sábado, agosto 26

"Aposto que dava para beijá-la..."

fonte : Revista Seleções
data : Novembro de 1980
autor : James Stewart-Gordon

Ah, que maravilhoso é o primeiro amor da juventude!

Os filmes antigos que passam de noite na televisão nos transportam, de vez em quando, num tapete mágico, para o passado. Foi o que me aconteceu não faz muito tempo, e retornei àquele verão em que descobri que ser jovem e apaixonado é muito duro, mas que ser jovem, apaixonado e tímido demais para exprimi-lo pode levar muito tempo para esquecer, e até, às vezes, a gente nunca esquece.

Aos 15 anos, quase 16, as minhas relações humanas não incluíam garotas. Durante a semana eu jogava futebol, beisebol, e boxe às sextas-feiras à noite, no clube de pugilismo da escola, só para rapazes. Aos sábados, se a equipe não jogava, eu ia ao cinema, onde, por uma ninharia, qualquer um podia mergulhar numa dupla personalidade e encher a cabeça de sonhos. Desde essa época não mudou muito o enredo dos filmes românticos, mas para mim, eles eram o espelho da vida real – uma garota sensacional trava conhecimento com um rapaz bonito e confiante, que lhe faz a corte com lindas frases, em vez de ramos de flores.
Num sábado chuvoso, ainda sob o feitiço de um filme com Douglas Fairbanks Jr., entrei na mercearia, ao lado do cinema. Por trás do balcão dos doces estava uma moça que eu nunca vira. Era loura, devia ter a minha idade, e, quando sorria, aparecia-lhe uma covinha no rosto. Era a coisa mais linda que eu já tinha visto. Minha vontade foi fascina-la com uma daquelas frases à Fraibanks, mas tudo o que consegui fazer foi apontar para o tabuleiro e dizer com voz trêmula e aos soluços: “Pode me pesar cinco centavos de chocolate, por favor?”
Ela tirou o doce com uma pazinha de latão, pesou-o e meteu-o num saco de papel branco. As nossas mãos quase se tocaram quando lhe entreguei a moeda.
Vivi a semana seguinte num mundo de sonhos, preenchido por uma loura com uma covinha no rosto, que me sorria quando me dirigia a ela num desenvolto diálogo memorizado dos filmes.
Comecei a minha vida dupla no sábado seguinte. A nossa equipe tinha um jogo previsto, mas eu me levantara cedo para de novo admirar a minha recente deusa do amor. No ônibus da equipe tomei uma daquelas decisões que, dizem, mudaria a vida de um homem. “Professor”, implorei, “a minha mãe deu uma queda grave, e preciso voltar já para casa. Tenho de faltar ao jogo.”
O cinema não começava senão daí a uma hora. Passei pela loja várias vezes; via a moça, fazia que ia entrar e depois parava – queria desesperadamente dizer-lhe qualquer coisa, mas nada me ocorria.
Depois lembrei-me de uma frase de um filme com Spencer Tracy e Joan Bennett: “Você é nova por aqui, não é?” As palavras pareciam perfeitas. Ali perto havia um parque. Sentado num banco, ensaiei a minha frase de abertura, tentando pronuncia-la com o ar casual de Tracy.
Quando finalmente entrei na loja, tentando, com dificuldade, parecer descontraído, dirigi-me ao balcão dos doces à procura da loura. Em seu lugar havia uma moça de cabelos escuros, com uns brincos compridos nas orelhas. Antes que me apercebesse, a frase que eu vinha ensaiando saiu da minha boca: “Você é nova por aqui, não é?”
Perdi todo o meu aprumo e desatei a correr para dentro do cinema.
Era já noite quando saí do cinema. Com o moral de certo modo levantado, decidi tentar novamente a mercearia. A loura com a covinha no rosto estava no balcão. Caminhei para ela tão seguramente quanto pude e tentei sorrir, imitando Clark Gable no papel de um corajoso jogador. Nunca tinha gasto mais do que uns tostões em doces, mas senti que a ocasião merecia um pouco de alarde. Atirando a minha última moeda em cima do balcão, eu disse: “Ponha aí 10 centavos para mim.”
Ela sorriu, encheu o saco e passou-o a mim. Agarrei-o com um gesto que me pareceu ser despreocupado e ia dizendo, tal como Gable, “Até logo!” – mas, nesse preciso momento, uma mulher obesa acompanhada de duas crianças muito gordas me empurrou para o lado.
As semanas seguintes foram de terna admiração. A minha cabeça estava cheia de idéias românticas, e comecei a passar pela loja quase diariamente, depois da escola, fingindo estudar as pilhas de mercadorias nas vitrinas, enquanto na verdade admirava aquela cabeça loura. Pensava agora como poderia encontra-la fora da loja, para lhe poder falar. Nunca antes me tinha apaixonado.
Num belo sábado a moça por que eu tinha esperado toda a semana apareceu, não sei de onde, pelos fundos da loja e, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela me saudou: “Oi!”
O tempo parou para mim. Quando finalmente consegui responder, apenas gaguejei: “Vou para o cinema e queria uns docinhos.”
Ela sorriu e eu notei que os seus olhos eram muito azuis. “Chocolate ou doce de nozes cristalizados?”
“Queria cinco centavos de mistura”, dei por mim dizendo. Não consegui despregar os olhos da garota, enquanto ela escolhia os doces e os metia dentro de um saco. Eu sabia que cinco centavos só davam direito a três pedaços de doce, mas ela pôs cinco dentro do saco e aceitou a minha moeda sem qualquer comentário. Ela estava muito perto de mim, com o rosto virado para o meu. Ia agradecer-lhe, quando a moça dos brincos chamou. “Maria.” Ela foi-se embora.
