quinta-feira, agosto 3

O substantivo de Savushkin

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1983
Autor : Yuri Nagibin

O menino tomava um atalho para ir para a escola, e chegava sempre atrasado.

A fresca e ensolarada manhã de janeiro enchia a jovem professora de pensamentos felizes. Chegara ao povoado de Uvarovka havia apenas dois anos, vinha diretamente da universidade e já era considerada a melhor professora do distrito, sendo conhecida em Uvarovka, em Kuzminki, no povoado do Barranco Preto e até mesmo no afastado núcleo da turfeira. Por todo lado a cumprimentavam chamando-a pelo nome, Anna Vassilyevna, acrescentando o sobrenome para demonstrarem respeito. A escola era um edifício de tijolos, com dois andares, duas grandes janelas enfeitadas pelo gelo, e as paredes projetando na neve uma tonalidade avermelhada.
“Bom dia, Anna Vassilyevna!”
A saudação de algumas crianças soava em vozes claras e cristalinas; outras, porem, vinham abafadas pelos grossos cachecóis e echarpes que quase lhes cobriam todo o rosto.
A primeira lição de Anna era para os de 12 e 13 anos. As crianças ergueram-se, cumprimentaram-se e sentaram-se de novo em seus bancos. “Hoje vamos continuar a estudar gramática”, preveniu ela. Lembrava-se bem de como se sentira nervosa com essa lição no ano anterior. Agora, com a confiança a invadi-la, começou numa voz calma; “Substantivo é uma palavra que nomeia um ser ou um objeto, uma ação, qualidade, estado. Um sujeito é tudo sobre que se pode fazer a pergunta. Que é isto? Ou Quem é ele? Exemplo: Que é isto? – isto é um livro. Quem é ele? – um aluno.”
“Posso sentar?” Era uma figurinha pequena, calçando surradas botas de feltro, postada no limiar da porta. O rostinho redondo, vermelho, lustroso do vento, brilhava como se fosse estalar: as sobrancelhas estavam brancas com o gelo.
“Atrasado de novo, Savushkin!” Anna gostava de se mostrar severa, mas a sua voz denunciava agora uma nota quase de queixume. Savushkin deslizou rápido para o seu lugar. Sua falta de pontualidade a aborrecia, estragava um pouco o belo começo daquele dia.
“Entenderam bem?” perguntou aos alunos.
“Sim!” responderam em coro as crianças.
“Muito bem. Quero, então, alguns exemplos.” Alguém disse, hesitantemente: “Gato.”
“Correto!” assentiu Anna. Eles continuaram, “janela, mesa, casa, estrada....”, e assim por diante até que Anna interrompeu: “Chega. Já vi que vocês entenderam.”
De súbito, como se tivesse acordado de um sono, Savushkin ergueu-se e gritou cheio de vivacidade: “Carvalho de inverno!”
Os colegas riram. “Calados, por favor!” Anna bateu com a palma da mão na mesa.
“Carvalho de inverno!” repetiu Savushkin, sem se incomodar com os risos que provocara nem com a ordem de Anna. As palavras que pronunciara pareciam ter irrompido dele como uma confissão, como um segredo glorioso que não poderia ficar por partilhar.
Sem entender, Anna perguntou, quase não podendo conter sua irritação: “Por que ‘carvalho de inverno'?! ‘Carvalho é o bastante!”
“Um carvalho não é nada. Um carvalho de inverno, isso sim é que é um substantivo!”
“Sente-se já, Savushkin” Está vendo o que acontece por você chegar sempre tarde? ‘Carvalho’ é um substantivo, e o que é ‘inverno’, nesse caso, nós ainda não estudamos. Durante o recreio, vá falar comigo na sala dos professores.”

“Sente-se”, disse Anna quando Savushkin entrou. “Quer me explicar por que sempre chega tarde à classe?”
“Realmente eu não sei., Anna Vassilyevna”, respondeu o menino. Saio de casa uma hora antes de as aulas começarem.”
“Savushkin, você mora em Kuzminki, não é mesmo?”
“Não, moro no terreno do sanatório.”
“E será que não tem vergonha de me dizer que sai de casa uma hora antes da aula? Não demora mais do que 15 minutos do sanatório até a estrada, e não mais do que meia, pela estrada, até aqui!”
“Mas eu não venho nunca pela estrada. Eu tomo um atalho na floresta.”
“Pois é, Savushkin. Vou falar com os seus pais a respeito disso.”
“Só tenho mãe, Anna Vassilyevna”, disse Savushkin em voz baixa.
Anna corou. Recordou a mãe do menino, uma mulher murcha, de ar cansado, que trabalhava na seção de hidroterapia do sanatório. O marido morrera na guerra e ela criara seus quatro filhos o melhor que pudera. Já tinha o bastante com que se preocupar. Não era justo aborrece-la com a conduta do filho. Contudo deveriam encontrar-se. “Terei de falar com a sua mãe, então”, disse Anna. “Qual é o turno em que ela trabalha?”
“Mamãe começa a trabalhar às três.”
“Muito bem. Eu saio às duas. Falaremos com ela depois das aulas.”

