segunda-feira, julho 31

Um desastre de acompanhante

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1986
Autor : Caros Eduardo Novaes

Quando em dúvida, entre em pânico

Minha mulher teve de fazer uma pequena cirurgia e me convidou para ser seu acompanhante na casa de saúde. Tentei uma saída diplomática. “Escuta, Ana, sinto-me honrado pelo convite, mas será que o pessoal do hospital não vai dizer que você é uma mulher possessiva, que não larga o marido nem para ser operada? Além disso, não tenho nenhuma experiência como acompanhante.”
“Tenho a impressão”, replicou ela, “que você está morrendo de medo.”
Não adiantava mais fingir. “Não sei se vou conseguir”, confessei. “Tenho pavor de hospitais. Vê, já estou suando.”
Ana me acalmou, e uma amiga que já havia servido de acompanhante a quatro parentes assegurou-me que minhas obrigações seriam mínimas. “Você só terá de apanhar um copo de água de vez em quando e chamar a enfermeira”, disse ela. “Acompanhante trabalha menos que vice-presidente da república.”
Quando chegamos à recepção do hospital, Ana estava apreensiva, mas eu estava lívido e trêmulo. Enquanto eu preenchia a ficha, ouvi a enfermeira perguntar a Ana se minha operação era delicada. Desabei no chão, e ouvi todos gritando à minha volta.
“Levem-no para a Unidade de Tratamento Intensivo!”
“Tragam uma maca!”
“Uma ambulância!” comecei a berrar, esperneando. “Chamem uma ambulância!”
“Não precisa. O senhor já está num hospital.”
“Quero uma ambulância para me tirar daqui!”
Custei um pouco a me refazer. Subimos ao apartamento onde Ana iniciaria os preparativos para a cirurgia. Minutos depois chegou uma enfermeira que nem se deu ao trabalho de perguntar quem iria ser operado, e me mandou tirar a roupa.
“Tire você primeiro”, desafiei.
“Mas.... eu não vou ser operada.”
“Nem eu.”
“Mas então o que o senhor faz deitado na cama do paciente?”
A enfermeira obrigou-me a levantar. Com dor de cabeça, falta de ar, tonto, só consegui sair carregado por ela e por Ana. As duas me botaram sentado numa cadeira. Ana deitou-se para repousar, enquanto aguardava o momento de seguir para a sala de cirurgia. Eu me estendi, calado, num sofá que virava cama. De vez em quando pedia a Ana para me pegar um copo de água.
Quando o médico entrou no quarto para examinar a paciente, gritei da minha cama: “Primeiro eu, por favor. Sinto o corpo todo doendo.”
Mas o médico disse que estava tudo bem. Permaneci gemendo, até que as enfermeiras entraram para levar Ana para a cirurgia. Foi um instante dramático. Agarrei-me como pude à cama de rodinhas. As enfermeiras me empurraram e saíram com Ana. Fui pelo corredor, aos gritos: “Socorro! Por favor não me deixem sozinho!”
Nem vi quando Ana voltou da sala de cirurgia. Estava completamente dopado. Passamos os dois uma noite difícil. Várias vezes fui obrigado a chamar a enfermeira. No dia seguinte não sei o que seria de mim sem a Ana para me dar remédio, comida, para me levar ao banheiro.
Felizmente tudo correu bem. No terceiro dia Ana voltou para casa. Eu continuei no hospital mais alguns dias, convalescendo.

sexta-feira, julho 28

Uma noite em nossa ópera

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1983
Autor : Bernard Levin

As luzes da sala extinguiram-se, o pano subiu e o que se seguiu foi uma gloriosa e inesquecível meia hora de agônica hilaridade.

Todos os anos, em outubro, a pequena cidade de Wexford, situada no canto inferior direito da Irlanda, celebra o seu festival de ópera durante três dias de deleite sem paralelo. A cidade sabe que não pode competir com os festivais famosos, cheios de grandes nomes ultradispendiosos, e, mais, que não deve competir com eles em matéria de repertório. Assim, soluciona o primeiro problema procurando jovens cantores em início de carreira, e o segundo, escolhendo óperas não encenadas freqüentemente noutros lugares.
Na noite da inesquecível sessão de encerramento do ano de 1979, cantava-se La Vestale, de Spontini, história de uma virgem vestal que trai o seu dever sagrado pelo amor.
O cenário do primeiro ato consistia numa plataforma de uns 30cm de altura, ao fundo, que descia em declive suave até as luzes da ribalta. Representava o interior de um templo e tinha, por conseguinte, de se assemelhar ao mármore. O cenógrafo conseguiu um efeito bastante convincente, cobrindo a superfície da plataforma com uma tinta vítrea. Ficava escorregadia, mas tudo se remediaria facilmente ( pelo menos assim se pensava ) com a aplicação na superfície de certo conhecido refrigerante. A idéia era, espalha-lo abundantemente, tornando a plataforma pegajosa o suficiente para evitar o risco de algum dos cantores levar um tombo.
Neste ponto, a história apresenta duas versões. Uma é que, não havendo o tal refrigerante, lançou-se mão, em seu lugar, de uma beberagem semelhante, mas menos pegajosa. A outra versão, muito mais aliciante, reza que a empregada da limpeza do teatro, inspecionando naquela tarde as instalações, verificou com horror que o palco estava coberto de um líquido e, inspirada por férreo orgulho profissional, deu-lhe uma muito boa esfregadela e poliu-o de seguida.
As duas, porem, acabam por convergir de novo. Afinal, apesar do superior encanto da segunda versão, não faz diferença qual tenha sido a verdadeira. O que interessa foi o que aconteceu a seguir.
Nessa noite, o pano subiu, para mostrar o herói mergulhado em tristes pensamentos, mesmo na pontinha do palco. Deu um passo... e estatelou-se de costas no chão. Houve um murmúrio de simpatia por parte do público. Ele então se levantou, com imensa dificuldade, deslizou mais um pouco na direção das luzes da ribalta e tentou subir de volta na plataforma. Enquanto tudo isso acontecia, claro, ele ia cantando o seu papel, uma vez que a música não parava. Mas voltar a subir na plataforma constituía obviamente uma tarefa infernal, por isso, a cada tentativa, escorregava de novo para baixo. Estava fazendo o que se poderia considerar uma perfeita demonstração de andar no mesmo lugar – gracioso expediente usado em mímica.
Inteligentemente, o herói decidiu então ficar onde estava mesmo, continuando a cantar. Calculou sem dúvida que os outros artistas dariam por ele ali e ajustariam os seus próprios movimentos em conformidade com isso. E assim aconteceu. O melhor amigo do herói, na ópera, vendo-o lá embaixo, decidiu lealmente juntar-se a ele. Verdade se diga que não tinha muito por onde escolher. No momento em que pisou o palco, escorregou por ele abaixo, esbracejando feito louco, e acabou em cima do herói.
É certo que o que acontecera não vinha de todo fora de propósito, pois o libreto mandava que ambos se abraçassem exatamente nesse instante em amistosa saudação. Não dizia, porem, que ambos, nos braços um do outro e impulsionados pelo ímpeto da descida do amigo, devessem continuar a carreira juntos, palco abaixo, como se estivessem a fim de se atirar na orquestra.
Felizmente, mesmo à beira do desastre maior, conseguiram suster o avanço conjunto e, abrindo caminho ao longo da frente do palco, como alpinistas procurando um atalho em redor de uma fenda intransponível, começaram elegantemente a escalar aquela cruel colina.
A única estrutura que se destacava em toda a superfície lisa era um pequeno altar, sobre o qual ardia a chama ritual sagrada. Esse altar estava firmemente pregado ao chão e, evidentemente, ocorreu aos dois “alpinistas” que, se conseguissem alcança-lo e se agarrassem a ele, teriam encontrado uma base segura para as operações subseqüentes.
Mal o herói e seu amigo alcançaram o almejado objetivo, entrou o coro, e seus membros se viram de imediato executando uma versão coreográfica bastante livre do balé Os Patinadores, apesar da impropriedade total da música. No que respeita à sacerdotisa-heroína, que possuía um forte instinto de sobrevivência, ela patinou até os bastidores e ali descalçou seus sapatos. Depois, aparentemente com receio de que isso não fosse suficiente, tirou também os collants que usava.
Por essa altura, o auditório (uma casa cheia com 440 pessoas) estava tão alucinado de rir que receávamos mesmo provocar alguma lesão interna grave.
Finalmente, sem que o canto jamais tivesse cessado, o coro chegou à mesma conclusão que o herói e o seu amigo, ou seja, que agarrar-se ao altar sagrado era a única maneira de se manter em pé. O problema era só haver um altar – e bastante pequeno. Todo o elenco se amontoou em redor dessa ilhota de segurança, procurando apoio para as mãos, para um pé, ou mesmo para um dedo. Os que estavam mais perto agarraram-se a ele, os seguintes seguraram-se nos já agarrados, os que estavam mais afastados engancharam-se nos últimos, e assim sucessivamente, até que, numa espécie de cadeia através do palco, todo mundo ficou acomodado.
O estado do público era agora o de forte histeria coletiva. Muitos espectadores encontravam-se em estado de colapso, estirados no soalho, contorcendo-se na incontinência agônica de sua hilaridade.
O primeiro ato terminou em meio a apoteóticos aplausos – como jamais ouvi num teatro de ópera. Durante o intervalo, foi aplicado no palco uma dose extremamente liberal do refrigerante pegajoso, o que pôs fim à nossa alegria.
Mas quem quer que, depois de tal deleite, pedisse bis, só poderia ser chamado de ganancioso. A maioria satisfizera-se completamente. Afinal, durante uma gloriosa meia hora, havíamos simplesmente saboreado o leite e o mel do paraíso.

quarta-feira, julho 26

As três palavrinhas mágicas

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1986
Autor : Anya Bateman

Há coisas que realmente importam na vida, mas a verdade é que muitos de nós, freqüentemente demais; nos deixamos transtornar por meras bobagens.

