança, até o momento glorioso em que, segurando a mão de Helen sob a água corrente, esta soletrou á-g-u-a com a outra mão, e assim o mistério da linguagem foi revelado à menina espantada.

Quando estacionei o jipe perto do muro coberto de Buganvílias e entrei no hotel, uma mulher alta e roliça levantou-se de uma cadeira no terraço para me receber. Era Polly Thomson, dama de companhia de Helen Keller. Uma segunda pessoa ergueu-se lentamente da cadeira ao lado dela, e me estendeu a mão. Helen Keller, que tinha então mais de 70 anos, era uma mulher frágil, de cabeça branca, olhos azuis bem abertos e um sorriso tímido. “Como vai?” disse lentamente e de modo um pouco gutural. Apertei-lhe a mão, que ela erguia demasiado alta porque não sabia qual era a minha altura. Às vezes, cometia esse erro com pessoas que encontrava pela primeira vez, mas nunca o repetia. Mais tarde, quando nos despedimos, ela me apertou a mão com firmeza, exatamente na altura devida.

As bagagens foram postas na parte traseira do jipe, e ajudei a simpática Miss Thomson a sentar-se ao lado delas. O porteiro do hotel soergueu Helen Keller e ajudou-a sentar-se no banco da frente, a meu lado. Só então me lembrei de que aquela aventura podia ser perigosa. O jipe era aberto, não havia nada onde uma pessoa pudesse segurar-se. Como iria eu evitar que a idosa senhora cega caísse nas curvas, que tinham de ser feitas depressa por causa do ângulo da estrada e do estado geral do jipe? No início do caminho pedregoso, parei o veículo e disse: “Miss Keller, vamos ter que fazer uma subida muito íngreme. Será que a senhora poderá segurar-se bem nesta barra de metal do pará-brisa?”

Ela continuou a olhar em frente, com ar expectante. Por trás de mim, Miss Thomson disse pacientemente: “Ela não pode ouvi-la, querida, nem vê-la. A principio é difícil a gente se acostumar.”

Fiquei tão encabulada que gaguejei como uma idiota, tentando explicar o problema que tínhamos pela frente. Miss Thomson ajoelhou-se em cima das bagagens e pegou na mão de Miss Keller. Moveu rapidamente os dedos de Helen para cima, para baixo e para os lados, transmitindo-lhe na linguagem dos cegos e surdos aquilo que eu tinha dito.

“Não tem importância” disse Helen rindo. “Eu me seguro bem.”

Coloquei-lhe as mãos na barra de metal á sua frente. “Está ok.”, exclamou Helen alegremente. O jipe arrancou num pulo, e Miss Thomson caiu para trás por cima das bagatens. Eu não podia parar por causa da estrada íngreme e dos freios, nos quais não tinha confiança. Começamos a subir, com Miss Thomson lá atrás, inapta como barata de pernas para o ar.

Eu já tinha transportado muita gente naquele jipe, e todos tinham se queixado da falta de molas, não era de se admirar, com todas aquelas pedras e buracos, para não falar nas curvas em S através das oliveiras escondendo parcialmente o precipício que tinha apavorado muitos dos nossos hóspedes. Helen Keller era o meu primeiro passageiro que não se apercebia do perigo, estava encantada com os violentos pulos, e só ria quando era atirada de encontro ao meu ombro. Até começou a cantar. “Isto é divertido”, gorjeou alegremente, sacudindo para cima e para baixo. “Que maravilha!”

Pelo canto do olho, à medida que passávamos muito depressa pela minha casa, vi nosso jardineiro se benzer. Eu não fazia a menor idéia de como Miss Thomson estava se portando, porque o terrível barulho do jipe não deixava que se ouvissem suas exclamações, só sabia que Helen ainda estava a meu lado. Seu fino cabelo branco despenteado esvoaçava em torno do seu rosto, mas ela apreciava aquela louca viagem como uma criança que subisse e descesse no cavalo de madeira de um carrossel.

