terça-feira, agosto 29

O melhor presente de Natal

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1981
Autor : James Herriot

Ela não passava de uma vira-lata meio selvagem, mas nos trouxe um presente maravilhoso.

Minhas recordações do Natal ficarão sempre ligadas àquela gatinha. Vi-a pela primeira vez num dia de outono, quando fui chamado para examinar um dos cães da Sra. Ainsworth, e vi, com certa surpresa, a peluda e negra criatura sentada diante da lareira. “Não sabia que a senhora tinha um gato!”, comentei.
A senhora sorriu. “Não temos. A debbie é uma ‘pára-quedista’. Surge aqui duas ou três vezes por semana, e nós lhe damos de comer.”
“A senhora não tem às vezes a sensação de que ela quer ficar?”
“Não tenho não.” Sacudiu a cabeça. “É uma bichinha tímida. Entra de mansinho, come um pouco, depois some. Existe nela algo que nos encanta, mas não parece querer deixar que eu nem mais ninguém participe da sua vida.”
Olhei novamente para a gata. “Hoje ela não está só comendo...”
“É verdade. Pode parecer engraçado, mas de vez em quando ela entra aqui para se sentar aí à frente da lareira alguns minutos. Como se estivesse dando um prazer a si mesma!”
“Compreendo o que a senhora quer dizer.” Havia alguma coisa estranha na atitude de Debbie. Sentada, aprumada no tapete espesso diante da lareira, ela não procurava enroscar-se, lamber-se nem fazer coisa alguma; só olhava tranqüilamente para frente. Havia também qualquer coisa no tom negro empoeirado do seu pêlo, no seu aspecto esquelético, meio selvagem que acabou me dando uma pista. Aquilo era um acontecimento especial na sua vida, uma coisa rara e maravilhosa. Ela estava era se deliciando com um conforto nunca imaginado na sua existência cotidiana.
Enquanto eu a observava, ela se virou, saiu silenciosamente da sala e desapareceu. “É sempre assim, que a Debbie se comporta”, riu-se a Sra. Ainsworth. “Nunca fica mais de 10 minutos.”
A Sra Ainsworth era uma mulher gorducha, de fisionomia agradável, quarenta e poucos anos, o tipo da cliente com que sonham os cirurgiões veterinários: abastada, generosa e dona de três mimados bassês ingleses. Bastava que se aprofundasse um pouco a expressão habitualmente triste de um dos cães para que sua dona, alarmada, corresse ao telefone.
Por isso, minhas visitas à casa dos Ainsworth eram freqüentes ( ainda que não trabalhosas) e me davam bastante oportunidade para observar a gata que me havia intrigado. Houve uma ocasião em que os três cães se achavam deitados, roncando sobre o tapete, em frente à lareira. Debbie estava sentada entre eles na sua atitude habitual: aprumada, atenta, fitando com um olhar absorto o carvão em brasa.
Dessa vez tentei travar amizade com ela. Com uma adulação paciente e uma conversa meiga, consegui acariciar com um dedo a sua bochecha. Ela retribuiu o carinho esfregando a face na minha mão, mas logo estava pronta para partir. Uma vez fora de casa, projetou-se rápido por uma brecha na cerca, e a última visão que tive dela foi a de uma figurinha preta esvoaçando por um campo varrido pela chuva.
“Gostaria de saber para onde ela vai”, murmurei comigo mesmo.
A Sra. Ainsworth apareceu a meu lado. “Isso é uma coisa que nunca conseguimos descobrir.”