Savushkin conduziu Anna ao longo da senda que começava atrás da escola. Quando entraram na floresta e os galhos, pesados de neve, se fecharam à sua passagem, viram-se de repente num mágico mundo branco de paz e silêncio. A senda seguia um córrego gelado. Ocasionalmente, vislumbravam-se trilhas de lebres e outras pegadas maiores, em forma de folha de trevo. “Alces”, disse Savushkin.
“Você já viu algum?” perguntou Anna.
“Alces? Não. Nunca tive essa sorte”, suspirou Savushkin.
Chegaram numa vasta clareira inundada de sol. Bem no centro, num cintilante manto branco, erguia-se uma árvore alta e majestosa. O gelo nas gretas da casca fazia o velho tronco parecer embutido de prata. “O carvalho de inverno!” murmurou Anna, aproximando-se da árvore e detendo-se sob seus galhos refulgentes.
Desconhecendo o tumulto que ia no coração da professora, Savushkin se ocupava com alguma coisa nas raízes da árvore, tratando o magnífico carvalho com a familiaridade derivada certamente de uma longa amizade. “Venha só ver, Anna Vassilyevna!” chamou ele. “Olhe!” – e afastou um grande pedaço de neve com terra e capim agarrados. Uma pequena bola toda revestida de folhas secas jazia numa toca li embaixo. “Um ouriço-cacheiro!” exclamou Anna.
Savushkin repôs cuidadosamente a cobertura de terra e neve que protegia o animal. Em seguida, escavou noutro local e revelou uma pequena caverna com pingentes de gelo suspensos da abertura, que era ocupada por uma rãzinha marrom, imóvel. “Muito sem-vergonha, não é?” exclamou o menino. “Está só fingindo de morta. Vai sair pulando logo que o Sol a esquente um pouquinho.”
Savushkin ia guiando Anna por aquele mundo que ele conhecia tão bem. Dentro e ao redor do carvalho hibernavam insetos, lagartos, vários animais. Alguns, escondidos entre as raízes; outros, mergulhados na casca. Anna olhava, fascinada.
“Mas, ora” Mamãe já está trabalhando a estas horas!” soou, ansiosa, a voz de Savushkin.
Anna olhou pra o relógio. Três e quinze! Pedindo, interiormente, perdão ao carvalho, disse: “Bem, Savushkin, isto só prova que um atalho nem sempre é o caminho mais curto. A partir de agora, você vai passar a ir para a escola pela estrada.” Savushkin baixou os olhos e não respondeu.
Deus do céu! Pensou Anna, está não é a prova mais evidente da minha incompetência?
“Muito obrigada, Savushkin, pelo passeio maravilhoso”, continuou ela. “Eu não pensei bem no que acabei de dizer. É claro que você pode ir para a escola pelo caminho da floresta.”
“Muito obrigado, Anna Vassilyevna.” Savushkin queria prometer que nunca mais chegaria tarde, mas estava com medo de não poder cumprir sua promessa. Ergueu a gola, enterrou o chapéu na cabeça, e por fim disse: “Eu levo a senhora de volta à escola.”
“Não, não faça isso. Sei o caminho.” Anna iniciou o regresso, mas virou-se para um último olhar ao carvalho de inverno, tingido de rosa pelo Sol poente. Um pequeno vulto se avistava junto ao tronco. Savushkin não fora para casa. Ficara a acompanhar com os olhos o regresso da professora, mesmo a distância.
E Anna compreendeu que o que havia de mais maravilhoso naquela floresta não era o carvalho de inverno, mas aquele menino de gastas botas de feltro e roupas remendadas – o filho da ajudante do sanatório e de um soldado morto na guerra.

Um comentário:

Claudio Isquierdo disse...

Li esta pequena história muitos anos atrás e a reli inúmeras vezes ao longo de quase três décadas. Infelizmente, o exemplar que a continha desapareceu de meus guardados. Ainda assim, jamais a esqueci. De repente, faço uma busca na web! Pronto! Aqui está! Que bela surpresa saber que há quem preserve bons momentos como este. Tenha certeza de que lerei todas as postagens!

Parabéns pela inciativa!