“Vou ensinar a vocês três palavras que vão ajudá-los muito no mestrado e ao longo da vida”, disse um dia um experiente professor de pedagogia durante uma aula a que eu assistia. “Elas são a fórmula mágica para trazer paz ao seu espírito: ‘Não tem importância’.”
Que quereria ele dizer com aquilo?
“Um mestre sofre frustrações durante o seu dia, mas que, na verdade, não são grande coisa. Se ele se deixa abater por elas, corre o risco de se sentir arrasado”, explicou ele.
“Vou dar um exemplo. Suponhamos que um de vocês é professor e planejou cuidadosamente o seu dia. Há muita coisa a fazer. Vem um feriado e sua classe tem de completar um trabalho especial.”
“Aí um garoto adoece e vomita mesmo em cima do painel mural que os alunos estavam prestes a terminar. Nessa altura, você poderá ter duas reações: ficar desesperado ou limitar-se a dizer ‘Não tem importância”, e convencer-se de que não tem mesmo.”
“O realmente importante, ou seja, os sentimentos do pequeno que adoeceu, é claro que vai preocupar você; mas, quanto ao programa, você muito simplesmente o retomará no ponto em que interrompeu.”
Percebi a sabedoria contida em suas palavras e, como sofro facilmente de frustrações, anotei no meu bloco de notas, com letras bem gordas, a frase: “NÃO TEM IMPORTÂNCIA.” Decidi que não deixaria as minhas decepções e desilusões perturbarem a minha paz de espírito.
Deu resultado. Passei a andar muito mais feliz e a sentir-me mais realizada desde que comecei a ligar mais ao que era de fato importante e menos ao que não era. Mas apaixonei-me por um rapaz muito bonito, Phil Jackson. Para mim ele era sem dúvida um príncipe encantado. Uma noite, porém, saímos juntos e ele me disse, de maneira mais delicada que pode, que apenas me considerava uma amiga. Tudo o que eu idealizara construir com ele foi ali por água abaixo. Nessa noite, quando eu chorava no meu quarto, as palavras que anotaram soaram-me irônicas: Não tem importância.
“Pode ser, mas menos neste caso”, murmurei. “Eu amo Phil. Não posso viver sem ele!”
Ao acordar na manhã seguinte, porém, reli de novo a frase escrita no bloco e comecei a analisar a situação. Teria assim tanta importância? Phil, eu e a nossa felicidade, tudo isso era importante. Mas quereria eu de verdade casar com alguém que não me amasse?
À medida que os dias iam passando, descobri que a vida sem Phil continuava tendo sentido. Eu conseguia me sentir feliz e estava esperançada de encontrar outro como ele. Mesmo que isso não acontecesse, era bom saber que eu podia exercer controle sobre os meus sentimentos.
Anos depois encontrei uma pessoa muito melhor para mim. Durante os preparativos para o casamento, não precisei lembrar da mensagem “Não tem importância.” Afinal de contas, já nem ia precisar dela, pois “íamos ser muitos felizes para todo o sempre”. Não ia haver lugar para mais frustrações na minha vida.
Como são ingênuos os jovens! Casamento e maternidade sem frustrações? Cinco anos mais tarde, e três rebentos nascidos, as pressões da vida doméstica foram aumentando de tal forma que dei por mim arrancando os cabelos. Por que razão haveriam as crianças de quebrar ovos logo em cima de um tapete acabado de limpar? Por muita roupa que eu lavasse, no dia seguinte o cesto lá estava cheio de novo. E o barulho! Que inferno aquela berraria toda!
No dia do aniversário da minha filha mais velha, pensei que eu ia estourar. Precisava ainda comprar os balões e enche-los, e a festa ia começar meia hora depois. As minhas filhas implicavam uma com a outra; e antes de sair eu ainda tinha de dar dois telefonemas.
Quando desliguei o telefone, peguei no bebê e fui procurar as meninas, para leva-las comigo de carro até a loja. Não as encontrava em parte nenhuma. “Onde estarão elas?” choraminguei. Fui encontra-las com os vestidos de festa cobertos de pó de serra das obras que estávamos fazendo para ampliar nossa casa. Era serradura no cabelo e pelo chão da cozinha e da sala de jantar.
“Oh, não! Não agüento isso!” berrei. Estava prestes a dizer “Malditas crianças!” quando como um flash, aquelas palavras se estamparam no meu cérebro: Não tem importância.
Não tem mesmo importância, pensei eu. Pelo menos toda aquela que eu estava atribuindo. Olhei de novo para as pequenas e sacudi a cabeça em sinal de reprovação, mas lá por dentro estava me rindo da figura delas. Os olhos esbugalhados por me verem zangada, sobressaíam naqueles corpinhos cobertos de pó de madeira de cima a baixo.
Não tinha mesmo importância. Não valia a pena ficar aborrecida. Aquele dia especial era delas, não meu. Queria que as minhas crianças ficassem com uma boa recordação do dia do aniversário e não com a lembrança de uma “mãe aos berros”. Elas é que importavam: as minhas filhas.
“Venham cá; vamos escovar isso tudo”, disse-lhes. Reordenei os meus planos do dia e segui em frente. E a festa foi ótima, mesmo sem os balões.
Nessa noite escrevi num papel as palavras “NÃO TEM IMPORTÂNCIA” e afixei-as num painel que tenho na cozinha. Jurei que não ia mais esquecer essa mensagem.
Algumas semanas mais tarde, eu e o meu marido recebemos más notícias. Tínhamos investido o dinheiro das nossas poupanças num negócio que não deu certo.
Meu marido leu a carta para mim, saiu da sala e fechou-se a sós no seu escritório. Eu podia vê-lo através da porta do hall, com a cabeça entre as mãos. Comecei a sentir um aperto no estômago à medida que a amargura se apoderava de mim. Foi então que me lembrei das três palavras mágicas: Não tem importância.
Puxa! Pensei. Desta vez podem ter a certeza de que tem importância. Quando, porém, comecei a ouvir o nosso filhinho bater com os cubos de brincar uns nos outros, minha atenção desviou-se para ele. Por trás dele, do outro lado da janela, as meninas estavam fazendo um castelo de areia, numa animada brincadeira em conjunto. Mais longe, para lá do quintal, os bordos recortavam-se no límpido céu azul. Senti o aperto no estômago desfazer-se e a paz retomar o meu espírito. Pouco depois estava sorrindo. E não tardou que eu fosse ter com o meu marido para o animar: Não há de ser nada. Foi só dinheiro, e, pensando bem, que importância tem.
Ao longo de uma vida, há muitas coisas que tem a sua importância. Os nossos valores, por exemplo. Deus importa. A nossa pessoa também. Existem, no entanto, muitas outras coisas que ameaçam a nossa paz de espírito e a nossa felicidade mesmo sem terem importância – pelo menos toda a que lhe atribuímos. É só preciso eu não me esquecer nunca disso.

terça-feira, julho 25

Como é que se faz isso?

Fonte : Revista Seleções
Data : Março de 1982
Autores : Caroline Sutton e Duncan M. Anderson

Alguma vez você já quis saber como se faz pasta de dentes com riscas, ou como se consegue meter a grafita num lápis? Então, vá lendo.

Como é que os mágicos fingem serrar uma mulher ao meio?
O sucesso deste truque está na ilusão óptica de ver uma mulher estendida ao comprido dentro de um caixão em cima de uma mesa. Seus pés e sua cabeça sobressaem por buracos nas extremidades desse caixão que o mágico começa então a serrar ao meio. As duas metades são depois separadas, e a gente não consegue ver o interior porque diante dos lados cortados desceram duas chapas metálicas. Então, as metades são reunidas, e, milagrosamente, a mulher está lá inteirinha da silva.
Um dos métodos utilizados para criar esta ilusão envolve duas mulheres. No momento em que trazem os acessórios para o palco, já há uma mulher escondida na mesa. Enquanto a auxiliar de palco vai para dentro do caixão, a outra, ainda oculta, também entra nele através de um alçapão na mesa, e projeta os seus pés para fora do caixão. Ela dobra-se, metendo a cabeça entre os joelhos, enquanto a outra junta os joelhos ao queixo. Por conseguinte, fica um espaço vazio no curso da serra.

Como é feito o café instantâneo?
Primeiro a fábrica côa enormes quantidades de café, uns 900kg de uma vez, extraindo os componentes solúveis. O líquido do café depois passa através de tubos em que pressão e temperatura altas produzem um extrato de café concentrado. O café está agora preparado para secar, utilizando-se um de dois processos.
Para café instantâneo em pó, o extrato é seco em ar aquecido a 260ºc. depois de a água evaporar, resta o café instantâneo em finos grãos. Por fim o café é levemente umedecido de novo, para se produzirem grânulos capazes de se dissolverem mais facilmente em água quente. O café fica então pronto para ser conservado em vidros.
No processo de liofilização, o extrato de café é congelado, quebrado em grânulos e posto num secador a vácuo. Neste meio, a água congelada transforma-se transforma-se diretamente em vapor, que é depois retirado. Os grãos solidificados dissolvem-se em água quente, dando rapidamente o chamado café instantâneo.

Como é que eles conseguem meter a grafita num lápis?
É que os lápis são constituídos por dois bocados de madeira colados juntos, com a grafita no centro. As juntas ficam invisíveis.

Como é que as cápsulas de remédios que se dissolvem dentro do organismo “sabem” o momento próprio de começar a dissolver-se ( no estômago ou no intestino, por exemplo?
A técnica foi inspirada pelos pequenos confeitos utilizados em pastelaria decorativa. Cada uma dessas cápsulas medicamentosas de dissolução retardada é formada por 300 a 900 pílulas minúsculas, e cada uma destas, por sua vez, tem um núcleo de açúcar e amido. Milhões destes núcleos são colocados em grandes tambores que fazem lembrar misturadores de concreto. À medida que o tambor vai rodando, o remédio é adicionado, e vai sendo distribuído uniformemente sobre o núcleo. Uma camada serosa exterior é aplicada pelo mesmo processo. As bolinhas em diferentes tambores recebem quantidades também diferentes dessa camada serosa, para que algumas cápsulas se dissolvam quase imediatamente e libertem o remédio, e outras demorem mais ( chegam a levar mais de 12 horas ), enquanto o aparelho digestivo vai dissolvendo a camada de cera.

Como é que se obtém riscas coloridas numa pasta dentifrícia?
Um pequeno tubo com ranhuras longitudinais é ligado ao gargalo da bisnaga, prolongando-se um pouco para o interior. Uma pasta vermelhar ( ou seja, a risca ) é inserida nesse tubo. Quando a gente aperta a bisnaga, a pasta branca empurra a vermelha, que se encontra na parte superior, e esta, saindo pelas ranhuras, junta-se à branca.... É assim que a pasta fica riscadinha.

Como é feito o fogo de artifício?
Muitos dos artefatos de fogos de artifício são feitos de nitrato de potássio ( salitre ), enxofre e carvão moído muito fino. Outros contém perclorato de potássio, magnésio, alumínio e sais de antimônio.
O que produz a explosão é pólvora negra; os tons vermelhos, verdes, azuis e amarelos resultam de composições de nitrato de estrôncio, nitrato de bário, óxido de cobre e sais de sódio.
Os diversos desenhos criados pelos fogos de artifício no céu são determinados pelas variações na composição e no invólucro. O desenho luminoso de um repuxo, por exemplo, resulta de uma carga de enxofre, salitre e carvão, que solta chispas independentemente ou em combinação com limalha metálica; as “estrelinhas” consistem em várias combinações de compostos químicos que ardem em cores durante alguns segundos, depois que a explosão de pólvora os impele em direção ao céu; as chamadas pistolas ou valverdes são criadas pela repetição de camadas de pólvora, uma espoleta retardada e estrelinhas; os foguetes tem uma “cabeça” que é um invólucro cilíndrico muito bem atacado com pólvora e estrelinhas. Uma carga propulsora envia os foguetes para os ares, e a seguir inflama as estrelinhas. Nas rodinhas pirotécnicas, há uma abertura na extremidade de cada tubo, e um eixo central, em volta do qual elas giram. Outros tipos de fogos de artifício, como os cartuchos grandes cheios de estrelinhas, contém no interior um ou mais cartuchos menores, que encerram estrelinhas e que produzem explosões sucessivas.

Como é que uma garrafa térmica conserva os líquidos quentes ou frios?
As garrafas térmicas são feitas de modo a reduzir as trocas de calor entre o interior e o exterior, o que se consegue bloqueando as três formas pelas quais o calor se propaga: a condução, a convecção e a radiação. Estas garrafas tem no interior uma cápsula de vidro de paredes duplas. Utiliza-se o vidro por ser mau condutor de calor. Entre as duas paredes de vidro existe um vácuo quase perfeito: isto limita a possibilidade de o calor escapar, ou de penetrar na garrafa térmica através de convecção. Todavia, como o calor se pode propagar pelo vácuo através de radiação, as superfícies confinantes das paredes interior e exterior levam uma camada de uma solução de prata, que reflete as ondas de calor, não as absorvendo.

segunda-feira, julho 24

Amor feito de pequenas coisas

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1983
Autor : Judith Viorst

Parece mentira mas é verdade. O casamento ainda vive e está passando bem. Nele ainda há ternura, empatia, alegria.

Elaine e Davi chegaram exaustos ao hotel. Ela tinha tratado pessoalmente de toda a programação, da reserva do quarto e das entradas para o concerto a que eles pretendiam assistir, e durante toda a viagem havia-lhe falado sobre o assunto, contando-lhe como tinha sido difícil coordenar tudo.
E então – horror dos horrores!, - , quando se apresentaram no balcão da portaria, souberam que não havia reserva nenhuma em nome deles! O gerente mostrou a carta que Elaine escrevera e provou que tinha razão.
“Eu havia posto datas erradas”, conta ela, “E, como estava tão preocupada comigo mesma, logo pensei que o Davi ia ficar furioso comigo.”
Em vez disso, ele lhe deu um abraço. “Querida, não se preocupe”, disse ele. “Qualquer pessoa pode se enganar. A gente vai procurar outro lugar qualquer.” E foi aí que eu percebi que me havia casado com uma pessoa que nunca se aproveita do erro do parceiro para aborrece-lo ainda mais. “Lembro-me desse incidente todas as vezes que começo a pensar naquilo que Davi não é. Isso me ajuda a ver que escolhi a pessoa certa.”

