terça-feira, agosto 22

Falso paraíso

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1979
Autor : Isaac Bashevis Singer

Uma história, cheia de advertência para crianças de todas as idades, narrada pelo Prêmio Nobel de Literatura de 1978.

Em algum lugar, há muito tempo, vivia um homem rico de nome Kadish. Ele tinha um único filho, Atzel. Na casa de kadish morava uma parente distante, uma moça órfã chamada Aksah. Atzel era um rapaz alto, de cabelos e olhos negros. Aksah tinha olhos azuis e cabelos dourados. Ambos tinham a mesma idade. As duas crianças comiam juntas, estudavam juntas, brincavam juntas. Todo mundo imaginava que se casariam quando crescessem.
Porém, assim que os dois ficaram adultos, Atzel caiu enfermo. Sua moléstia ninguém jamais vira: ele imaginava que já tinha morrido.
Como entrara em sua cabeça uma idéia tão estranha? Parece que uma velha babá, que lhe vivia contando historias sobre o paraíso, dissera-lhe que no paraíso não era preciso trabalhar nem estudar. Ali comia-se carne de touro selvagem ou de baleia, bebia-se o vinho dos justos, dormia-se até fartar, e ninguém tinha obrigações.
Atzel era preguiçoso por natureza. Detestava levantar-se cedo e estudar. Sabia que algum dia teria de tomar conta dos negócios do pai e não o desejava.
Já que a única maneira de chegar ao paraíso era morrer, tratou de fazer isso o mais rápido possível. Pensou tanto no assunto que logo começou a achar que estava mesmo morto.
Claro que os pais ficaram extremamente preocupados. Aksah chorava escondido. A família fazia o possível para convencer Atzel de que ele estava vivo, mas o rapaz se recusava a acreditar, e dizia: “Por que é que não me enterram logo? Estão vendo que já morri. É por causa de vocês que não consigo atingir o paraíso.”
Vieram muitos médicos para examinar Atzel e todos tentaram convencer o rapaz de que ele continuava vivo. Observavam que ainda comia e falava, mas Atzel começou a comer cada vez menos e a falar raramente. A família temia que ele morresse com aquilo.
Desesperado, Kadish consultou um grande especialista, famoso por seus conhecimentos e sua sabedoria. Era o Dr. Yoetz. Após ouvir a descrição da doença de Atzel, disse ele a Kadish: “Prometo curar seu filho em oito dias, com uma condição: você deve fazer exatamente o que eu mandar, por mais estranho que pareça.”
Kadish concordou e o Dr. Yoetz avisou que iria visitar Atzel no mesmo dia. Kadish voltou para casa e disse à mulher, a Aksah e aos criados que todos teriam de seguir estritamente as ordens do médico, sem perguntas.
Quando o Dr. Yoetz chegou, foi levado ao quarto de Atzel. O rapaz jazia na cama, pálido e magro com o jejum.
O médico deu uma olhada em Atzel e vociferou: “Por que é que vocês mantém um cadáver em casa? Por que já não fizeram o enterro?”
Ouvindo estas palavras, os pais sentiram um medo terrível, mas o rosto de Atzel iluminou-se num sorriso e ele disse: “Estão vendo, eu tinha razão.”
Embora Kadish e a mulher tivessem ficado perplexos com a atitude do médico, lembraram-se da promessa feita por Kadish e foram imediatamente tratar das providências para o funeral.
O médico pediu então que eles preparassem um quarto da casa para parecer o paraíso. As paredes foram forradas de cetim; as janelas, fechadas, e as cortinas, cerradas completamente. Velas ardiam ali dia e noite. Os criados vestiram-se de branco com asas nas costas, fingindo de anjos.
Atzel foi colocado num caixão aberto e realizou-se uma cerimônia fúnebre. Todo aquele contentamento cansou-o de tal maneira que o rapaz logo dormiu depois do ato.
Quando acordou, encontrou-se num quarto que não reconhecia.
“Onde estou?” perguntou.
“No paraíso, meu amo” respondeu um criado.
“Estou com uma fome horrível”, disse Atzel. “Caía bem, agora, uma carnezinha de baleia com vinho consagrado.”
O chefe dos criados bateu palmas e apareceram outros, todos de asas nas costas, trazendo bandejas douradas repletas de carne, peixe, romãs e caquis, abacaxis e pêssegos. Um criado alto, com uma longa barba branca, carregava um cálice dourado cheio de vinho.
