terça-feira, agosto 15

Frazer e o livro médico

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1981
Autor : Ruth Park

Toda família tem um garoto esperto e xereta que sabe todas as respostas – ou, pelo menos, onde encontra-las.

Quando eu era criança, costumava sentir certo desprezo se os adultos começavam a falar sobres seus velhos tempos. É, mas, pagando pela língua; foi exatamente isso que eu e minha irmã caçula fizemos outro dia – e rimos muito.
Recordamos, por exemplo, o Livro Médico, um volume maciço e sombrio, guardado na última prateleira do guarda-louça.
Era um santo livro, cheio de perigos e presságios. Quando eu voltava da escola com o nariz esfolado ( não sei por que, estava sempre caindo em cima dele ) ou qualquer outra escoriaçãozinha, minha mãe dizia com gravidade: “Temos de consultar o Livro Médico.” Para qualquer problema que eu tivesse, o Livro invariavelmente prescrevia iodo por fora e óleo de rícino por dentro. A simples visão dele nas mãos de mamãe já me assustava.
O “temos” de mamãe soava estritamente monárquico. Eu era terminantemente proibida de encostar o dedo na enrugada encadernação dele, e isso me fazia morrer de curiosidade para saber o que havia dentro.
“Por que não posso ler?” gemia eu, e majestaticamente minha mãe respondia: “Isto é para adultos.”
Hoje em dia, como se sabe, os adultos não estão com essa bola toda, e quanto menos se falar neles melhor. Mas, no meu tempo, ainda gozavam de certa mística. Eram diferentes da vulgar comunidade infantil. Suas formas eram radicalmente distintas das nossas. Tios pra lá e para cá de calção de banho eram um choque. Tias de busto achatado como uma tábua, segundo a moda da época, desfaziam um nó em algum ponto das costas e, com um suspiro de alívio, começavam a inchar.
“Como é que elas fazem isso?” perguntava eu inocentemente ao meu sofisticado primo Fraser, que às vezes ia morar conosco.
“Isso vai te custar quatro vinténs”, respondia quase em código o garoto, cujos olhos pareciam estrelas azuis, mas que era demoníaco como ele só.
E assim levei séculos até aprender.
Todos nós ( exceto Fraser, que se achava capaz de dar conta do recado ) preferíamos morrer a nos tornarmos adultos. Mas é claro que vivíamos tentando aprender algo sobre essa inexplicável classe da raça humana – e, para mim, o Livro Médico era a fonte de todas as respostas.
Acho que minha mãe o havia herdado de uma velha amiga – uma pioneira que tinha vivido a pelos menos 100km do médico mais próximo. A antiguidade do Livro era provada pelas ilustrações, que mostravam senhores de colarinhos engomados com provavelmente cimento branco e senhoras com peito de pavão e cinturinha de vespa.
“Mas eles se vestiam mesmo assim?” perguntei à minha irmã durante nossa recente conversa.
“Claro que se vestiam. Não se lembra de que Fraser cobrou seis vinténs e três tabletes de chocolate só para mostrar as ‘janelas’?” Foi então que, de repente, me ocorreu o apocalíptico momento em que vi pela primeira vez o interior do Livro Médico.
Fraser tinha um cachorrinho peludo cujos temporários sumiços botavam os adultos em polvorosa. Seu plano, portanto, consistia em fazer que minha irmã escondesse o bicho em algum arbusto próximo, enquanto ele saía pela casa berrando desesperado que o animal fugira. Então, assim que os adultos partissem para a expedição de salvamento, nós subíamos no guarda-louça e ele me revelaria os segredos do Livro Médico.
Minha irmã mostrou sinais de rebelião, mas prometi contar-lhe tudo que descobrisse. Então ela e o cachorro desapareceram, Fraser representou o seu papel, as tias foram à procura do bicho e eu fiquei em casa para consolar o pobre priminho.
Assim que pudemos, subimos no guarda-louça. Fraser parecia dono da situação, mas eu estava morta de medo, sentindo-me culpada.
Fraser abriu o Livro na parte ilustrada. Havia desenhos de homens e mulheres jogando tênis, examinando álbuns de família, colhendo flores, despreocupados como nunca, sem ao menos desconfiarem de que pequenas “janelas” tinham sido cortadas em suas roupas a fim de mostrar os seus fígados e pulmões.
Que choque para uma criança sensível, equilibrando-se na ponta de um pé na borda de uma prateleira alta, descobrir que os adultos possuem em seus corpos janelas de vidro através das quais qualquer pessoa pode ver as coisas horríveis que eles tem por dentro!
“Que é isto?” perguntei eu surpreendida. Fraser examinou o cavalheiro jogando golfe que nem desconfiava de que sua “janela”, situada bem no centro, mostrava um horroroso intestino. Pensou antes de responder. “Acho que são lombrigas.”
Nesse instante despenquei da prateleira e, para variar, caí em cima do nariz. Frazer tornou a colocar o Livro Médico em seu lugar, fechou a porta e levou-me sangrando para fora dali. Mal eu me tinha recuperado, ele me cobrou os seis vinténs e os tabletes de chocolate.
Quando me senti bem o suficiente para contar à minha irmã o que tinha visto, ela naturalmente não acreditou. Ficou até muito irritada.
“Fraser sabe de onde vêm os bebês.”
“De onde?”
“Ele quer ganhar dois vinténs e meu livro de colorir para me contar. E, quando eu descobrir, não vou contar.”
Era óbvio que, com esses preços nós, que vivíamos duras, nunca descobriríamos de onde vêm os bebês. Mesmo assim tivemos muito do que nos ocuparmos nesse ínterim. Criança simples e ingênua, que eu era, levei meses para concluir que aquelas angustiantes ilustrações do Livro Médico eram apenas a maneira grotesca, imaginada pelos adultos, de evitar a impensável “imoralidade” das figuras nuas.
Num dias destes perguntei à minha irmã: “Você acha que toda família tinha um Livro Médico, e que todas as crianças do nosso tempo ficaram doidinhas com vontade de abri-los?”
“Fraser não ficou”, disse minha irmã. “Bajulou mamãe de tal forma que ela lhe deu o Livro Médico quando ele cresceu. Depois ele recebeu uma carta de agradecimento da biblioteca da faculdade.”
“O que? O Fraser vendeu o Livro Médico à faculdade?!”
“Bem.... Você conhece o Fraser!”

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