Elsa não se lembra mais como a discussão começou, mas tudo aconteceu ainda antes do café da manhã, e, na hora em que Steve devia sair para o trabalho, ainda não tinha acabado.
“Como é que você pode ir embora assim, se ainda não ficou nada resolvido?” exclamou Elsa.
Aí, Steve fez algo que poucos homens ambiciosos e trabalhadores fariam: telefonou para o escritório e cancelou todos os compromissos que tinha marcado para aquele dia...
Segundo Elsa, “para mim, isso significou que nosso relacionamento era muito mais importante que as reuniões de negócios; significou que eu me havia casado com um homem que colocava nossa relação à frente do trabalho”.

Maria tinha a doença de Hodgkin, e, devido aos tratamentos, estava temporariamente com a pele queimada e sem cabelos. Seu noivo, porem, insistiu em que o casamento se efetuasse em agosto, conforme o previsto. “Você pode morrer, eu posso morrer, isso não muda nada! É só uma questão de termos a coisa sempre presente, nada mais.”
Segundo ela, “Esse homem, meu noivo, é capaz de me encarar, até hoje, como uma pessoa inteira. Quando ele jurou que me ia ser fiel na doença e na saúde, me ia honrar e me amar durante toda a vida, chorei, sabendo que durante a vida inteira eu própria teria de aprender o significado dessa aceitação.”

Pouco depois do sexto aniversário de casamento de Angi e Davi, a casa deles foi destruída por um incêndio. A primeira coisa que Angi fez, quando lhe foi permitido remexer nas ruínas calcinadas, foi procurar seu álbum de fotografias. Foi então contar ao marido que as fotos estavam a salvo, e encontrou-o colocando cuidadosamente dentro de uma caixa uns pedaços chamuscados de papel – as cartas de amor que ambos haviam trocado.
“Quando eu o vi ajoelhado no meio das cinzas”, diz ela, “senti-me tomada pela certeza de que havíamos sido feitos um para o outro. Nesse momento, durante a maior tragédia de nossas vidas, nossos pensamentos dirigiam-se para a perda das coisas que nos eram mais caras, não materialmente. Ajoelhei-me também para ajuda-lo, com a certeza de que não havíamos perdido nada de importante, afinal de contas.”

Harvey tivera durante a vida inteira uma paixão: escalar uma montanha. Um belo dia foi faze-lo, e levou uma queda séria. Sua mulher, quando vieram avisa-la do acidente e de que ele poderia estar morto, perguntou apenas: “Ele caiu subindo ou descendo?”
Semanas mais tarde, quando estava melhor, Harvey soube dessa pergunta dela. “Fiquei comovidíssimo”, afirma ele. “Embora sem saber se havia enviuvado ou não, ela me amava tanto que quis saber se eu havia conseguido o que queria. Nunca me esquecerei do amor que senti então por ela e do orgulho pela sua coragem.”

Roberto estava sentado num sofá que Helena havia recentemente estofado de novo. Estava olhando pensativamente a chuva que caía sobre o jardim. Falava sobre a falta de sentido que a vida tinha, e as cinzas do seu cigarro fizeram um buraco no lindo estofado novo.
Parecia o símbolo perfeito da desesperança total – conta ele. Helena, porem, foi buscar agulha e linha e bordou uma flor colorida em cima do buraco.
“Aí eu entendi”, afirma Roberto, “que minha mulher era uma pessoa que sempre me ampararia.” Ele se havia casado com uma criatura que consertaria os danos, taparia os defeitos... dos sofás e da alma.

Não se pode negar que algumas das nossas recordações mais queridas são aquelas que temos de atos pequenos e simples – momentos de entendimento matrimonial que são quase impossíveis de explicar. Como o caso do marido a quem proibiram de estar presente na hora em que a sua mulher – que se sentia apavorada – estivesse dando à luz a um filho. Ele se disfarçou de servente do hospital e conseguiu entrar na sala de parto. Há também aquele do marido que, sem a mulher perceber, substituiu o peixinho morto do aquário por outro parecido. E ainda o marido que, por ter ouvido sua mulher falar em bolo de creme, em sonhos, saiu logo de manhã de casa e foi correndo comprar um.
Outro fato, o do marido que socorreu sua esposa durante um incidente com um bolo de chocolate.
Foi assim: June deveria levar uma sobremesa pra um jantar em casa de amigos, onde cada pessoa levaria um prato. Resolveu fazer um bolo de chocolate, mas que não saiu tão bom quanto seria de desejar. O bolo foi colocado na mesa junto com outras sobremesas. June ofereceu ao marido uma fatia e, pela expressão dele, percebeu logo que aquilo estava péssimo.
Ele, porem, pegou o bolo e, declarando a todos os presentes que aquela era a sua sobremesa favorita, mesmo havendo diversos outros doces na mesa, avisou que ia comer inteiro todo aquele. “Depois sentou-se a um canto”, conta June com carinho, “e corajosamente comeu todinho o bolo, para que ninguém percebesse como estava ruim.” June acha que homem ideal é aquele que a ajuda em casos de emergência. O gesto galante de Mac, segundo ela, “foi a confirmação de que me casara com um homem que sempre me protegeria.”

domingo, julho 23

A porta aberta

Fonte : Revista Seleções
Data : Março de 1982
Autor : Saki ( H. H. Munro )

“Seus corpos nunca foram encontrados”, contou ela.

Minha tia já vai descer, Sr. Nuttel”, disse a jovem de 15 anos, com um ar muito seguro de si. “Enquanto isso, o senhor vai ter de me aturar.”
Franton Nuttel tentou dizer uma frase correta que agradasse à mocinha, sem parecer indevidamente satisfeito com a ausência da tia. No seu íntimo, duvidava um pouco de que aquelas visitas formais ajudassem a curar a depressão nervosa que ele supostamente deveria estar tratando na quietude do campo.
“Vou lhe dar cartas de apresentação para todos os meus amigos de lá”, tinha dito a irmã dele. “Senão, você vai ficar completamente isolado, sem falar com ninguém, e seus nervos vão ficar cada vez piores.”
“O senhor conhece muita gente aqui pelas redondezas?” perguntou a sobrinha, quando lhe pareceu que o silêncio já havia durado bastante.
“Não conheço praticamente ninguém”, respondeu Framton. “Minha irmã esteve aqui de visita há quatro anos, e foi ela quem me deu umas cartas de apresentação.”
“O senhor não sabe nada sobre a minha tia?”, acrescentou a menina.
“Sei apenas seu nome e endereço.”
“A grande tragédia da vida dela aconteceu há três anos”, prosseguiu a garota. “Isso foi depois de sua irmã ter estado aqui.”
“Que tragédia?”, indagou Framton. Ele estava achando que aquele lugar tranqüilo não combinava nada bem com tragédias.
“O senhor é capaz de estar intrigado com o fato de aquela porta envidraçada estar aberta nesta época do ano”, disse-lhe a sobrinha, apontando para uma porta que dava para um gramado. “Por aquela porta, faz hoje exatamente três anos, o marido e os dois irmãos mais novos da minha tia saíram para caçar. Quando atravessavam o lamaçal foram engolidos por um pântano traiçoeiro. Seus corpos nunca mais apareceram.”
Aqui a voz da menina tornou-se hesitante. “A pobre titia sempre pensa que eles vão voltar algum dia – eles e o cachorrinho que sumiu junto – e que vão entrar aí por essa porta. É por isso que ela fica aberta todos os dias até o entardecer. Ela passa a vida me contando como eles saíram – meu tio com sua capa de chuva branca no braço. Sabe, às vezes, em tardes calmas como esta, na hora do crepúsculo, tenho uma sensação arrepiante de que eles vão mesmo entrar aí por esta porta...”
Um estremecimento de horror passou pelo seu corpo, e ela calou-se. Foi com alívio que Framton viu entrar na sala, toda animada, a tal tia, desculpando-se por vir tarde.
“Espero que não se incomode que a porta esteja aberta”, disse ela. “Meu marido e meus irmãos devem estar chegando de uma caçada, e eles sempre entram por essa porta.”
Continuou tagarelando animadamente sobre as caçadas de patos naquele inverno. Framton fez desesperados esforços com o fim de desviar a conversa para um assunto menos pavoroso, mas estava percebendo que a dona da casa não lhe prestava muita atenção, pois desviava continuamente o aflito olhar em direção à porta aberta.
“Os médicos me ordenaram um completo repouso, não posso me enervar nem fazer exercícios físicos”, anunciou Framton, que imaginava – como muita gente – que completos estranhos ficam fascinados com os menores detalhes das doenças da gente.
“Sim?”, respondeu a Sra. Sappleton, com ar distraído. De repente animou-se, mas não devido á conversa de Framton.
“Até que enfim chegaram!” exclamou ela. “Bem a tempo para o chá.”
Framton estremeceu e, com um ar compreensivo, virou-se para a sobrinha. A menina estava olhando arregalada para a janela aberta, seus olhos repletos de terror. Framton voltou-se de repente e olhou na mesma direção.
À meia-luz do crepúsculo viam-se três vultos andando silenciosamente pelo gramado, acompanhados por um cachorrinho. Todos traziam espingardas e um vinha de capa branca pelos ombros.
Framton agarrou sua bengala e saiu ventando pela porta do saguão e pelo caminho de cascalho, sem reparar no que fazia.
“Cá estamos, querida”, disse o homem da capa branca, entrando pela porta do jardim. “Quem é que saiu assim correndo quando nós aparecemos?”
“Um tal Sr. Nuttel”, respondeu a Sra. Sappleton. “Quando vocês chegaram, saiu voando sem uma palavra de explicação! Até parecia que tinha visto um fantasma.”
“Acho que foi por causa do cachorrinho”, disse a sobrinha placidamente. “Ele me contou que tem horror a cães. Uma vez, nas margens do rio Ganges, ele foi perseguido por uma matilha de cães esfaimados, fugiu para um cemitério e foi obrigado a passar a noite dentro de uma cova recém-aberta, enquanto os animais rosnavam e babavam lá em cima. Realmente é mais do que suficiente para que uma pessoa fique nervosa.”

sábado, julho 22

Era uma vez um golfinho...

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1972
Autor : Maurice Shadbolt

A história de Opo, a fera boazinha que deu uma lição de fraternidade e amor.

