segunda-feira, agosto 28

"Olá, Herói!"

fonte : Revista Seleções
data : Novembro de 1970
autor : Sandra KirkPatrick (Tenente do Corpo de Enfermeiras da Marinha Americana)

Uma enfermeira fala dos triunfos e derrotas, dos risos e lágrimas dos quatro anos que passou trabalhando com mutilados do Vietnam.

Insegura e tímida, parei à entrada do pavilhão 76B do Hospital da Marinha em Oakland, Califórnia. Eu não o sabia naquela manhã de novembro de 1965, mas aquilo era o começo de uma grande aventura.
Dos 40 pacientes que se encontravam na grande enfermaria à minha frente apenas cinco teriam mais de 20 anos. A maioria eram fuzileiros navais; eram todos mutilados recentes do Vietnam – sem pernas, sem braços, sem pernas nem braços. Aqui e além faltava um olho.
“Por que eles?” Tive ímpetos de chorar. “São tão jovens! Que devo dizer? Que fazer?”
Uma enfermaria de mutilados não era a idéia que eu fazia do lugar ideal para trabalhar. Minha experiência anterior não me havia preparado para os mutilados nem para os assobios e gritos de entusiasmo com que fui recebida: “Quem é a nova enfermeira?” “Puxa, como é alta!” “Olá, pernalta!”
Parecia uma casa de doidos. Rádios e televisores ligados. Impelidas por pacientes sem pernas, usando bengalas como varas de esquiar, cadeiras de rodas rodavam por ali a velocidades vertiginosas. A Tenente Pat McDonald, a que eu ia substituir, conduziu-me por entre as fileiras de camas.
Aí fui apresentada a Jim, de 17 anos apenas, sem a perna e o braço direitos, cortados rente. Ele estendeu-me uma peça de plástico que substituía sua mão esquerda. Apertei-a com firmeza, e ela ficou em minha mão. Todos riram – menos eu.
Mais tarde vim a saber que Jim estava num abrigo individual quando uma granada lhe caiu aos pés. Não explodiu, e durante horas angustiosas ele ficou ali com medo de se mexer. Uma explosão próxima finalmente a detonou. Agora ele estava rindo do meu embaraço.
Na cama seguinte um rapaz que perdera uma perna levantou alegremente o coto. Ele desenhara uma careta na atadura, com uma caneta grossa. Vocês tem razão: fiquei desalentada.
Após aquela ruidosa recepção tive vontade de pedir transferência para outro setor. Não sei bem por que não o fiz, e passei quatro anos trabalhando com aqueles e mais 200 outros mutilados da guerra do Vietnam, primeiro em Oakland, depois no Hospital Naval Americano de Guam. O que aprendi com aqueles bravos jovens nunca poderei medir. Uma coisa, porém, eu sei: participar de seus triunfos e derrotas ensinou-me humildade e aceitação do que vier na vida. Outra coisa importante: aprendi que nada mutila a coragem.
Perigo – Tubarões! Entre si os mutilados riam-se de suas desgraças. “Camarada, você e sua conversa não param de pé”, era um argumento concludente. Todo mundo era recebido com um “Olá, herói” ou: “Lá vem o fuzileiro!’
A reação, porém, era bem diferente quando gente de fora interferia na vida deles. Quando um fuzileiro se casou na capela do hospital, assistido por oito companheiros, um repórter publicou uma fotografia da cerimônia com a legenda: “Ao todo apenas quatro pernas e 12 braços.” A enfermaria ficou indignada: “Por que tinham de dizer que somos diferentes?”
O moral dos mutilados sempre me impressionava. Podiam ser aleijados, mas raramente eram tristes. E na maior parte do tempo eram verdadeiramente irreprimíveis.
Certa vez, na sala de Fisioterapia, um oficial da Marinha, conhecido por seu temperamento pouco comunicativo, passou junto da piscina onde Tom, um fuzileiro magricela, que tinha perdido uma perna, estava fazendo tratamento de imersão. Erguendo o coto acima da água, Tom agitou-o para o oficial, gritando: “Socorro! Socorro! Um tubarão!”
Nem tudo eram pilhérias, naturalmente. No meio da noite, horas propícias à meditação, eu muitas vezes me tornava Madre Confessora. “Serei aceito?” perguntava um rapaz. Ou: “Eu não quero ser o herói da cidade.” “Poderei dirigir?” “Como vou ganhar a vida?” Às vezes havia ressentimento: “Eles não se preocupam conosco, não é, Miss Kirkpatrick?”
De madrugada, nas minhas rondas à luz de lanterna elétrica, controlando os aparelhos de ministração do soro, dando uma pílula aqui, ajeitando as cobertas além, eu sofria com eles. Aquelas fisionomias tão jovens para já terem visto tanto denunciavam sua dor mesmo dormindo. Lágrimas rolavam-me pelas faces e eu pedia: “Ó meu Deus, sê bom para eles!”
As feridas mais profundas. A rejeição ou a indiferença era o que mais feria. Uma vez, depois da visita de sua esposa e do pai, encontrei Roger, um rapaz de 19 anos que havia perdido as duas pernas e um olho, chorando na cama. “Ela quer o divórcio”, disse ele, “e meu pai só queria saber se a pensão continuaria sendo enviada.”
Mas havia os casos confortadores, Gordon, um marinheiro, tinha perdido as pernas quando um cabo de retenção de avião na plataforma de vôo de seu porta-aviões rebentou e bateu nelas. A mulher dele, uma garota bonita e alegre, nunca chorava nem se queixava. Levava a filha deles de quatro anos e o menino de três para visitá-lo todas as semanas e as crianças aceitavam bem a situação.
Durante as visitas ele divertia-as mostrando-lhes como os novos membros funcionavam. Havia sempre muitos risos. Como eu admirava aquela mulher!
Não havia segredos no Pavilhão 76B. A notícia de que alguém recebera carta da namorada acabando com o namoro espalhava-se, e todo mundo tentava animar o paciente.
“Olá, Jack, você devia ver o que a minha garota fez comigo!”
E houve o dia em que também eu recebi uma carta de rejeição. Fiquei muito reprimida e creio que não consegui esconder os meus sentimentos. Inevitavelmente a notícia se espalhou pela enfermaria. Na manhã seguinte havia 43 cartas na minha mesa de trabalho – todas propostas de casamento ou declarações de amor.
Como vêem, não é de admirar que eu considere os quatro anos que passei trabalhando com os mutilados como os mais compensadores da minha vida. Quantas vezes, ainda hoje, a lembrança da coragem e alegria deles me dava ânimo.
Os mutilados sempre me agradeciam pela menor coisa que eu fizesse por eles. Hoje eu é que desejo agradecer o que eles fizeram por mim.

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