sexta-feira, agosto 25

O salvamento de um golfinho

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1985
Autor : Juhn G. Fuller

O simpático mamífero estava passando um mau bocado numa praia de Cape Cod e um pequeno exército de voluntários se apresentou para ajudar. Mas tudo estava contra eles: nenhum golfinho encalhado jamais havia conseguido voltar ao mar.

Durante toda a primeira semana de dezembro de 1983, o tempo na costa do Atlântico Norte estivera incerto. A chuva castigava a ponta de Cape Cod em Provincetown, Massachusetts. Na quarta-feira, 7 de dezembro, ventos com a velocidade de 15 nós levantavam ondas de quase um metro e a temperatura havia caído quase a 0º .
Apesar do tempo, duas pessoas passeavam pela praia. Um pouco antes do meio-dia, elas escutaram um som estranho sobrepondo-se ao barulho do vento, uma combinação de grito fantasmagórico com um assobio agudo. Não foi difícil descobrir de onde vinha. Bem perto da praia, um grande objeto escuro se debatia dentro da água. Um golfinho solitário, indefeso na areia, era sacudido de um lado para o outro pela arrebentação.

Armadilha. Quase todos os que moram ali em Provincetown acham um golfinho extraviado uma coisa muito especial, e os dois que o encontraram correram a um telefone para chamar o Centro de Estudos do Litoral, que fica a uns quilômetros. Dois funcionários que vieram investigar o caso confirmaram que um golfinho do Atlântico Norte, com quase 2m de comprimento e branco nos flancos, estava se debatendo na areia, em meio metro de água. Não ficaram surpresos: é nessa época que as baleias e os golfinhos que singram as águas frias do Atlântico mais se extraviam. Parece que as praias que descem em declive suave transtornam o sonar de navegação dos grandes mamíferos, tornado-se uma armadilha enganadora para eles.
Rapidamente, a Rede de Salvamento de Animais Extraviados, Seção Nordeste – um grupo de organizações marinhas situadas ao longo da costa Atlântica dos Estados Unidos -, entrou em ação. Funcionários do Centro de Provincetown correram para a praia, com botas de cano alto, uma lona impermeável e luvas. Caminhando com dificuldade pela água gelada, introduziram a lona por baixo do animal que se debatia.
Para lidar com um golfinho ferido é preciso muito cuidado. Sua pele delicada, frágil como um papel de seda molhado, deve ser protegida para não secar (para isso, nesta ocasião, utilizou-se óleo de cozinha comum). O animal deve ser mantido molhado e frio, do contrário, literalmente cozinha em sua própria gordura. Uma vez removido da água, o peso do golfinho é seu inimigo. As nadadeiras podem ser esmagadas, e a respiração, cortada. A perspectiva era sombria; nenhum golfinho de alto-mar extraviado jamais havia voltado são e salvo às suas águas de origem.
O grupo de resgate da Rede de Salvamento estava, porém, decidido a salvar este. “Detesto ver morrer uma coisa tão bonita como o golfinho”, disse um dos rapazes, expressando o pensamento de todos. Fizeram-se chamadas telefônicas para Hyannis, na parte sul de Cape Cod , onde o Fundo Internacional para o Bem-Estar Animal mantém um avião de salvamento, e para o Aquário Marinho de Mystic, em Connecticut, o qual possuía um tanque disponível e um caminhão equipado com uma maca, além de borrifadores de água de carregar nas costas, recipientes térmicos para o gelo e latas de óleo. Tanto o avião quanto o caminhão seriam necessários para levar o golfinho até Mystic, a 300km de distância.
Mas o caminhão provavelmente não chegaria lá antes do anoitecer. Com todo aquele frio e o terrível cansaço, poderiam os voluntários resistir até lá? A maré estava baixando e eles tiveram de carregar o golfinho mais para fora da praia. As botas de cano alto estavam agora tão geladas do lado de dentro como por fora. A lona ficou escorregadia. Alguns homens estavam perto da exaustão. Um apelo, transmitido pela estação de rádio local, trouxe mais de 12 novos voluntários para tentar ajudar o golfinho, que se debatia em evidente sofrimento.
O caminhão para o resgate chegou de Mystic logo depois das 18:00. Correndo para a água, o treinador de animais Curt Horton descobriu uma ferida sangrando junto à nadadeira peitoral esquerda e concluiu que o golfinho não estava em condições de ser rebocado de volta para o mar. Após quase 10 minutos de luta, os voluntários conseguiram levar o pesado animal até o caminhão próximo. A caminho do aeroporto, Horton e Pat Bubucis, um funcionário de Mystic, untaram o golfinho com gordura e borrifaram com água dos seus tanques portáteis. Durante esse tempo todo, os olhos do golfinho pareciam suplicar.
No aeroporto, os homens mal conseguiram fazer que o animal coubesse no avião Cessna, que esperava. Cobriram-no, então, com gelo para o vôo de 40 minutos. Durante a viagem, o golfinho começou a tremer – um sinal de que estava exaurido e em estado de choque. Às 7:45 o avião aterrou na pista de Groton, em Connecticut, a 15km de Mystic.
Secretárias, pesquisadores e dirigentes do aquário – todos apreciadores de mamíferos marinhos – estavam esperando. Um golfinho incapacitado tem de ser movido continuamente de um lado para o outro do tanque, afastado das bordas de cimento e mantido cuidadosamente com o dorso para cima, a fim de não se afogar. Os funcionários e os voluntários teriam de trabalhar 24 horas por dia.
O golfinho ferido foi baixado por meio de uma maca para dentro do tanque de 10m de largura e ensaiou seus primeiros movimentos com a cauda. Dois voluntários delicadamente formaram um círculo, com seus braços em volta dele, mantendo cuidadosamente seu respiradouro acima da água. Sabe-se que o delicado sonar do golfinho se confunde num tanque circular, e uma virada de mau jeito provocaria afogamento. De repente o golfinho libertou-se, retorcendo-se, e projetou-se para o fundo. Um dos voluntários mergulhou, tirou-o do fundo do tanque e empurrou-o para a superfície, onde começou a nadar de novo.