A única história de fadas que jamais vivi começou no verão de 1955-56. Jovem escritor em começo de carreira, eu alugara uma casinha à beira-mar em Opononi, na remota região setentrional da Nova Zelândia, com a intenção de ali escrever minha primeira novela. Tinha um mês de férias do estúdio de filmes documentários para o qual trabalhava – e toda a ambição do mundo.
Jamais escrevi a tal novela. A vida escreveu à minha volta algo muito melhor, uma história que jamais consegui esquecer.
Certa manhã, pouco depois de ter chegado àquele vilarejo tranqüilo, saí para um passeio a pé. O centro do lugar não eram mais que um velho prédio colonial caindo aos pedaços, transformado em bar, ligado por uma rangente calçada de madeira a um armazém e agência do correio. E um pequeno cais abandonado com o declínio da navegação costeira. Havia talvez umas três ou quatro dúzias de casas, ocupadas principalmente por maori e por europeus aposentados. O vilarejo sobre a baia ficava situado ao lado de imensas dunas de areia amarela, com o mar aberto à sua frente e um banco de areia onde as ondas batiam fazendo espuma, de encontro ao qual muitos navios se tinham destroçado no tempo dos pioneiros. Um lugar tranqüilo, com muito passado e pouco futuro. O tipo do lugar onde nada de importante acontece. Talvez exatamente por isso algo aconteceu, e a vida não podia ter escolhido cenário mais luminoso.
Encontrei um bando de pessoas agitadas no cais. Olhavam para o mar e apontavam. Um barquinho de pesca vinha voltando, o que não era nada demais. Vi então uma barbatana perseguindo o barco. Não o seguia apenas, circulava-o . Tubarão? Não, claro que não. Um golfinho. Mas eu já vira golfinhos por ali, brincando à volta dos barcos.
Quando o barco atracou, o golfinho pareceu deitar âncora ao seu lado, boiando pacientemente. O pescador, muito suavemente, começou a esfregar-lhe as costas com um pano macio. O golfinho virou de barriga para cima, entregando-se inteiro ao prazer. Percebi então que estava sendo testemunha de algo notável. Afinal, aquele não era um golfinho domesticado e treinado, dos que aparecem em espetáculos aquáticos; era uma criatura dos mares, buscando, por iniciativa própria, a companhia de humanos. Desde a antiguidade das histórias gregas e romanas sobre amizades entre homens e golfinhos, tal intimidade poucas vezes havia sido registrada.
Como eu, a maioria dos habitantes de Opononi, no começo, pensara que aquela barbatana nas águas tranqüilas da sua baía era tubarão. Depois de estabelecida a verdadeira identidade, durante algum tempo ficaram sem saber o que fazer com o estranho visitante. Mas logo começaram a fazer-lhe festas com remos e vassouras de pano e tentaram dar-lhe peixe para comer. Opo, como logo o batizaram, reagia cada vez com mais afeição.
Nos longos dias de verão, Opo começou a passar mais e mais tempo perto da praia, nadando cautelosamente entre os banhistas. Movimentos súbitos e violentos faziam-no disparar para o mar alto. Mas acabou acostumando-se aos seres humanos mais animados, especialmente crianças pequenas. Aprendeu a aceitar carinhos e abraços. Às vezes – como nas histórias antigas – até deixava-se cavalgar um metro ou dois por uma criança às gargalhadas.
No meu último dia de férias, fui nadar na baía, e, como esperava, dei com Opo emergindo alegremente ao meu lado, com o seu engraçado nariz em forma de garrafa. Ela (acabou-se verificando que era uma fêmea da variedade tursiops ) rolava e mergulhava ao meu lado, depois passava por baixo, e finalmente seguiu-me até à praia, onde a esperavam as crianças.
Para mim, a história deveria acabar aqui: voltei à cidade no dia seguinte. Eu devia ter visto logo. Algumas semanas depois, Opo ficara famosa. O golfinho de Opononi estava nas manchetes dos jornais, não só na Nova Zelândia, mas no mundo todo. Havia apenas alguns minutos que estava de volta ao estúdio, quando o chefe de produção me chamou ao seu gabinete. “Esse golfinho”, ele perguntou, “é verdade essa história?” Não tive o menor problema em confirmar.
“Nesse caso”, disse ele, “é melhor você voltar lá e dar mais uma olhada, só para ter a certeza. E desta vez leve um cinegrafista junto.”
Assim, em menos de uma semana, eu estava de volta à Opononi, onde encontrei as coisas tremendamente mudadas. O que era uma aldeia tranqüila transformara-se numa massa barulhenta de gente. Não havia uma cama vaga no hotel e todas as cabanas de beira de praia explodiam de gente. Onde era possível acampar, ao longo da praia, barracas ocupavam todos os espaços. Incrível como pareça, havia até um guarda para dirigir o mar de carros que haviam vencido as difíceis estradas rurais até Opononi.
Arranjamos lugar para dormir com um casal de velhinhos aposentados. Na manhã seguinte, saí para renovar minha amizade com Opo. Encontrei-a brincando entre os banhistas; ela aprendera a equilibrar uma bola de borracha no focinho, deixá-la rolar pela barriga e depois dispara-la com a cauda a uns 50 metros de distância. Talvez se lembrasse de mim, talvez fosse apenas atraída pela visão e pelo barulho da câmara: o fato é que ela enroscou-se devagarinho pelas minhas pernas, voltou-se e, não há dúvida, fixou seu olhar na máquina.
Opo não demorou a passar de bolas de borracha para garrafas de cerveja, cheias ou vazias. Equilibrava uma garrafa delicadamente no focinho, arremessava-a para o alto e aparava-a na volta. Claro que ninguém lhe ensinara o truque; aprendera sozinha, para divertir seus amigos humanos. Quando as crianças da escola de Opononi faziam roda e cantavam na água, Opo entrava no meio e ficar nadando. Ele aprendeu também, era óbvio, a apreciar os aplausos do público. Quando os recebia, dava um salto enorme e feliz fora da água, brilhando à luz do sol. Mas, quando crianças estavam por perto, nunca fazia isso; Opo jamais machucou ninguém, e, se alguém a machucava, agarrando-se às suas nadadeiras ou à cauda, ela escapava rapidamente, batendo zangada com a cauda na água.
Nossas melhores cenas foram sobre a amizade que se estabelecera entre Opo e uma garotinha tímida de Opononi, Jill Baker, de 13 anos.
Quando a menina estava por perto, Opo não queria mais ninguém. Se Jill tentava fugir ao golfinho cercado de gente, nadando para longe do cais, Opo sempre dava jeito de encontrá-la e ir ficar ao seu lado. Para evitar as multidões, Jill passou a nadar com Opo à noite, quando os espectadores haviam ido embora. Filha única e menina solitária, ela achava que o golfinho era igualmente solitário. A amizade delas, em meio a toda aquela turbulência, era ainda mais estranha e comovedora.
Quem tenha estado em Opononi naquele fantástico verão nunca o esquecerá. Embora sempre crescente, a multidão jamais provocou distúrbios. As pessoas pareciam ficar mais gentis por influência do golfinho. Chegavam diariamente, aos milhares, e às vezes caíam na água com roupa e tudo, na esperança de passar a mão em Opo. Não eram só neozelandeses: australianos e americanos começavam a aparecer. Era aparente que Opo logo viria a ser um dos tesouros turísticos do Pacífico.
Como Anthony Alpers registra tão vividamente em seu livro Delphins, Opo tinha o efeito de uma benção sobre a crescente massa humana – era como “uma cena bíblica, com os crentes simples tentando tocar nas vestes de um santo profeta e conquistar a redenção”. Disse um velho maori: “A missão da vida de Opo é a de unir todas as pessoas, todas as raças, em paz e amizade.”
Muitas vezes pensei nisso à noite, quando as multidões haviam ido embora e Jill nadava sozinha, no escuro, com Opo.
Eu gostaria, no entanto, que alguns de nós se tivessem dado ao trabalho de reler o que aconteceu na cidade colonial romana de Hipona, na África do Norte, há quase 2.000 anos. É o único outro caso que a história registra de um golfinho selvagem ter-se tornado amigo de toda uma comunidade – e de a ter modificado. Como Plínio, o Velho, conta sobre Hipona, na sua História Natural, o golfinho. Como o de Opononi, atraiu gente de quilômetros de distância. Todas as autoridades provinciais que vinham testemunhar o fato tinham de ser recebidas e festejadas. Hipona não tardou em perder suas características de paz e tranqüilidade. No fim, os habitantes da cidade tiveram de livrar-se secretamente do animal.
Opononi revivia no Pacífico Sul a história de Hipona. Embora a maioria das pessoas da aldeia, os comerciantes principalmente, estivessem felizes com a invasão, havia quem se ressentisse das mudanças acarretadas pelo golfinho.
No dia 8 de março de 1956, um dia antes da minha volta à cidade, fui dizer adeus a Opo, mas não a encontrei. Saí de lá meio desapontado.
Opo foi encontrada morta no dia seguinte, seu corpo preso às rochas. Nunca se soube exatamente de que morreu, mas muitos, talvez a maioria da população local, achavam que Opo tinha sido morta para pôr fim ao paralelo com Hipona.
O corpo de Opo foi trazido para a praia, em meio a crianças e maori que choravam. O governador-geral, Sir Milloughby Norrie, mandou um telegrama de pesamos. Algumas bandeiras adejavam a meio pau. Dois dias depois, Opo foi reverentemente enterrada numa funda cova aberta por velhos soldados. A cerimônia foi celebrada por maori. Palavras cristãs foram pronunciadas.
Para mim, ainda não era o fim. Depois de uma dúzia de anos e seis livros publicados, eu ainda não escrevera uma palavra sobre Opo. Aquele verão parecia-me mais um sonho que uma recordação, algo à parte. Difícil acreditar que jamais tivesse acontecido. Um dia, num mundo enfermo de guerras e poluição, o golfinho reapareceu para me perseguir. Estaria querendo dizer que o homem dever lembrar-se, antes que seja tarde demais, de que ele é apenas irmão de toda a criação, da ave que voa e das folhas das árvores?
Fiz então a única coisa possível. Tentei apreender a verdade de Opo na minha novela, O verão do Golfinho.
No verão passado, então, descobri que não era apenas o meu conto de fadas. Voltei a Opononi pela primeira vez, como se uma dívida tivesse sido saldada. É de novo uma aldeia tranqüila, suas praias claras batidas por águas preguiçosas. Algumas coisas mudaram. O velho prédio colonial que abrigava o bar foi destruído por um incêndio; o novo bar é uma coisa sem caráter. O túmulo de Opo está no meio da aldeia, sempre com flores. Ali perto há uma estátua de um menino com um golfinho. Opononi tornou-se lugar de peregrinação para milhares de pessoas que jamais viram Opo movendo-se magicamente com humanos.
Fiquei ali parado, o olhar perdido no mar. “Conta a história do golfinho, mamãe...” ouvi uma menininha pedir. “Conta a história do golfinho que vivia aqui.” “Bem”, disse a mãe, “era uma vez...”
E a história começava de novo.

sexta-feira, julho 21

Papai sabe tudo?

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1974
Autor : Will Stanton

Na escola de nossos garotos, os prêmios de fim de ano são constituídos por : Medalha de Ouro, Medalha de Honra e menção Honrosa. Estávamos visitando alguns amigos, no outro dia, quando por acaso fiz referência à Menção Honrosa ganha por Roy.
“É mesmo?”, disse Al. “Curtis também ganhou Menção Honrosa há alguns meses. Por causa disso, está sem ver televisão até hoje, de castigo.”
Isso me pareceu a princípio meio irracional, até descobrir que aquela era a primeira vez que Curtis não havia ganho a Medalha de Ouro. Que caque, heim? Como eu disse a Maggie no caminho de volta para casa: “Se há uma coisa que eu não suporto é ver pais se gabando de seus filhos.”
“O que esses prêmios provam, afinal de contas?” “Prefiro ter garotos normais e saudáveis, como os nossos. O único problema deles é que são vagabundos. Não há razão para que não ganhem Medalhas de Ouro todo ano. Quer saber de uma coisa? A partir de agora, eu próprio vou passar a fazer os deveres de casa com eles todas as noites!”
No dia seguinte, depois do jantar, chamei os meninos e disse que queria ver os deveres de casa. “Se Curtis pode tirar nota 10 em todas as matérias, não há razão para que vocês não possam.”
Sammy respondeu que Curtis era um boboca e que passava a vida estudando. “Pois eu gostaria que vocês fossem tão bobocas como ele”, acrescentei.
“Vamos ver o que vocês sabem de história”, sugeri. “Quem foi Cristóvão Colombo?”
Eles responderam que Colombo era “um cara que tinha descoberto algo há cerca de mil anos”, e isso era tudo. Assim, tive de contar-lhes a respeito de todas essas viagens e de como Colombo pensava que havia descoberto a Índia. “Ele queria provar que se podia atingir o Leste, navegando-se para Oeste”, expliquei.
“Que coisa mais burra!” disse Roy. “È como dar a volta ao quarteirão para se chegar á casa do vizinho.”
“Ou circundar a casa só para se chegar à cozinha”, acrescentou Sammy.
“Chega!”, berrei. “Se fossem menos engraçadinhos, talvez tirassem melhores notas. Aposto que Colombo nunca foi reprovado em geografia.”
“É possível”, disse Sammy, “mas aposto também que ele nunca teve uma professora ranzinza como a nossa.”
“Não mudem de assunto. Os marinheiro de Colombo pensavam que a Terra era plana e que, quando o navio chegasse na beiradinha, se despencaria lá para baixo.”
Sammy não acreditou. Roy concordou. “Ninguém pode ser tão burro para acreditar nisso. Se o navio caísse quando chegasse na beiradinha, o mar também cairia e não haveria mar.”
“Nós sabemos disso”, expliquei, “mas eles não sabiam. Não faziam a menor idéia de que o mundo era redondo.”
“Qual é a diferença?” perguntou Sammy. “Se você entornar água numa mesa, ela se derramará pelo chão, quando chegar na beirada. O mesmo acontece com o mar.”
“Isso mesmo, disse Roy. “Se o mar continuasse entornando todos aqueles anos, para onde iria?”
“Eu não disse que ele ia para lugar nenhum”, respondi.
“Mas tinha de ir. É por isso que um mundo plano nunca daria certo”, sentenciou Sammy.
“Está bem, está bem”, tive de admitir. “Agora contem-me o que sabem sobre Colombo.”
“Bem”, arriscou Roy, “ele pensava que a América era a Índia, por isso chamou os seus habitantes de índios, na viagem de volta, afundou a nau Santa Maria e o dia 12 de outubro passou a ser comemorado.”
“Chega de história por hoje”, suspirei já farto de tanta bobagem.

