terça-feira, agosto 1

O cão que não ia com religiosos

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1981
Autor : Hugh Leonard

Enquanto o vento uivava e uma enorme vaga ensandecida espumava em volta do cais, vi papai pegar Jack e atira-lo ao mar.

Jack, nosso cão, era um animal imenso, peludo, com cabeça de pastor-alemão e dorso de collie. Embirrava com religiosos.
Se um padre ou um grupo de freiras por acaso aparecesse na nossa rua, o pêlo de Jack se eriçava como o de um poro-espinho, e num instante ele estava lá, junto deles, convicto de que não passariam. Rosnava, latia, bufava, com os dentes a centímetros do hábito ou das calças.
As vítimas não faziam idéia de que ele não passava de um embuste. A única vez que pegou um coelho, jogou o infeliz para o ar com o focinho e depois aparou-o gentilmente com a pata; o bicho morreu de medo, e ele, quase de susto. Mas a simples visão daquelas mandíbulas babando deve ter convencido muitas pobres irmãzinhas de que a hora do seu martírio havia chegado.
Acabou sucedendo o inevitável: Jack investiu contra uma freira, que lhe acertou um valente catiripapo entre os olhos com a pasta que trazia. Daí ele ter agarrado a manga do hábito e começado a balançar o braço da freira com tanta força que ela mais parecia estar distribuindo bênçãos pastorais para a vizinhança toda. Quando a manga rasgou e a freira conseguiu soltar-se, foi direta à delegacia de polícia – enquanto o bicho trotava orgulhosamente em direção à entrada da casa, com os despojos do inimigo entre os dentes.
“Não a aborreça.” Minha mãe só tinha medo de duas classes de pessoas: o clero e a polícia. Nossos problemas agora eram com ambos.
Naquele mesmo dia, na hora do chá, um gigantesco guarda civil entrou, abaixando-se para isso, pela porta da frente. Era MacDonald o “Gato”, assim chamado porque uma vez pulara um muro de 3m para agarrar um ladrão de maçãs. Tinha olhos pálidos, com o matiz azulado do sol no gelo, as bochechas cobertas de longos pêlos pretos, e adorava ser temido do mesmo modo que os outros homens almejam ser queridos.
Papai, que sabia que ele invejava tudo de qualquer pessoa, fitou-o de má vontade. Mamãe, morta de vergonha, teimava em mostrar-se coquete. Empurrou uma cadeira contra os joelhos rígidos de MacDonald, decretou que ele tomaria uma xícara de chá conosco (“Você vai, vai sim”), e sugeriu, piscando um olho, que sua dureza era conversa.
O Gato ficou ali parado, quedo, enquanto ela tagarelava como um brinquedo mecânico. Quando falou, porém, suas palavras nos soaram como bofetadas. Nós éramos donos de um animal perigoso. Haviam apresentado queixa, com a conseqüente intimação para processo. Passar bem.
Na porta, voltou-se para meu pai. “Ouça-me, meu caro senhor”, disse ele com voz capaz de estilhaçar qualquer vidraça. “Essa história vai parar é nos tribunais. Se o senhor estiver a fim de um julgamento condescendente, acabe com esse animal. Há um revólver no quartel para tais fins e qualquer guarda dará um tiro nele.”
Ele era esperto. Pelo rosto da mamãe, ele e eu sabíamos que ela se agarraria a essa esperança. Meu pai talvez protestasse, mas era ela quem mandava, e o terror que nutria pela polícia era quase irracional.
No dia seguinte, na hora do desjejum, eu disse: “Você não vai matar o Jack, não é, mamãe?” Ela não respondeu, mas papai disse: “De jeito nenhum! Não a aborreça.”
A execução. Fiquei perto de casa o dia todo. Na hora do chá, mandaram-me levar um bilhete à loja de Toole. Ao voltar para casa correndo, vi que meu pai virara a viela onde nós morávamos. Levava o cão com uma longa corda atada à coleira. Percebi logo que o passeio era um pretexto, e que ele estava a caminho do cais para afogar o bicho.
Eu sabia que meus pais não eram cruéis; já tinha ouvido mesmo papai censurar diversas vezes as pessoas que abandonam animais indesejados. Ele acreditava, porém, que o afogamento era uma morte humana. Podem chamar isso de ignorância, ou dizer que ele simplesmente não tinha imaginação para sentir o pânico, a luta pelo ar, os pulmões prestes a explodir. Além disso, por teimosia, não daria ao Gato a satisfação de ver Jack morrer com a bala de um dos guardas na cachola! Segui-os até o cais, correndo para alcança-los e gritando ao mesmo tempo. Mais de 30 anos depois, ainda guardo na lembrança, como se fosse hoje, tudo o que aconteceu nesse dia.
