quinta-feira, agosto 17

O verão do girassóis

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1988
Autor : Sheila Stroup

O que não passa de um mero punhado de sementes encerra um tesouro secreto.

Encontro-me na casa em que cresci, sentada no chão da sala de estar, vasculhando uma caixa de fotografias antigas – de abóboras a serem transformadas em lanternas, de aniversários e dias passados no jardim zoológico. Aqui estão a mamãe em criança e um retrato em tons sépia do meu avô, um homem baixo e seco com um sorriso nos olhos. Foi tirada defronte desta casa, quando tanto um como a outra ainda eram jovens.
Meu avô construiu esta casa para a família em 1910 e aqui viveu até vovó morrer, em 1941. Cedeu-a então aos meus pais e hospedou-se na casa de uma viúva de idade, que o deixava usar o quintal dos fundos como jardim. A casa parece pálida e nua nesta velha fotografia, como um banhista no primeiro dia de verão. Nem uma árvore lhe faz sombra. Mas o meu avô sempre foi um plantador de árvores. Os seus áceres, carvalhos e pinheiros erguem-se hoje lado a lado, enormes patriarcas estendendo os seus ramos protetores sobre a nossa casa.
Finalmente, agarro a fotografia de que tenho estado à procura. É uma 8 X 10, retocada com amarelos e verde-pálidos, com a orla carcomida pelo tempo. É uma fotografia minha. Estou de pé, com uma perna trepassada sobre a outra e os braços cruzados à índio. Estou de macacão e nada mais. Atrás de mim, seis enormes girassóis curvam-se sob o peso de suas corolas douradas e abraçam-me. Minha expressão é radiante, e o sorriso, aberto. Sim, é o verão dos meus sete anos, o meu verão dos girassóis.
É junho, e a escola está fechada. As aulas de natação só começam em julho. Vou à Igreja Metodista uma vez por semana para a minha lição de piano, e desço a avenida até a biblioteca. Na família estão todos cheios de trabalho, mas este verão eu sou nova ou velha demais para fazer o que quer que seja. Vivo despreocupadamente os longos dias de junho, enquanto todos trabalham afincadamente.
Numa manhã em que estou sentada lendo na varanda, aparece vovô no seu Plymouth branco. Acena-me da calçada. Seu rosto está enrugado, bronzeado pelas horas que passa no jardim, e parece-me incrivelmente velho nos seus 76 anos. Está quase surdo, embora não o admita, e é difícil a gente se comunicar com ele.
Senta-se comigo na varanda. “Está um lindo dia, Sheila. Quente... uma delícia.” Meu avô usa camisas de flanela, mesmo nos dias mais tórridos. Tem os olhos cheios de veias, como bolas de gude antigas, e o seu hálito cheira o mofo de sótão.
“Quer ir comigo à biblioteca?” pergunto eu.
“Não”, diz ele. “Está um dia bonito demais para leituras. Vem comigo. Eu trouxe para você uma coisa.”
Vamos para os fundos da casa. Ele tira a enxada e uma pequena forquilha da garagem e me leva para o canto mais distante do jardim. Ensina-me então como revolver a fértil terra preta.
“É o melhor lugar do jardim. Tente não cortar ao meio as minhocas”, me diz ele. Meu modo de trabalhar é desajeitado, pesado. Vovô mantém-se cautelosamente à distância.
“Muito bem, muito bem” diz ele. Tira um lenço do bolso e desdobra-o com cuidado. Contém uma dúzia de sementes estriadas.
“Agora, plante isso. Mantenha-as afastadas umas das outras, a uma distância igual à que vai do teu cotovelo até a ponta do dedo. Enterre as sementinhas na terra, e pronto.”
Ajoelho-me. Meço, enterro. Meço, enterro. É bom mexer no solo quente. Arrasto o regador para o nosso pequeno canteiro e rego as minhas dedadas.
Antes de ir embora, meu avô me lembra de regar as sementes e diz que voltará dentro de uma semana. Rego o canteiro freqüentemente e, quando ele volta, as 12 sementes brotaram todas. Erguem seus minúsculos braços folhosos para o céu. A primeira coisa que faço depois do café da manhã é ir inspecionar o canteiro.
Vovô mostra-me como limpar com muito cuidado cada planta e manda-me arrancar dois pedúnculos menores que os outros. Por que? Eu devia saber. Passaram a ser meus filhos
Ele explica que a terra apenas pode alimentar um determinado número de plantas. Eu posso escolher – umas quantas plantas bonitas e saudáveis ou um monte de plantas doentes.
Descobrimos os restos de um pássaro azul morto, no canteiro de pepinos. Damos-lhe um enterro apropriado na base de uma das nossas plantas. Meu avô me explica que aquela avezinha irá alimentar a flor, transformando-se de certo modo em flor. Um pássaro transformar-se numa flor! A idéia deixa-me zonza.
“Vovô, que flores são essas?” pergunto. “Você nunca me disse.”
“São girassóis. As minhas preferidas.” Parece admirado por se ter esquecido de me dizer aquilo.
De repente, os caules das plantinhas já estão da minha altura. Estamos em julho. As hastes depressa ficaram mais altas que eu. Formam corolas vicejantes, de um amarelo brilhante, e seguem o sol de verão através do céu. De manhã, quando olho pela janela do meu quarto, elas me cumprimentam. Tenho a estranha sensação de que fazem parte de mim, e que eu, por minha vez, faço parte delas. Quando alcançam o esplendor máximo, mamãe tira-nos uma fotografia juntas.
O verão chega ao fim. Os pirilampos desaparecem e as noites tornam-se mais frias. Pairam no ar os odores de sapatos novos de couro e lápis de cera, de corredores de escola e folhas queimadas.
Um sábado vovô vem nos visitar. Quer me mostrar uma coisa no jardim. “Traz um saco de papel”, pede.
Vamos direto aos girassóis. Agora estão feios, com as corolas inclinadas em ângulos esquisitos. Tem os caules ocos e estão murchos; abandonei-os na sua velhice. Meu avô se aproxima, corta uma das corolas com seu canivete e a entrega a mim. É bem mais pesada do que eu pensava. Suas mãos mostram-me com ternura as sucessivas fieiras de sementes apertadinhas no seu invólucro. Centenas e centenas delas! Deixa cair algumas na minha mão. São iguaizinhas às que plantamos meses atrás. Uma pequena semente transformou-se nestas sementes todas! Fico assombrada com o que vovô e eu fizemos. Como é que uma semente se pode transformar em tantas?
Vovô abana a cabeça. Não sabe. “Toda vida é um milagre”, diz.
Cortamos as corolas carregadas de sementes e as pusemos uma a uma dentro do saco. Vovô me diz que as guarde, para alimentar os passarinhos depois das nevadas.
“Vamos para dentro”, diz ele. “O inverno está para chegar. Estou com frio.”
Enquanto caminhamos juntos, começo a perceber que vovô é como os girassóis: passadas a beleza e a pujança da vida, ele encerra ainda um tesouro secreto. Timidamente, dou-lhe a mão.


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