Os meninos não tinham muitos problemas com matemática, exceto numa ou noutra questão de terminologia. “Vamos começar”, anunciei.
“Suponham que 42 escoteiros estão indo a uma festa em sete carros. Quantos escoteiros em cada carro?” Seguiu-se um longo silêncio. “Sammy, não me diga que não sabe dividir 42 por sete?”
“Claro que sei”, respondeu, “mas como se consegue dividir escoteiros por carros?” O professor deles vivia lhes dizendo que não se podem subtrair pêras de maçãs. Tive de dizer-lhe que ele não estava subtraindo; estava dividindo, e isso era muito diferente. Ele reconheceu que talvez a coisa funcionasse com carros, mas não com ônibus. “Não seja ridículo”, ameacei. Ele continuou insistindo. “Está bem”, concordei, “Passe-me um problema que eu irei fazer tudo para tentar resolve-lo.”
“Suponha que 393 crianças vão a um jogo em 20 ônibus. Quantos irão em cada ônibus?”
“Essa é fácil”, respondi. “Vinte para 39, igual a 19, noves fora...”
“Espere aí!” interrompeu Sammy. “São 20 ônibus e 393 crianças. Você não pode subtrair.”
Olhei para o papel. O garoto tinha razão. Se você subtrair ônibus de crianças, termina com o que? Peguei o lápis e ataquei de novo o problema. “São 19 em cada ônibus, e ficam 13 de fora.”
Sammy me olhou espantado e perguntou: “Quer dizer que 13 crianças não podem ir ao jogo?”
Roy disse que talvez as mães delas as levassem de carro, Sammy resmungou que isso era injusto, se todas as outras iam de ônibus. Roy sugeriu que alugassem outro ônibus. Levei um minuto para calcular. “Assim vão 18 em cada ônibus e 15 ficam de fora.”
“Está piorando cada vez mais”, disse Roy.
“A culpa é dessa aritmética maluca”, comentou Sammy.
“Não ponha a culpa na aritmética. Como vocês sabem, ela não falha”, tentei argumentar. Sammy disse que isso não bastava.
Mais tarde, ele veio me dizer que já tinha resolvido o problema: “Basta pedir emprestados mais seis garotos de algum outro problema e alugar outro ônibus”. Mandei-o para a cama.

Certa tarde, eu estava dando uma olhada no livro de ciências de Roy e decidi experimentar um de seus ensinamentos. O primeiro envolvia o princípio das roldanas. Atarraxei o apontador de lápis na janela da cozinha, tirei a tampa e amarrei a ponta de uma corda no seu eixo e a outra ponta num balde no chão. Então mostrei aos meninos como levantar o balde girando a manivela. “Grande coisa”, comentou Roy, “içar um balde vazio.” Respondi: “Está bem, vamos içar um cheio.” Sammy queria enche-lo com água, mas fui contra a idéia. “Ache alguma coisa que não faça bagunça, se entornar.”
Roy encheu o balde com alguns livros de culinária e Sammy pôs um imenso cacho de bananas em cima deles. Estava bem pesado.
Roy começou a girar a manivela, a corda se retesou, o balde virou e o apontador saiu fora. “Olhe só”, disse Sammy, “a coisa funciona.”
“É!”, admitiu Roy, “mas quantas vezes na vida você precisa arrancar um apontador da parede?”
“Vocês não estão entendendo nada”, respondi. Peguei alguns parafusos mais fortes e atarraxei o apontador na parede, mas agora com firmeza. Desta vez deu tudo certo. Deixei os garotos se distraindo com a manivela. Um minuto depois, Sammy me chamou para ir ver o que tinham inventado. Aproximei-me para olhar. Ele havia içado o balde o mais alto que podia e o estava segurando.
“E daí?”, perguntei.
“Inventamos um apontador automático”, disse Roy. Enfiou um lápis no buraquinho, Sammy soltou a manivela, e o balde desceu como uma bala – sobre o meu pé.

Quando Maggie chegou em casa, vinda das compras, quis saber por que eu estava mancando. “Os garotos estavam tentando me ensinar como se pode machucar o pé no apontador de lápis automático e o balde caiu em cima do meu pé.”
“Um balde vazio?”, ela perguntou. “Não, cheio”, respondi. “Cheio de que?”, ela quis saber. “Ora, cheio de livro de receitas e bananas.”
Ela interrompeu o que estava fazendo e olhou para mim. “Hoje em dia não se está a salvo nem em casa.”
Fui ajuda-la com as compras.
“Não acha que pode estar tentando ajudar demais os rapazes?”, perguntou. “Quero dizer, eles podem se tornar demasiado dependentes.”
Contemplei por alguns instantes uma caixa de cereais. “Maggie, sabe o que decidi fazer? Vou ensinar os rapazes a caminhar com os próprios pés – a pensar por si próprios. Vou deixa-los fazer seus deveres de casa exatamente como meu pai sempre me deixou fazer os meus.”
“Boa idéia”, concordou Maggie.

quarta-feira, julho 19

Uma questão de honra

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1971
Autor : Allan Sherman

Honra! Parece perdida. É raro estudarmos sobre Honra no colégio, porque a Honra não pode ser medida, pesada em balança nem contada em notas ou moedas. A Honra tornou-se coisa de trouxas. A Honra é para os ingênuos, os quadrados, os idiotas – uma relíquia infantil dos tempos do Rei Artur e Dom Quixote. Mas será mesmo?
Considerem estas histórias reais, escolhidas ao acaso.

Uma esquadra de banheiras
No dia 26 de maio de 1940, quando os exércitos de Hitler devastavam a França, dezenas de milhares de soldados ingleses e franceses recuaram até o pequeno porto francês de Dunquerque. Além de Dunquerque não havia para onde ir a não ser para dentro do Canal da Mancha.
A poderosa Marinha inglesa possuía poucos navios suficientemente pequenos e ágeis que pudessem se aproximar para evacuar os homens. Nada restava ao Mundo livre a não ser sentar-se ao pé do rádio para aguardar com frustração e angústia a notícia de que esses vastos exércitos de homens corajosos tinham sido aniquilados.
Então, nas primeiras horas da madrugada do dia 27 de maio, um milagre começou a se desenrolar. De todos os recantos das Ilhas Britânicas eles surgiram – pobres pescadores em seus barcos caindo aos pedaços, nobres em seus iates, desportistas em barcos de corrida e lanchas a motor. Os primeiros componentes dessa esquadra heterogênea, capitaneada por homens desprovidos de armas ou de uniformes, levantaram âncoras ao luar em Sheerness e prosseguiram através das águas infestadas de minas e de submarinos. Quando o Sol da manhã brilhou sobre as praias de Dunquerque, as primeiras das centenas de embarcações atracaram nas praias. Os vivas dos soldados encurralados foram abafados pelos estrondos da Luftwaffe castigando e bombardeando a praia, e pelas metralhadoras dos Spitfires ingleses tentando rechaçar os aviões inimigos.
Debaixo daquele inferno nos céus, o milagre de Dunquerque prosseguiu durante nove dias e nove noites. Ao todo foram salvas 338.226 vidas inglesas e francesas.
No dia 18 de junho, Winston Churchill declarou: “Preparemo-nos, pois, para cumprir nossos deveres e para nos comportarmos de tal modo que, se o Império e a Comunidade britânicos ainda perdurarem por mil anos, os homens ainda digam : Essa foi a sua melhor hora.”
Para os homens da Esquadra de Banheiras de Sua Majestade, a melhor hora de todas – a hora de maior honra – desenrolou-se nas praias de Dunquerque.

Um coração aberto
Minha tia Edith, viúva de 50 anos, trabalhava como secretária quando os médicos detectaram o que era então geralmente considerado uma lesão cardíaca muito grave – um aneurisma.
Tia Edith não se deixa abater facilmente; começou a estudar relatórios médicos na biblioteca. Encontrou uma nota numa revista a respeito de um famoso cardiologista e cirurgião, o Dr. Michael DeBakey, de Houston, Texas, que tinha salvado a vida do Duque de Windsor. O artigo dizia que os honorários do Dr. DeBakey eram astronômicos; tia Edith não podia alimentar a menor esperança de contratar os seus serviços. Mas talvez ele recomendasse alguém cujos honorários ela pudesse pagar.
Tia Edith escreveu-lhe. Ela simplesmente enumerou as razões que faziam desejar continuar a viver: seus três filhos, que dentro de mais três ou quatro anos estariam independentes; seu sonho de menina de viajar e conhecer o mundo. Não havia uma única palavra de autocomiseração; apenas calor e humor e a alegria de viver. Ela enviou a carta, sem esperar realmente receber uma resposta.
Alguns dias mais tarde, a campainha da minha porta tocou. Tia Edith não esperou para entrar, ficou em pé na entrada e leu em voz alta:
Sua linda carta tocou-me profundamente. Se puder vir a Houston, não terá despesas com o hospital nem com a operação. Assinado – Michael DeBakey.
Isso foi há sete anos. Desde então, tia Edith já fez a volta ao mundo duas vezes. Seus três filhos estão bem casados. Para a idade dela é uma das pessoas mais jovens e cheias de vida que eu conheço, e tudo por causa de um cirurgião magnânimo que soube honrar sua profissão e abrir o seu próprio coração.

A costureira teimosa
No dia primeiro de dezembro de 1955, a Sra Rosa Parks tomou um ônibus no centro de Montgomery, Alabama, pagou a sua passagem e sentou-se na parte da frente da seção negra no fundo do carro. Era bom sentar-se após um longo dia de trabalho. Na parada seguinte, porém, o motorista ordenou aos negros que chegassem mais para o fundo do carro para darem lugar a uma nova leva de passageiros brancos.
Todos menos um dos negros desocuparam obedientemente os seus lugares.. Rosa Parks vacilou. O ônibus agora estava cheio; se ela se levantasse teria de viajar de pé até em casa. Um homem branco, à espera do seu assento, encarava-a impacientemente.
Naquele instante houve um estalo no íntimo de Rosa Parks. Talvez sua alma estivesse farta de tantas humilhações; talvez fossem apenas os seus pés cansados. Fosse o que fosse, a costureira recusou-se a ceder o seu lugar.
Passageiros negros e brancos olhavam fixamente para a criadora de caso. O motorista do ônibus chamou um policial. A Sra Parks foi presa.
Os 17.000 negros de Montgomery ficarm enraivecidos. Alguns queriam violência. “Queimem os ônibus, virem os ônibus.” Outros se mantiveram controlados. Auxiliados por um pregador de 27 anos que se inspirara nas técnicas da não violência de Mahatma Gandhi, eles organizaram um boicote à linha de ônibus.
O boicote durou 380 dias e custou à companhia de ônibus milhões de dólares. Finalmente, a Suprema Corte americana decidiu que a segregação nos ônibus violava a Constituição. Rosa Parks agora poderia sentar-se em qualquer lugar num ônibus. Embora a maioria já a tenha esquecido, a revolução iniciada por ela transformou a América do Norte.
No entanto, para o pregador desconhecido não havia mais retorno ao anonimato. Martin Luther King Jr. Tinha um sonho. E o mundo – pelo menos em parte por causa de Rosa Parks – estava finalmente pronto a honrar esse sonho, e a escuta-lo.

Todos os meios necessários
No dia 13 de abril de 1970, a cápsula espacial Apolo 13 sofreu uma explosão nos tanques de oxigênio a caminho da Lua. Por causa do acidente, os funcionários tiveram de avaliar o estado da nave espacial para determinar o melhor momento para o regresso e o ponto de descida. Naquelas horas de dúvidas e frustrações, com a vida de três homens corajosos em jogo, 26 nações ofereceram a sua ajuda. Este é um trecho de um dos telegramas enviados ao Presidente Nixon:
“Desejo informar-lhe que o Governo Soviético instruiu as autoridades civis e militares da União soviética para lançarem mão, caso necessário, de todos os meios possíveis para assistirem ao salvamento da vida dos astronautas americanos.”
Estava assinado: Alexei Kosygin, Primeiro-Ministro da U.R.S.S.