Só voltei a ter notícias da Sra. Ainsworth na manhã do dia de Natal, quando ela me telefonou. “Sr. Herriot, lamento tanto incomoda-lo, especialmente num dia como o de hoje!” A polidez, entretanto, não conseguia disfarçar a aflição da sua voz. “Trata-se da Debbie. Aconteceu alguma coisa. Por favor, venha depressa.”
Enquanto dirigia meu carro pelo largo do mercado, meditei novamente que Darrowby no dia de Natal parecia uma obra de Dickens que se houvesse materializado: a praça vazia, uma espessa camada de neve sobre os paralelepípedos da rua e pendurada nos beirais dos telhados; as luzes coloridas das árvores de Natal piscando às janelas das casas agrupadas, calorosamente convidativas, contra o branco frio das árvores cortadas por trás delas.
A casa da Sr. Ainsworth estava ricamente decorada com festonês de alumínio, ramos e frutos de azevinho. Um poderoso aroma emanava da cozinha – de peru com recheio de Artemísia e cebolas. Os olhos da dona, entretanto, iam cheios de sofrimento enquanto ela atravessava comigo o saguão.
Debbie estava ali, estirada, imóvel, de lado. Aconchegado a ela, um minúsculo gatinho preto. “Não a vejo há várias semanas”, explicou a Sra. Ainsworth. “Há cerca de duas horas ela entrou aqui, como que cambaleando, e trazendo na boca o gatinho. Depositou-o sobre o tapete, e a princípio achei graça; mas depois vi que as coisas não iam bem.”
Ajoelhei-me e passei a mão pelo pescoço e pelas costelas de Debbie. Pareceu-me mais magra que nunca, com o pêlo sujo e uma crosta de lama. Puxei-lhe então a pálpebra e vi a conjuntiva completamente branca; tive um péssimo pressentimento. Apalpei o abdome e, com uma certeza sinistra, meus dedos se fecharam em torno de um calombo duro nas profundezas das vísceras – um maciço linfossarcoma. Terminal e desesperador.
Dei a notícia à Sra. Ainsworth. “Ela está morrendo. Está em coma... muito além do sofrimento.”
“Oh, pobrezinha!” Ela soluçou e acariciou a cabeça da gata repetidas vezes, enquanto suas lágrimas incontidas caíam sobre o pêlo mal nascido. “Como deve ter sofrido” Acho que eu podia ter feito mais por ela.”
Durante alguns momentos mantive-me em silêncio, sentindo a sua dor. Depois disse suavemente: “Ninguém poderia ter feito mais do que a senhora fez.”
“Talvez se eu a tivesse guardado aqui, com conforto...Deve ter sido horrível, lá fora na friagem, quando ela estava tão gravemente doente. Ainda por cima tendo filhotes...quantos teria?”
Levantei os ombros. “Não creio que venhamos a saber a verdade. Talvez só este. Isso às vezes acontece... e ela o trouxe para a senhora, não foi?”
“É verdade, ela trouxe.” Assim que a Sra Ainsworth estendeu a mão e levantou aquela coisinha preta enlameada, a boquinha se abriu num “miau” silencioso. “Não é curioso? Ela estava morrendo e trouxe seu filhote para cá. No dia de Natal.”
Abaixei-me e coloquei a mão no coração de Debbie. Já não batia. Embrulhei a bichinha num pano e levei-a para o carro. Voltei, e a Sra Ainsworth continuava a acariciar o gatinho. Suas lágrimas havia secado. “Nunca tive um gato.”
Sorri. “Bem, parece que agora já tem.”

O gatinho cresceu rapidamente, transformando-se num bichano luzidio e elegante, com uma personalidade impetuosa que lhe valeu o nome de Buster (Demolidor). Em todos os sentidos, ele era o oposto da sua tímida mãe. Caminhava empertigado como um rei pelos preciosos tapetes do solar dos Ainsworth.
Durante minhas visitas, eu observava com prazer o seu desenvolvimento, mas a ocasião que me ficou na lembrança foi o dia de Natal seguinte, um ano depois da chegada de Buster.
Como de costume, eu saíra para fazer a minha ronda de visitas, pois os animais nunca chegaram a reconhecer o Naral como dia feriado. Estava a caminho de casa, impregnado de uma euforia rosada devida aos brindes que fizera com fazendeiros hospitaleiros, quando ouvi a Sra Ainsworth exclamando: “Feliz Natal, Sr. Herriot! Entre para tomar um drinque e se aquecer.” Eu não estava precisando de aquecimento, mas sem hesitar parei junto ao meio-fio. Dentro de casa, via-se toda a alegria festiva do ano anterior, mas sem a tristeza, porque havia Buster.
Ele corria trás de cada um dos três bassês da Sra. Ainsworth, orelhas erguidas, olhos brilhantes, travessos, batendo neles com a pata e depois fugindo veloz como um raio.
A Sra. Ainsworth se ria. “O senhor sabe, ele atormenta demais os cachorrinhos!” Para os bassês, a chegada de Buster foi mais ou menos como a intromissão de um forasteiro irreverente num clube seleto de Londres.
“Quero lhe mostrar uma coisa.” A Sra. Ainsworth apanhou, do aparador, uma bola dura de borracha e saiu seguida de Buster. Atirou-a para o outro lado do gramado e o gato saltou atrás dela, com os músculos ondulando sob o brilho negro do seu pêlo. Agarrou a bola entre os dentes, trouxe-a até sua dona, deixou-a cair no chão e ficou esperando com expectativa. Meu queixo caiu de incredulidade. Um perdigueiro felino!
Os bassês assistiam a tudo com desdém. Nada os induziria jamais a correr atrás de uma bola...

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