Era outubro, e soprava uma ventania do nordeste. A maré estava cheia e o mar se lançava sobre o cais, formando enormes vagas que espumavam em volta dos barcos da carreira; depois as ondas se afastavam, preparando um novo ataque violento. Uma massa de apanhar lagostas, colhida pelo vento, rolava na estrada; gravetos e folhas voavam.
Havia duas pontes de atracação: uma delas era um toco de granito saliente da terra; a outra formava um ângulo reto com aquela. Esta segunda ponte recebia toda a força do mar e havia uma mureta de proteção na parte que dava para o mar. Quando cheguei ao alto da carreira, semicego pela água que espirrava, vi meu pai agachado perto da mureta. Segurando o cachorro firme entre as pernas, ele amarrava uma das pontas da corda em volta de um bloco de concreto. Gritei, mas o vento uivou mais alto e, antes que eu o alcançasse, ele pegou o cachorro e o bloco e atirou-os ao mar.
Indiferente. Parei a alguns metros dele. Nunca vi um olhar tão atordoado num rosto humano, quando ele se virou e me viu. Então, outra parede de águas verdes se lançou contra as pontes de atracação e eu vi Jack, inacreditavelmente na crista da onda, debatendo-se com as patas como pás de moinhos.
Mais por impulso que por bravura, desci os degraus talhados no granito. Sem saber, eu estava correndo no intervalo entre duas ondas e, antes mesmo de ter tempo para surpresas, o mar cresceu, envolveu minha cintura e meu peito, e engoliu-me. Os degraus sumiram debaixo dos meus pés. Abri a boca para tomar fôlego e respirei água do mar. Foi então que senti um arranco, uma sensação de peso e a agonia de ser puxado para cima pelos cabelos. Fui arrastado de volta às escadas e desabei. Tossi, quase vomitei, sentindo o vento cortante através das roupas molhadas. Tinha perdido um sapato.
Depois de uns instantes, percebi a silhueta do meu pai abaixo de mim, na escada. Com uma mão, ele se pendurava num anel da amarração de ferro e, com a outra, tentava pegar o cachorro, gritando: “Seu patife, seu vira-lata, chegue aqui para perto de mim!” Curvou-se para agarra-lo pela coleira. Uma onda rebentou sobre ele, e o cachorro alcançou a escada, lutando com as patas para sustentar-se, pois o bloco de concreto ainda estava preso à corda. Papai carregou-o como se fosse uma cauda de noiva e só o soltou quando o viu a salvo no cais. Sentou-se numa poça de água, formada pelas suas próprias roupas ensopadas, e olhou para mim e para o cão, que, indiferente, se sacudia.
Mais nove anos. Depois, fomos para casa – meu único sapato guinchando com a água, as calças molhadas de papai estalando com um chicote ao vento, o bicho à nossa frente, de cauda empinada, parecendo ter gostado da caída. “Tua mãe vai nos matar!” Disse meu pai. “Aquela mulher vai nos odiar!” A ladainha dos seus infortúnios não poupou meu sapato perdido, nossas roupas estragadas, uma inevitável pleurisia para si próprio, uma doença devastadora para mim e seu completo fracasso em afogar o animal. Ao avistar nossa casa, logo depois, ele lançou um olhar que não seria mais desesperado se aquilo fosse um patíbulo.
Logo que papai abriu a porta, o cachorro se esgueirou por ele e entrou na cozinha iluminada. Nós o seguimos, esperando ouvir seu aparecimento ser saudado com gritos e xingamentos. Em vez disso, vimos mamãe ajoelhada, as lágrimas escorrendo pelas faces, os braços em volta do pescoço do animal.
“Louvado seja Deus, ele voltou para mim!” ouvi-a exclamar, enquanto Jack lhe lambia o rosto e procurava em redor pelo prato de comida. “Deus do céu, criatura, você está todo molhado! Eles tentaram afogar você?” perguntou, com uma voz tão aduladora e com tamanha falta de vergonha que chegamos a cambalear. Acariciou-lhe a cabeça. Depois, seus olhos se desviaram para duas poças de água no linóleo. Então ela olhou par cima e me viu e a papai.
O tal processo nunca chegou a ir avante. Talvez o delegado de polícia local, que considerava o Gato um chato de galocha, simplesmente tenha dado entrada àquilo no livro de ocorrências.... e depois ficou por isso mesmo. Numa atitude conciliatória, papai comprou uma mordaça para o cão, mas o animal, por certo mágico, conseguiu escapar no primeiro dia e triturou-a .
Ainda viveu, perseguindo religiosos, mais nove anos.

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