....Atos de Honra, todos eles. Qual é a sua essência? Que qualidades compartilham? Estas:
Um momento de verdade. Em cada um dos casos alguém reconheceu que havia algo errado, e estava disposto a enfrentar o fato.
O risco do sacrifício. Tomar uma atitude honrosa sempre implica num sacrifício, seja de tempo, dinheiro, reputação, conforto, segurança – ou da própria vida.
Integridade. A Honra requer do indivíduo que ele aja em particular da mesma maneira que agiria em público. Significa manter-se coerente consigo mesmo.
Amor. Junto com a Honra vem o sentimento de pertencer à Família Humana, e com tamanha intensidade que é capaz de apagar todas as diferenças.

Abraão Lincoln descreveu Honra há muito tempo:
Desprovida de malícia contra quem quer que seja, com caridade para todos, com firmeza quanto ao direito assim como Deus nos permite ver o que é direito.

terça-feira, julho 18

Outra História de amor

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1971
Autor : Loudon Winwright

Bem no meio de um fim-de-semana longo de Ano Novo, cheio de sol sobre a neve linda, nosso cachorro morreu. Mais precisamente, mandamos que sua vida fosse extinta por um veterinário que concordou que aquilo era o que se devia fazer por um animal velho que padecia de um mal tão doloroso e incurável. Nunca tive uma noção tão clara da tênue linha entre agora e nunca mais quanto tive ao segura-lo naquela mesa do veterinário.
Um tanto perturbado por meus sentimentos, e por alguma estranha razão pensando não em Lassie, mais em Love Story, vou arriscar uma versão da pergunta que abre o romance de Erich Segal: que se pode dizer de um cachorro de 11 anos e meio que morreu? Que ele não era nada inteligente. Que sujava tudo quando comia. Que reluzia quando corria a velocidades maravilhosas pelos campos, rolava rosnando pela neve e saltava sobre muros de pedra, uma mancha viva cor de castanha. Que não ligava muito para Mozart e Bach, mas que os solos de violino e de acordeão o faziam uivar. Que quebrava seis copos com uma rabanada. Que, quando eu lhe perguntava que lugar eu ocupava entre as pessoas de quem ele gostava, ele batia o rabo no chão e sorria.
Havia uma qualidade totalmente não humana no seu amor. Quase todo mundo era um alvo aceitável para o seu afeto e, ao contrário desses animais de um só dono, que lambem a mão do dono e logo esquartejam o filho do vizinho, ele não ameaçava nada.
Não que ele não soubesse escolher. Ele era meio setter irlandês e meio cão de busca dourado e não era nenhum vagabundo. Não acompanhava estranhos. Suas investigações diárias, embora cobrissem grandes extensões, quase sempre o traziam de volta a casa, à noite. Gostava de dormir nos tapetes, geralmente onde era provável que a gente tropeçasse nele. Gostava de andar de automóvel. Mais que tudo, gostava de ser convidado para passeios a pé e trabalhava como um guia avançado em volta do caminhante – na frente, atrás, ao lado, às vezes numa corrida louca a boa distância – e no inverno, quando descansava de uma dessas admiráveis arrancadas em todas as direções, quebrava o gelo num riacho para refrescar a barriga e a língua.
Em quase todos os estados de espírito menos a alegria, ele era de uma tranqüilidade exemplar. Uma paciência calma, de olho arregalado, caracterizava seu estilo. Com os outros cães ele era alerta e atirado, mas não agressivo, e, embora seu pêlo se eriçasse maravilhosamente e ele rosnasse bem, quando desafiado, tinha uma aptidão notável para evitar lutas e sabia escapar de uma briga com uma displicência que sugeria que aquilo não valeria a pena. No fim da vida, ele foi maltratado por um cachorro muito mais jovem e mais forte, na mesma rua, mas aceitava aquela indignidade como se fosse normal que o cachorrinho que ele antes tinha ensinado a brincar agora abusasse dele. Mesmo quando ficou bem fraco e velho, sempre saia correndo para defender seu território.
Espero que ele tenha tido uma vida sexual cheia e feliz, mas só sei de um caso seu, quando ele foi pai de uma ninhada. Contamos uma história a respeito dessa ligação arranjada ( não sei mais ao certo se é inteiramente verdade ): John Henry foi levado de carro ao veterinário para um encontro supervisionado. Depois o veterinário disse que ele tinha certeza de que tudo dera certo, mas que talvez, para garantia, os dois devessem ser reunidos novamente. Então, no dia seguinte, nosso cachorro foi posto no carro e conduzido a seu encontro, que foi novamente considerado bem sucedido. O caso foi declarado consumado e encerrado. O cachorro voltou para casa. No dia seguinte, foi encontrado no carro, provavelmente aguardando outra viagem e outro encontro.
Ao contrário da personagem condenado de Segal, ele não era perfeito. De vez em quando seu gosto em matéria de comida voltava-se para o lixo e ele derrubava latas, em busca dos melhores bocados. Cavava buracos nos gramados e gostava de deitar-se sobre plantinhas novas. Era um descobridor de lama. Quando encontrava alguma coisa – muitas vezes invisível e até inexistente – para a qual latir, latia alto e ignorava completamente as ordens de parar e voltar para casa. Orgulho-me de uma parte de sua ignorância. Não sabia truque algum, a não ser uma espécie de aperto de pata meio desenxabido que ele usava como último recurso em sua busca perpétua e animada de carinho.
Nos últimos dias ele tinha grande dificuldade em levantar-se. A dor, mesmo disfarçada por comprimidos, deixava-o estúpido de exaustão e tornou-se claro, apesar de toda a nossa relutância, que o que ele precisava mais era de um empurrão para fora da vida.
Na noite depois que aquilo aconteceu, sonhei que meu filho o estava chamando. O menino tinha um jeito de chamar o cachorro. Acordei. A vida acabava sendo uma sucessão de cachorros, pensei, e pensei naqueles de que me lembrava.
De repente, fantasmas na casa. Cachorros velhos. Dormi e quando acordei de novo, à meia-luz mortiça, tive quase certeza de ouvir unhas arranhando o chão da sala e seu latido discreto indicando que queria sair. Não hei de viver com muitos outros cães, e jamais hei de viver com outro cão como ele.

segunda-feira, julho 17

O Beija-flor que chorava

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1979
Autor : Gladys Francis Lewis

Pacientemente, eles cuidaram do beija-flor sem cauda, perdido e infeliz. Depois ele partiu, deixando-os com as recordações de um tempo maravilhoso.