Finalmente, fizemos a curva final entre duas figueiras gigantescas, e pude ver Margot Besozzi e seu marido que nos aguardavam. Helen foi retirada do jipe e abraçada, depois de tirarem a bagagem, içaram Polly Thomson e sacudiram-lhe a poeira.

Enquanto as duas senhoras iam até seus aposentos para se refrescarem, Margot falou-me da prima e sua vida. “Ela só se apercebe da mudança dos odores”, disse Margot. “Quer esteja aqui, em Nova York ou na Índia, seu mundo é um buraco negro e silencioso.”

De braço dado, muito naturalmente, como se fossem duas amigas, Helen e Polly vieram, através do jardim, até o terraço onde estávamos. “Há por aqui glicínias, ao certo”, comentou Helen, “e em grande quantidade – estou reconhecendo o perfume.”

A dicção de Helen não era inteiramente normal. Falava de forma hesitante, como alguém que tivesse tido um derrame, e suas consoantes eram prolongadas e laboriosamente pronunciadas. Voltou-se para mim, olhando-me diretamente, pois tinha percebido onde eu estava sentada. “Você sabe, estamos a caminho de Florença para ver o David de Michelangelo. Estou tão emocionada. Sempre quis ir vê-lo.”

Intrigada, olhei para Miss Polly Thomson, que concordou com a cabeça. “É verdade”, disse. “O governo italiano mandou construir um andaime em volta da estátua para que Helen possa subir e toca-la. Isso é o que ela considera ‘ver’. Em Nova York, vamos freqüentemente ao teatro, e eu digo-lhe o que está se passando no palco e descrevo os atores. Às vezes vamos aos bastidores, para que ela possa ‘ver’ os cenários e os artistas. Depois volta para casa, sentindo que realmente assistiu à peça.”

O almoço ia ser servido no terraço. Helen foi conduzida à sua cadeira, e observei que ela “via” seu lugar na mesa. Rápidas como relâmpagos, suas mãos se moveram sobre os objetos que estavam sobre a mesa ( prato, copo, talheres ), decorando seus respectivos lugares. Durante a refeição, ela nunca tateou; pegou em tudo com naturalidade e firmeza como nós fazíamos.

Depois do almoço, ficamos à sombra no terraço, rodeados dos cachos pendentes de glicínias, como se fosse uma espessa cortina cor de malva, enquanto o sol brilhava no mar lá embaixo. Helen sentou-se da maneira habitual, com a cabeça ligeiramente erguida, como se estivesse ouvindo algo – os olhos azuis e cegos muito abertos. Seus rosto, apesar de ser o de uma senhora idosa, tinha algo de inocência de uma menina de escola. Qualquer que fosse o sofrimento que a tivesse atormentado (e que ainda a estivesse atormentando), seu rosto não demonstrava vestígios. Era um rosto isolado, um rosto de santa.

Por intermédio de sua amiga, perguntei-lhe que mais lhe agradaria ver na Europa. Descreveu em pormenor sua viagem – todos os lugares que iria visitar, todas as pessoas que iria encontrar. Inacreditavelmente, ela falava francês bastante bem, e conseguia fazer-se entender em alemão e italiano.

“Ainda há tanta coisa que eu gostaria de ver, e tanto por aprender”, disse, “mas a morte já está batendo à minha porta. Não que isso me preocupe – pelo contrário.”

“Acredita na vida depois da morte?”, indaguei.

“Acredito firmemente”, respondeu com ênfase. “É como passar de um quarto para outro.”

Ficamos sentadas em silêncio durante um momento. Depois, vagarosamente e muito distintamente, ela continuou: “Mas para mim, sabe, há uma diferença. É que nesse outro... quarto... eu poderei ver.”

Helen Adams Keller faleceu no ano de 1968, com 88 anos de idade.

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