Então Maria era o seu nome! Muito confuso, entrei no cinema, no meu segundo mundo, e, algumas horas depois, quando saí, ainda repetia para mim próprio o nome “Maria!”
Nessa sexta-feira, no boxe, o meu pensamento encontrava-se de tal maneira com Maria que esqueci de me esquivar e Tommy Walgren, o melhor pugilista do clube, me esmurrou no nariz. Deixou-me sangrando e, mais tarde, estimulado pelo seu sucesso, chamou-me à parte e mostrou-me a foto de uma garota usando um vestido branco. “Chama-se Marjorie”, confessou-me. “Conheci-a na semana passada e ela me ofereceu um retrato.”
O meu espírito vacilou. “Você a conheceu e ela lhe deu logo uma fotografia?”
“Claro”, disse Tommy, muito senhor de si. “Vou me encontrar com ela amanhã e dar-lhe a minha foto também.”
Eu precisava dizer algo para reabilitar a minha dignidade. “A minha namorada chama-se Maria”, adiantei. “Parece com Joan Bennett.”
“Oba!” exclamou Walgren. “Joan Bennett? Você tem retrato dela?”
Corei. “Tenho... no armário do meu quarto.”
Walgren estava fascinado. “Você pode leva-lo para a escola na próxima semana?”
“Claro”, disse eu, fingindo um ar natural.
Só mais tarde na cama, saboreando o meu momento de triunfo, compreendi que o melhor que tinha a fazer era arranjar uma foto de alguém que se parecesse com Joan Bennett. Foi então que me lembrei de que na mercearia havia retratos de atrizes de cinema. Se conseguisse encontrar uma desconhecida que se parecesse com a Joan Bennett, poderia mostrá-la a Tommy e “comprovar” a minha mentira. Foi em vão, no entanto, a tentativa que fiz na seção de molduras da loja. Completamente desanimado, voltei-me para o balcão dos doces. Maria lá estava, sorrindo.
“Oi!”, cumprimentou-me.
Durante um breve momento, pensei vagamente em pedir-lhe: “Você pode me dar um retrato seu?” Mas não disse nada. Apenas comprei um bocadinho de chocolate. Fosse como fosse, eu tinha de arranjar coragem para pedir a Maria que se encontrasse comigo num lugar, onde pudéssemos conversar. Mas como?
Nessa tarde, num dos filmes, Pat O’Brien disse para uma bailarina: “Vamos nos encontrar depois do espetáculo.” Eles realmente se encontraram e o romance começou. A frase fincou pé no meu espírito e decidi tentá-la com Maria. Ela ficaria espantada com o meu savoir-faire e aceitaria. Então eu ia poder dizer-lhe como ela se parecia com a Joan Bennett... e pedir-lhe a foto.
Quando o filme acabou, dirigi-me ao balcão de doces. Estava lá a moça dos cabelos escuros, mas, de Maria, Nem sinal. “Cadê a Maria?”, perguntei.
“Foi para casa”, disse a moça dos cabelos escuros. Depois olhou para mim. “Você gosta dela, não gosta?” Corado, tentei dizer qualquer coisa, mas as palavras não me saíam. Virei-me e fugi para a rua.
Na segunda-feira fui para a escola bastante acabrunhado. Tommy não estava lá, tinha pegado sarampo e só voltaria dentro de duas semanas. Em parte eu estava salvo, mas a pergunta da moça dos cabelos escuros e a minha vermelhidão pesavam terrivelmente no meu espírito. Sabia que nunca mais poderia encarar Maria.
Quando Tommy regressou e me pediu para ver a foto dela, eu lhe disse que tínhamos acabado. “Eu e a Marjorie, também acabamos”, disse ele – e nenhum de nós voltou a falar de namoradas.
Meses mais tarde tornei a ver Maria. Num dia em que tinha ido à cidade, à tardinha, quando regressava a casa de metrô, ela entrou numa das estações em que paramos. Sorriu e dirigiu-se para mim.
“Oi!”, disse ela. “Por onde é que você tem andado?”
Comecei a dizer algo, mas o barulho do trem não a deixava ouvir e tive de me curvar para me aproximar do seu ouvido. Pude sentir o seu perfume: era maravilhoso. Não consegui lembrar de uma única frase de um filme para lhe dizer... e ali ficamos, silenciosamente, até chegarmos à minha estação. Quando as portas se abriram, houve um pouco de silêncio.
“Você ainda costuma passar pela loja?” perguntou-me Maria.
“Não”, respondi. “Nunca mais.”
“Eu também já não trabalho lá”, disse ela.
O meu coração pulou. Se pudesse descobrir onde ela trabalhava, poderia tornar a vê-la. E principei a perguntar-lhe: “Onde é que você trabalha agora?”
Ela estava ao meu lado, com o rosto virado para mim. De repente, a porta começou a fechar-se; agindo num impulso automático, saltei para fora, antes que ela me pudesse responder.
Essa foi a última vez que a vi.
Uma noites destas, ao terminar o velho filme na televisão, pensei em Maria, a minha deusa do balcão dos doces. Eu era muito novo e inexperiente para lhe dizer que desejava conhece-la melhor, mas, quando me levantei e desliguei o aparelho, disse para mim mesmo: “Aposto que dava para beija-la...”
Vi a minha mulher subindo as escadas, segurando um monte de revistas e uma almofada elétrica.
“Ei!”, chamei, “que é que você vai fazer depois do espetáculo?” Eu parecia mesmo um artista de cinema... e não corei.

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