Foi uma tarde do outono de 1971 que meus vizinhos Carl e Wilma Merger, trouxeram para casa o pobre órfão dentro de uma caixa de sapatos. Tendo perdido as penas da cauda em algum acidente na floresta, o beija-flor era um pequenino ser perdido e infeliz. Os Merger olhavam para ele quando de repente ouviram uns suspiros muito débeis vindos daquela minúscula garganta, parecendo soluços de uma criança cansada de chorar.
“Incrível!”, disse Wilma em voz baixa. “Este montinho de penas com um coração deste tamanhinho está soluçando!” Colocou-o na palma de sua mão e levantou-o à altura dos olhos, apertando as penas macias de encontro ao rosto. Nesse momento o pequeno animalzinho deu um último soluço e quedou-se como se já não tivesse vida.
Com muito cuidado Wilma mergulhou o bico do beija-flor num prato de mel. Imediatamente ele disparou sua comprida língua em forma de tubo e começou a se reanimar. Pouco depois Honey ( “Mel”, como os Merger logo o chamaram ) já estava recuperado e começou a explorar o apartamento do casal em Toronto, esvoaçando desajeitadamente sem a cauda estabilizadora.
Honey gostou francamente da casa dos Merger, cheia de plantas, banhada pelo sol e onde não havia gatos. Carl e Wilma, ambos aposentados por sofrerem de males cardíacos, sentiram-se conquistados. Foi assim que começou uma história de amor entre duas simpáticas pessoas e uma “amostra” de avezinha que pesava exatamente dois gramas.
Toda a história tinha começado realmente no princípio do verão, quando a irmã de Carl lhe pedira insistentemente que tomasse conta de outro beija-flor ferido. “Encontrei-o sem uma asa, se batendo por aí como um doido”, explicou ela. “Você adora pássaros, Carl. Não quer tratar deste?”
“Uma vez eu criei um papa-figos”, admitiu Carl. “Mas um beija-flor! Eles vivem de néctar. Como é que a gente iria alimenta-lo?”
Os Merger telefonaram então para os Windinglane Sanctuary, hospital de aves feridas que ficava nos arredores de Toronto, para pedir conselhos. Os veterinários recomendaram uma dieta de mel diluído e pasteurizado e gema de ovo bem cozida. Os Merger dedicaram-se tão entusiasticamente a criar o beija-flor que pouco tempo depois o Sanctuary lhes enviou um outro passarinho desses ferido.
Nenhum deles sobreviveu aos ferimentos, mas Honey tinha uma possibilidade: se conseguisse resistir ao cativeiro o tempo suficiente para que lhe crescessem as penas da cauda, talvez pudesse voltar à liberdade.
Para os Merger, condicionados por anos de doença a se agarrarem às menores esperanças, tratava-se de um verdadeiro desafio. Leram tudo o que havia à disposição. Aprenderam que um beija-flor pode voar a mais de 100km/h, que suas asas batem cerca de 75 vezes por segundo e que ele tem de ingerir alimento aproximadamente de 20 em 20 minutos para compensar a fantástica energia gasta por seu pequenino corpo – exceto nos vôos migratórios de ida e volta às Américas Central e do Sul, durante os quais se alimenta de reservas de gordura armazenada em seu corpo, durante a noite, quando atinge um estado semicomatoso. Aprenderam também que o beija-flor é um grande conquistador – acasalando com uma fêmea para abandona-la a seguir e ir conquistar outra e mais outra.
Wilma, sendo nutricionista, dedicou-se ao problema da alimentação da ave. Estudou e preparou alimentos alternados como mel diluído em água, gema de ovo em suspensão em hidromel e “pão de abelha”, rico em pólem, que vinha de uma colméia. Quanto às vitaminas e minerais, consultou o farmacêutico, que troçou dela: “Vitaminas para um beija-flor? Nunca ouvi falar em semelhante coisa!” Mas não deixou de arranjar umas vitaminas em gotas, para bebês, um pouco de cálcio e comprimidos de ferro. Wilma adicionou um bocadinho de cada coisa ao hidromel.
Até então ela dera banho no beija-flor com as próprias mãos, o que se tornou particularmente necessário no dia em que Honey chafurdou alegremente na colher de chá do seu tratamento especial: era geléia de maçã. Mas certo dia eles repararam que Honey batia muito as asas, espojando-se numa planta da sala.
“Mas claro!” exclamou Carl. “Ele gosta de tomar banho mas é à sua maneira, numa folha coberta de orvalho.” E a partir daí passou a borrifar com água essa planta todas as manhãs. Honey, batendo as asas, tomava sua chuveirada com as gotas de orvalhos das folhas.
Para essa ocasião o hospital de beija-flores dos Merger era assunto de todo o prédio. Por vezes eu entrava um pouco para assistir às abluções matinais, depois das quais Honey se enxugava à janela, ou, nos dias sem sol, debaixo de uma lâmpada. Sua plumagem recompunha-se rapidamente. A dieta estava dando resultado. Em janeiro Carl anotou em seu diário: “A cauda de Honey principia a crescer.”
Passado pouco tempo Honey começou a curtir a descoberta de novas habilidades. Brincando lançava a língua sobre partículas de pó iluminadas por um raio de sol e planava por cima do tapete verde, fazendo voar pedacinhos de linha, tentando instintivamente retirar insetos daquela “erva” tão esquisita.
Desde o princípio os Merger evitaram mimar o beija-flor, e Carl deixou todo o tratamento a cargo de Wilma. Pensaram que, quanto menos Honey dependesse dos seres humanos e menos neles confiasse, maiores seriam as possibilidades de sobreviver em liberdade quando chegasse o momento de soltá-lo. O animalzinho, porém, sabia muito bem o que queria; tanto assim que começou a se comunicar tão obviamente como se soubesse falar.
Um dia Wilma apresentou-lhe inadvertidamente um ovo batido numa hora em que costumava dar-lhe hidromel; ele o provou e lançou-se direto sobre o rosto dela. O bico de um beija-flor é afiado como uma agulha e estes pequenos passarinhos não temem coisa alguma. Atacam quem quer que os provoque, seja um marimbondo, um corvo – o que for. “Se o beija-flores fossem tão grandes como sua coragem”, escreveu certa vez um naturalista, “os lugares que eles freqüentam não seriam seguros para ninguém.”
No entanto, embora Honey já se tivesse algumas vezes lançado furiosamente sobre a gaiola do periquito dos Merger, com seres humanos só demonstrava simpatia, e por isso Wilma nem se mexeu. Honey freou, esvoaçou indecisamente e começou a dar-lhe bicadinhas à volta da boca, nas bochechas e na testa, mas nunca nos olhos. A mensagem era muito óbvia. Poderia a pessoa humana lhe dar o alimento certo? Foi o que Wilma fez, e o incidente terminou com Honey comendo tranqüilamente – a primeira de muitas demonstrações suas de inteligência e afeto.
A deficiência cardíaca de Wilma exige que ela descanse 90 minutos todas as tardes. Mal ela acabava de se deitar, Honey ia aninhar-se na cova de seu pescoço, muito satisfeito. Logo que descobriu que ela geralmente ficava acordada na última meia hora de repouso, embora continuasse deitada, passou a esvoaçar inquieto até ela se levantar.
Uma vez Honey voou até o banheiro, ficou muito espantado com os espelhos e foi de encontro a um deles. Wilma ouviu seu débil piar de aflição e correu para lá, indo encontra-lo agarrado a um suéter pendurado na porta. Embora não tivesse sofrido nenhum ferimento grave e pouco depois já pudesse mover-se à vontade, naquele momento ele parecia não conseguir voar com a vivacidade de outrora. Os Merger consultaram seus livros e decidiram pôr caldo de concentrado em seu hidromel, para lhe acrescentar proteínas. Prudentemente Honey provou a mistura e sacudiu a cabeça. Voltou a dar um golinho e pareceu refletir. Abanando energicamente a cabeça, voou direto para o rosto da Wilma e começou a habitual cena de bicadinhas – em volta dos lábios, das bochechas e da testa, mas sempre delicadamente. Era a maneira de ele declarar que detestava aquele caldo horrível.
Carl lembrou-se de que seu papa-figos conseguira sobreviver comendo bichinhos – fontes de proteínas naturais. Percorreu os mercados de frutas pedindo aos vendedores “as bananas mais podres” que tivessem; mas nem mesmo as bananas mais escuras tinham insetos. Por fim um amigo seu que trabalhava num departamento universitário de biologia deu-lhe um precioso frasco cheio de insetos de fruta e ensinou-lhe a fazer uma cultura para criar mais.
A cozinha dos Merger transformou-se num laboratório para alimentar tais insetos. Todos os dias Wilma soltava alguns e, mal Honey ouvia o tinir do frasco, punha-se logo em movimento para ir caçar suas pequenas presas.
Com a chegada da primavera, o beija-flor, como qualquer jovem cheio de vida, queria adiar a hora de ir dormir enquanto houvesse luz. A única maneira de pô-lo para dormir era atraí-lo com comida até a gaiola e depois fechar a porta com um fio muito comprido. Talvez ele sentisse também necessidade de acasalamento porque já estava quase adulto. Na verdade, até então os Merger não tinham certeza se ele era macho, mas agora já não restavam dúvidas – com as pintas vermelho-douradas e amareladas que lhe apareciam à volta do pescoço alastrando-se até formarem uma mancha lustrosa cor de rubi.
Em maio o casal levou Honey para sua casa de campo e, chegados lá, a primeira coisa que Carl fez foi pôr na janela um raminho de bálsamo para Honey. Este ficou deliciado e voava livremente em volta da casa, voltando sempre. Uma porta deixada aberta por acaso já não constituía tentação. Só quando o pequeno sobrinho de Carl lhe mostrou timidamente um dente-de-leão à distância de um braço é que algo adormecido no fundo de Honey pareceu acordar. Durante muito tempo a avezinha pairou sobre a flor, parecendo querer sorver a sua essência, e com ela a consciência do mundo natural.
Nessa primeira tarde no campo, o sol poente banhou-o com seus raios. O fogo da luz em seu corpo produzia um surpreendente espectro de cores – dourado, vermelho, safira, verdes iridescentes. A beleza do beija-flor, outrora um pequenino ser esgotado e soluçante, era agora digna de se admirar.
Durante o quente mês de julho os Merger foram várias vezes ao Windinglane Sanctuary para que Honey se habituasse gradualmente com a vida em plena natureza. Enquanto Honey sugava lilases, os Merger lanchavam ali por perto, observando-o ternamente. Até que, numa tarde ensolarada, repararam que ele tardava em entrar na gaiola, parecendo ter-se apercebido daquele mundo simultaneamente novo e antigo, acolhedor e familiar, e experimentando a excitação de anteriores formas de vida. Era o período do acasalamento e das migrações, sentindo-se uma vida nova no ar. Wilma sussurrou: “Acho que ele decidiu qualquer coisa.” O beija-flor então voou resolutamente para uma moita de lilases, sugando as flores. Subiu no ar, elevando-se cada vez mais alto, apanhando insetos em vôo. Depois foi-se: passou pelos salgueiros, ergueu-se acima dos pinheiros e confundiu-se com o azul do céu.
Os Merger esperaram em silêncio, e então voltaram para seu apartamento vazio. Sempre souberam que o pequeno animal teria de partir. Nada havia a fazer. Aquilo era um pouco como perder um filho.
Voltaram três vezes a Windinglane, e sempre viram um beija-flor ( Honey, com certeza ), mas não tentaram chamá-lo. Ele parecia feliz e adaptado à vida na natureza.... pois na última visita apareceu com uma companheira.
Nessa noite os Merger foram para casa satisfeitos. Tinham devolvido a Honey sua vida livre e natural. Em troca ele lhes dera os meses mais deliciosos de suas vidas.

quinta-feira, julho 13

O intrépido e engraçado Bassê

Fonte : Revista Seleções
Data : Maio de 1984
Autor : Wofgang Feucht

Astuto, inteligente, corajoso, este animalzinho conquista corações

Lumpi havia acabado de completar um ano de idade quando começou a levar sua dona à loucura. Sempre que ela enchia a banheira, o peludo diabinho pulava dentro dela e transformava-se num golfinho que latia furiosamente, jogando água para todo lado. Num instante transformava o chão do banheiro num lago. Lumpi sempre arranjava um jeito de entrar no banheiro no momento errado.
Nenhuma outra raça canina teria travado esta divertida “guerra de banheira” com tanta perseverança e endiabrada esperteza; e nenhum outro cachorro teria sido tão obstinadamente encantador, pois eles são mestres em misturar palhaçadas com ternura.
O estranho formato do bassê alemão ( Dachshund – lê-se “dáks-rund”) é sua característica mais encantadora: um corpo comprido que anda sobre pernas ridiculamente curtas e atarracadas. Não admira que cerca de meio milhão de cães dessa raça viva nos lares da Alemanha, tantos quanto o pastor alemão, o outro cão preferido nesse país.
Por causa dessa atração, o bassê já criou fama como modelo de publicidade e símbolo de bom humor. Trata-se, na verdade, do animal heráldico extra-oficial da Alemanha, tendo atingido o ápice da fama em 1972, quando tornou-se mascote dos Jogos Olímpicos de Munique.
O bassê, porém, é mais do que um atraente palhaço. Por natureza, é um caçador implacável. Pesando entre 3kg e 9kg, eles desconhecem o medo e ( como verdadeiros Davis dos tempos modernos ) enfrentam até javalis adultos, importunando-os com suas mandíbulas até que o dono chegue para um tiro certeiro.
Há poucos anos seu intrépido coração de lutador foi o traço dominante da personalidade de um vigoroso cachorrinho dessa raça, chamado Zwacki. Levado de trem de Munique, para um teste de comportamento na floresta de Ebersberg, o bassê logo farejou caça. Sentindo o cheiro de rastro fresco, Zwacki perdeu totalmente o auto-controle, disparou como uma flecha, do pinheiral onde se encontrava, e desapareceu na floresta.
A área logo se encheu com os assobios e gritos dos caçadores, que também avisaram as pessoas das propriedades das redondezas para procurarem o cão: mas Zwacki não foi encontrado em parte alguma, nem apareceu para o teste de pista do dia seguinte. Eugen Hesse, o seu dono, desconsolado, ia tomar o trem para a viagem de volta, quando sentiu alguma coisa se esfregando na sua perna direita: era Zwacki, abanando alegremente a cauda. Durante mais de 24 horas ele percorrera os bosques e, por fim, achara o caminho de volta à estação, a 6km da reserva de caça. No dia anterior fora levado para lá de carro!
A extraordinária proeza de orientação de Zwacki nunca foi explicada totalmente. Talvez, no dia da sua chegada, o cérebro do animalzinho tivesse armazenado uma “imagem olfativa” da estação e, com o aguçado nariz de um cão de caça, conseguiu achar o caminho de volta àquele ponto inicial.
Transformar um bassê num caçador de primeira leva uns três anos, e, durante os três seguintes, ele está no auge. Excelente forma física é do que ele mais precisa para descobrir uma toca de raposa, onde encontrará uma antagonista à altura, em matéria de inteligência e rapidez de reação.
O clube de criadores de bassês cavou simulacros de tocas de raposa, de onde o noviço tem de aprender a desalojar uma, mas domesticada, que de início apenas ficará fitando o adversário com ar mal-encarado. Mas se o intruso a azucrinar a menos de 50cm, a raposa muda de tática repentinamente. Mostrando as presas ameaçadoramente, ela investe ferozmente contra o invasor, que deve aprender a escapar das suas mandíbulas.
Estas contendas de treinamento na toca da raposa duram por vezes mais de 10 minutos, com ela fingindo vez por outra bater em retirada, apenas para rosnar na direção do inimigo numa curva mais adiante. Desta maneira, o recruta é levado a pressionar os ataques com ousadia cada vez maior, de modo que não mostre nenhum medo quando tiver de enfrentar o bicho de verdade.
Ele tampouco vacilará em correr atrás do texugo ( Dachs, em alemão), do qual deriva seu nome. Um texugo, porém, pode perfeitamente ser o cruel coveiro do Dachshund: se o cachorro entrar num beco errado da toca do texugo, este rapidamente bloqueia a entrada, e seu perseguidor morre sufocado, a menos que o dono o dono o salve a tempo.
A raça bassê data do século XVI, quando a caça de animais de toca se tornou moda, e os cachorros de pernas curtas eram, por isso, muito procurados. O moderno bassê apresenta-se em três tamanhos: além da variedade comum, há o anão, de 4,5kg, e o Dahshund coelho, de 3kg. Este último é especializado em entrar em estreitas tocas de coelhos, e também possui o mais importante atributo de um bom caçador: pode assediar uma toca, independentemente da ordem do seu dono, o que exige justamente o traço de obstinação que por vezes torna esta raça difícil.
Não que um bassê não possa ser ensinado a portar-se bem, mas é preciso grande dose de paciência e força de vontade para transformar o inimigo de raposas e texugos num cão urbano bem educado, que trote com decoro atrás do seu dono ou dona. Neste papel civilizado, o bassê tem estado no auge da moda nestes últimos 100 anos. A raça é estimada como de vigilantes cães de guarda, como cães de companhia e como cães de caça fácil de tratar.
O treinamento destes baixinhos encontra-se em grande parte nas mãos de criadores amadores. Diz Kurt Kircher, do Clube 1888 de Dachshnds, da Alemanha, em Duisburg: “calculo que uns 50 mil cães nasçam anualmente na Republica Federal, chegando cada exemplar a alcançar de 300 a 500 marcos.” Isso significa que os fãs do bassê alemão estão disposto a gastar de 15 milhões a 25 milhões de marcos pelas ninhadas anuais. Esse cão de endiabrado encanto não fez sucesso apenas na Europa; é encontrado mesmo em regiões remotas da América Central e do Extremo Oriente.
O único ponto fraco de um Dachshund puro é sua espinha alongada. Isso o torna propenso à doença que leva seu nome: paralisia Dachshund. Este termo genérico compreende ainda problemas reumáticos, bem como hérnias de disco. Basicamente, contudo, o Dahshund alemão é um robusto companheiro e, se preciso for, enfrenta até um tigre.
Isso foi provado por Anja von Edertal, uma fêmea de pelo curto. Quando a mãe de um filhote de tigre siberiano, do Circo Barum, se recusou a amamentar seu bebê e até ficou agressiva para com ele, o diretor do circo, Gerd Siemoneit-Barum, decidiu mandar buscar uma ama-de-leite canina. Depois de lançado um apelo urgente pelo rádio, veio uma chamada de um criador de Dahshunds, Gerhard Specht, dono de Anja von Edertal, que acabara de dar à luz uma ninhada.
Anja revelou-se uma mãe-modelo para o pequeno Olaf. Ela lambeu solicitamente aquele monte de pelo rajado, e prontamente aceitou o tigre. Formou-se um duradouro laço entre o felino e sua diminuta mãe adotiva.
Hoje, Olaf é um tigre adulto e uma das atrações do Circo Barum. Mas nunca se exibe com outros tigrões, pois não há nada que mais tema do que tigres. Por outro lado, qualquer cão perdido que descubra interessa-o vivamente. Diz Gerd Siemoneit-Barun: “Olaf sempre se considerará um Dachhund.”
O coração da mãe Dachhund conquistou para sempre a alma do tigre.

terça-feira, julho 11

Um presente do passado

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1971
Autor : Claire Rado de Hedervary

Um gesto generoso praticado 25 anos antes salvou uma prisioneira de Auschwitz da tortura e da morte certa.