Faraó marinho. O veterinário Larry Dunn verificou que o golfinho era um macho de 1,83m e 105kg. Era um belo animal, de coloração inteiramente diferente do cinza monocromático dos que são exibidos em espetáculos em aquário (Turciops Truncatus). Tinha o dorso preto brilhante e a barriga branca, e uma mancha cor de marfim sob a barbatana dorsal. Finas linhas pretas, partindo dos cantos exteriores dos olhos e seguindo para trás, faziam lembrar um faraó egípcio. A curva sorridente da boca contrastava com o seu olhar desesperado.
Na manhã seguinte, um membro da equipe jogou um arenque com uma carga de antibióticos na superfície do tanque, para atrair o bicho.
Não houve reação. Experimentou-se atirar-lhe trutas vivas, ao preço de 1,5 dólar nos Estados Unidos, cada uma. Também foram desprezadas. Finalmente um voluntário segurou as mandíbulas do golfinho e abriu-as à força, revelando quatro fileiras de dentes pontiagudos como agulhas. Outro enfiou o arenque na boca do golfinho. Todos que estavam ali gritaram de alegria.
Os voluntários estavam começando a sentir um afeto pouco científico pelo golfinho. Enquanto o animal descrevia círculos intermináveis na água, que lhes batia até os ombros, todos se admiravam com a delicadeza inalterável que ele demonstrava.
Enquanto isso, outras equipes continuavam trabalhando 24 horas por dia. Na segunda noite, embora o animal estivesse calmo e dócil, aumentou a preocupação geral pelo fato de ele não comer os outros arenques que lhe foram oferecidos. Certa das 3:00 da madrugada seguinte, ele finalmente irrompeu à superfície, atravessou o tanque e arremeteu contra a parede de concreto, batendo com a mandíbula. O sangue esguichou-lhe da boca. A água à sua volta avermelhou-se. Sua mandíbula inferior tinha ficado deslocada. Vários dentes se haviam quebrado.
Uma radiografia mostrou que havia uma fratura no maxilar inferior. Agora, toda a alimentação teria de ser forçada e a mandíbula ferida aberta com muito cuidado.
Sua alimentação passou a ser feita num frenesi desesperado. O treinador Dave Merritt foi o primeiro a calcular mal um movimento, e uma rabanada de Harvey causou-lhe uma distensão nas costas. A treinadora Annie Jones foi a seguinte: atirada longe, acabou numa cama por mais de uma semana, também com dores nas costas. O veterano Curt Horton seguiu o mesmo caminho: ficou fora de circulação por quase duas semanas, com ruptura num disco lombar.
Apesar de tudo, Harvey dava sinais de melhora. Em fins de dezembro, já devorava 6kg de arenques por dia. E estava alegre. Começou a nadar em volta dos membros da equipe, deixando que o acariciassem e o segurassem. Retorcia-se, nadava e ficava de cabeça para baixo. Com a mandíbula quase curada, tornou-se delicado novamente.