Atzel comeu avidamente. Quando terminou, declarou que queria descansar. Dois anjos despiram-no, banharam-no e carregaram-no para uma cama com lençóis de seda e um dossel de veludo violeta. Atzel imediatamente dormiu um sono profundo e feliz.
Quando acordou já era de manhã, mas podia muito bem ser noite. As venezianas continuavam cerradas, as velas acesas. Logo que os criados o viram acordado, trouxeram-lhe a mesma refeição da véspera.
Atzel perguntou: “Vocês não tem aí leite, café e pão com manteiga?”
“Não. No paraíso, sempre se come a mesma comida”, respondeu o criado.
“Já é dia ou ainda é noite?” perguntou Atzel.
“No paraíso, meu amo, não há dia nem noite.”
Atzel comeu novamente peixe, carne, frutas e bebeu vinho, mas seu apetite não era tão grande como antes. Ao terminar, indagou: “Que horas são?”
“No paraíso, o tempo não existe”, respondeu o criado.
“Que é que eu vou fazer agora?”
“No paraíso, meu amo, não se faz nada.”
“Onde estão os outros santos?”
“No paraíso, cada família tem um lugar próprio.”
“Não posso visitar os outros?”
“No paraíso, as casas são muito distantes. Levaria milhares de anos para ir de uma a outra.”
“Quando é que minha família virá?”
“Seu pai ainda tem 20 anos de vida: sua mãe: 30. Enquanto viverem, não poderão vir aqui.”
“E Aksah?”
“Ela tem mais 50 anos de vida.”
“Vou ter de ficar sozinho esse tempo todo?”
“Sim, meu amo.”
Atzel balançou a cabeça alguns instantes, pensando. Depois perguntou: “Que é que Aksah vai fazer?”
“Agora ela está de luto por sua causa, mas, mais cedo ou mais tarde, ela o esquecerá, conhecerá outro rapaz e com ele se casará. É assim que acontece com os vivos.”
Atzel levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. Pela primeira vez em anos tinha vontade de fazer alguma coisa, mas não havia nada para fazer no paraíso. Sentia saudades do pai e da mãe; sentia falta de Aksah. Desejou estudar, sonhou em viajar; quis cavalgar, conversar com os amigos.
Chegou uma hora em que não conseguiu ocultar sua tristeza. Observou então a um dos criados: “Percebo agora que viver não é tão ruim como eu pensava.”
“Viver, meu amo, é difícil. Tem-se de estudar, trabalhar. Aqui tudo é fácil.”
“Eu preferiria cortar lenha e carregar pedras a ficar sentado aqui. Quanto tempo isso vai durar?”
“Toda a eternidade.”
“Ficar aqui para sempre?” Atzel, desesperado, começou a arrancar os cabelos. “Prefiro matar-me.”
“Mas um homem morto não pode suicidar-se.”
No oitavo dia, quando Atzel chegou ao auge do desespero, um dos criados, conforme o combinado, aproximou-se e disse: “Meu amo, houve um erro. O senhor não está morto. Deve deixar o paraíso.”
“Estou vivo?”
“Sim, o senhor está vivo e terei de leva-lo de volta à Terra.”
Atzel ficou fora de si de tanta alegria. O criado então vendou-lhe os olhos e fez que ele caminhasse de um lado para outro, através dos longos corredores da casa; depois trouxe-o até a sala onde a família o esperava e descobriu-lhe os olhos.
Fazia um dia bonito; o sol brilhava pelas janelas abertas. Lá fora, no jardim florido, as aves cantavam e as abelhas zumbiam. Alegremente ele abraçou e beijou os pais e Aksah.
Disse para a moça. “Você ainda me ama?”
“Sim, Atzel, não pude esquece-lo.”
“Se é assim, é hora de nos casarmos.”
Pouco tempo depois celebrou-se o casamento. O Dr. Yoetz era o convidado de honra. Músicos tocavam; convidados chegavam de cidades distantes. Todos trouxeram lindos presentes para os noivos. As comemorações duraram sete dias e sete noites.
Atzel e Aksah ficaram extremamente felizes e ambos viveram até uma idade avançada. Atzel deixou de ser preguiçoso e tornou-se o comerciante mais trabalhador de toda a região.
Só depois do casamento foi que ele soube como o Dr. Yoetz o havia curado e que vivera num paraíso falso. Nos anos seguintes ele e Aksah várias vezes contaram a história da maravilhosa cura do Dr. Yoetz para os filhos e netos, sempre terminando com as palavras: “Mas, é claro, como é o paraíso de verdade ninguém sabe...”

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