Aí, o turbulento Atlântico Norte se manifestou de novo. Dois outros golfinhos extraviados juntaram-se a Harvey no tanque. Um morreu de pneumonia; o outro, uma fêmea que a equipe apelidou de B. J., era impetuoso, apesar do seu pulmão direito ter sido comprimido. Surgiu a esperança de que, juntos, os dois golfinhos pudessem ser os primeiros a voltar às suas águas de origem. De repente, porém, B. J. fracassou em seus esforços para chegar à superfície. Quando a equipe ainda se preparava para ajuda-la, Harvey rapidamente deslizou a seu lado, colocou-se embaixo dela e sustentou-a até que readquirisse a capacidade de respirar por si própria. Seu progresso foi tão grande que, em meados de fevereiro, Larry Dunn marcou para o dia 11 de abril a data de liberação dos dois golfinhos.
Nos princípios de março, entretanto, B. J. começou a regurgitar. Embora Harvey viesse em seu auxílio novamente, B. J. exalava um hálito fétido, o que era mau sinal. A pneumonia logo se instalou e certa noite ela desceu ao fundo e morreu. Se isso acontecera tão subitamente com B. J., que dizer de Harvey? E quando fosse solto no Atlântico, conseguiria encontrar o auxílio e a companhia dos de sua espécie? A euforia diminuiu.
Algumas semanas depois, durante uma pescaria, o capitão Manny Rezendes, da traineira Christina Eleni, avistou um grande cardume de golfinhos da mesma espécie da de Harvey, entre Block Island e Mantank Point, Nova York. Rezendes, cuja esposa trabalhava no Aquário de Mystic, ofereceu seus serviços. A data da libertação de Harvey foi confirmada para 11 de abril. Enquanto Harvey era colocado de novo na maca, Roger Ryley observou: “O tanque parece um berço vazio.”
Harvey foi untado com gordura, recoberto de gelo, borrifado com água e levado para o cais. Os membros da equipe afagaram-lhe a cabeça. Quando a traineira atravessou Long Island Sound, rumo à linha dos 55m no Atrântico, as conversas a bordo cessaram. Havia a possibilidade de que o animal pudesse ser rejeitado pelo cardume, mesmo se fosse encontrado.
À 1:15 da tarde, o barco viu-se cercado pelas barbatanas negras e pontiagudas de 24 golfinhos. Enquanto eles nadavam em torno do barco, Harvey mantinha-se quieto. O motor foi posto em ponto morto. Curt Horton fez uma festinha no pescoço de Harvey. Em seguida, puseram o animal no oceano.
Harvey meneou a cabeça de um lado para o outro na água, como uma criança perdida que procurasse a mãe. Nenhum golfinho se aproximou dele. Estavam ainda nadando em círculos, a distância. Harvey começou a nadar muito devagar.
Aí aconteceu! Um outro animal chegou próximo deles. Como se fosse um balé, as duas barbatanas começaram a se mover juntas. Depois as outras, no cardume, começaram a aglomerar-se em volta do par. Ergueram-se vivas na traineira. Harvey tinha sido aceito por seus companheiros.
Enquanto a traineira voltava para Connecticut, vários golfinhos do cardume nadaram na sua esteira, como se agradecessem aos homens por terem salvo um de sua espécie.

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