No dia 13 de julho de 1944 o trem parou num desvio e um pequeno grupo de prisioneiros políticos desceu com dificuldade. Diante deles havia um portão ornamental com a inscrição Arbeit Macht Frei – O Trabalho Liberta. Além do portão, um vasto campo com milhares de barracas, cercado de arame farpado e telas eletrificadas, torres de vigia dotadas de holofotes, metralhadoras e cães policiais. A única liberdade que se podia alcançar ali era a da morte, porque aquele era Auschwitz – o famigerado campo de concentração nazista na Polônia. Nós éramos o mais recente grupo de prisioneiros a chegar.
Um pelotão de soldados SS de Hitler levou-nos marchando pelo portão. Lá dentro nos ordenaram que tirássemos todas as roupas e as puséssemos em grandes latões. Quem mostrasse a mais leve hesitação era brutalmente espancado.
Fomos levados em fila indiana a um homem vestido com o impecável uniforme de médico militar. Alguns passos atrás dele ficavam seus auxiliares. Era o Dr. Joseph Mengele, chefe dos médicos do campo, um homem alto, esbelto, simpático, e em ótima forma física. Não sabíamos que atrás daquela imagem havia um monstro. Cada homem, mulher e criança que parava nu diante dele era examinado. Depois ele apontava o polegar para a direita ou para a esquerda. Guardas SS empurravam o prisioneiro na direção indicada pelo médico. Os que se apertavam apavorados uns contra os outros à esquerda eram os velhos, os enfermos e os muito jovens. Considerados inaptos para o trabalho, estavam destinados à câmara de gás.
Quando chegou a minha vez o médico examinou o meu corpo e apontou o polegar para a direita. Eu tinha 44 anos, era sadia, portanto ia viver – pelo menos enquanto tivesse forças para fazer trabalho braçal.
Reduzida a um número. Nosso grupo de sobreviventes foi levado a uma mesa onde havia várias agulhas de tatuagem . Olhei entre incrédula e fascinada a operação de gravação de um número em meu braço – 82585. A dor foi pequena, mas senti um pavor crescendo à medida que fui compreendendo o que eles iam fazer – tomar a minha identidade. Fechei os olhos e pensei: “Não sou um número. Meu nome será lembrado como o de um membro do movimento antinazista. Causei mais mal ao seu sistema do que o que você pode me causar. Não sou um número.”
Pouco abaixo do número tatuaram uma pequena figura em forma de coração. (Descobri mais tarde que essa figura indicava que eu era prisioneira política).
Após a operação de tatuagem a nossa nudez terminou. Havia um monte enorme de roupas sujas deixadas pelos que tinham ido para a câmara de gás. Recebemos ordem de apanhar uma blusa, calças e um par de sapatos; tínhamos de fazer isso enquanto éramos empurrados rapidamente pelos guardas. As roupas que apanhei serviram mais ou menos para cobrir a minha nudez, mas não tive sorte com os sapatos. Um tinha salto alto, o outro não tinha nenhum, e ambos eram do pé esquerdo. Mas não me queixei.
Nossa vida entrou numa rotina. Durante o dia fazíamos trabalho pesado de construção – eu transportava areia num carrinho – e à noite dormíamos sobre tábuas em enormes galpões frios. Nossas refeições eram uma sopa rala e, de vez em quando, um pedaço de pão. Começamos a perder peso com uma rapidez alarmante. Todas as noites as chaminés do crematório ficavam vermelhas com as chamas dos que tinham ficado muito fracos e não puderam mais trabalhar.
Cadáveres saqueados. No meu segundo mês, quando éramos levados de volta ao dormitório, uma colega de prisão disse-me baixinho: “A Dra. Winkler quer falar com você.”
Semanas depois ouvi o nome murmurado novamente por outra prisioneira: “A Dra Winkler tem um recado para você. Ela é radiologista do hospital municipal de Budapeste e colabora com o Dr. Mengele em suas experiências.”
Todo o campo sabia dos pormenores das experiências do Dr. Mengele. Ele praticava nos prisioneiros novas técnicas cirúrgicas no coração, fígado e rins; fazia pesquisas de esterilização, utilizando cirurgia e radiologia em homens e mulheres.
O aviso de que a Dra. Winkler tinha um recado para mim ressoava em meus ouvidos, e me deixava intrigada. Talvez ela estivesse ligada a algum movimento clandestino para organizar atos de sabotagem. Talvez estivesse ligada ao grupo secreto de libertação. O fato de poder mandar tantos recados era um indício. Mas eu precisava ter cautela.
Com o trabalho pesado de construção que eu estava fazendo, minhas forças decaiam rapidamente. Graças a uma série de truques, ajuda secreta e informações, fui admitida à sala de costura, que ficava perto de um dos crematórios. Suas altas chaminés, que expeliam fumaça negra e chamas vermelhas, eram vistas da sala de costura, onde trapos ensangüentados pertencentes aos prisioneiros que tinham ido para a câmara de gás eram remendados para serem usados por futuros candidatos.
A sala de costura era comandada por uma tenente cujo corpo sadio contrastava escandalosamente com a magreza das mulheres que trabalhavam curvadas sobre as máquinas. Essa nazista arrogante logo implicou comigo. Uma tarde ela agarrou de repente o pano que eu estava cosendo e disse: “Isto está horrível!”
Tentei explicar que eu não podia fazer melhor porque me tiraram os óculos, e ela não me deixou terminar. “Não interrompa uma oficial alemã”, gritou, e deu-me um bofetão no rosto.
Instintivamente ergui as mãos para proteger o rosto. As outras guardas seguraram meus braços e gritaram: “Ela agrediu uma oficial alemã!”
“Levem essa mulher!” – gritou a tenente. “Levem de vez.”
No dormitório fui jogada na tábua de dormir. Não sei quantas horas passei ali. Já estava escuro quando um guarda finalmente apareceu e disse: “Você vai voltar para a sala de costura.” Iam me dar outra oportunidade” O guarda levou-me à sala de costura, empurrou-me para dentro e fechou a porta. Eu tinha caído numa armadilha; 50 prisioneiras estavam sendo preparadas ali para a câmara de gás. Soldados SS logo apareceram para nos levar para o crematório.
A Dívida da Doutora. Os soldados que nos acompanhavam estavam nervosos e preocupados, e não levamos muito tempo para descobrir o motivo. Aushwitiz estava na linha de marcha dos exércitos russos vitoriosos que avançavam de Leste, e quando chegassem ao campo de concentração nós, prisioneiros, seríamos libertados. É claro que os soldados nazistas estavam mais empenhados em salvar suas vidas do que em tirar as nossas. Fui ficando para trás na coluna e descobri que o soldado da retaguarda não estava lá: tinha ido à frente comentar as notícias com seus companheiros. Quando nossa coluna dobrou à esquerda na esquina de um prédio eu deixei-a a colei-me à parede, esperando o alarma. Não houve nenhum. Não havia nenhuma chance de fugir de Auschwitiz, mas mesmo assim corri. Eu não tinha plano. Não pensei em nenhum rumo. Apenas corri.
Era importante que eu me escondesse, mas não tive coragem de entrar em nenhum dos dormitórios guardados. Vi um galpãozinho com uma tabuleta na entrada: PERIGO.
Não faz mal, pensei. “Qualquer coisa é melhor do que o lugar de onde venho.
Puxei a porta desesperadamente, mas no estado de fraqueza em que me achava não consegui abri-la. De repente, inesperadamente, a porta escancarou-se mostrando um vulto vestido de avental branco de médico. “Graças a Deus você veio”, disse uma voz meiga.
Agora eu já via que o vulto era uma mulher bonita. Deduzi imediatamente que era a Dra Winkler. “Você deve ter ouvido que eu queria falar com você”, disse ela. “Eu queria ajuda-la, mas não consegui um meio de me aproximar de você sem perigo. Eu também sou prisioneira.” Fez um gesto encabulado para a aparelhagem de raios X. “Se eu me recusasse a cumprir as exigências do Dr. Mengele ele me teria mandado fuzilar.”
De repente ela levou um dedo aos lábios. Ouvimos o ruído de botas cravejadas se aproximando. Só podia ser algum guarda à minha procura. Mandando-me ficar escondida atrás da porta, ela saiu do galpão.
-Procura alguém? –perguntou ela lá fora.
-A 82585. Ela fugiu de uma seleção.
-Para cá ela não veio –disse a Dra Winkler. –Entre e veja se quiser.
Foi uma cartada desesperada, porque se o soldado me encontrasse as duas seríamos executadas. Mas o guarda, aborrecido com o trabalho que o meu desaparecimento estava dando, virou nos calcanhares e se afastou.
-Precisamos tirar você daqui antes do amanhecer –disse a Dra Winkler. Notei que as mãos dela tremiam. –Tenho uma amiga, uma médica italiana que dirige a enfermaria de doenças contagiosas. Nenhum guarda entra lá. Ela pode esconder você até a chegada dos russos.
-Por que você está fazendo isso por mim? –perguntei.
-Você é a oportunidade de pagar uma grande dívida que contraí há muito tempo com o homem mais bondoso e mais sábio que conheci. É Alexandre Rado, seu pai.
Do Fundo do Passado. De repente eu me vi chorando. O nome de meu pai trouxe-me à mente todas as boas recordações de minha infância. Desde que aprendi a andar e pude acompanhar os passos de meu pai, eu fui sua companheira de passeios aos domingos. Ele nunca me tratava como a uma criança. Ele me fazia sentir que eu tomava parte em seus problemas. Lá em casa diziam que eu fui criada “com leite paterno”.
Meu pai era muito conhecido em Budapeste, porque era proprietário da agência de notícias que abastecia os grandes jornais do mundo, com notícias dos Bálcãs. E era também o intérprete daquele grupo de intelectuais húngaros que achavam que a sociedade tinha obrigação de proporcionar educação e oportunidades iguais a todos os cidadãos.
A Primeira Guerra Mundial pôs fim ao Império Austro-Húngaro e impôs ao povo húngaro a ditadura comunista do brutal Bela Kun, implantada em março de 1919. Pouco depois a polícia deu uma busca em nosso apartamento à noite, à procura de literatura subversiva. Vendo a brigada vermelha arrombar a porta, meu pai se enfureceu, protestou e mandou-os saírem. Nesse momento ele caiu morto, vítima de um ataque cardíaco. Ele não tinha o hábito de se enfurecer.
“Eu sou uma das muitas pessoas que seu pai ajudou”, disse-me Catherine Winkler. “Minha mãe viúva não podia pagar a escola de Medicina para mim – mas quando chegou a ocasião o dinheiro apareceu milagrosamente”. Só depois que terminei o curso foi que ela me contou que o dinheiro viera de Alexander Rado.
“Contrariando as instruções dele, fui agradecer. Discutimos, e ele finalmente acedeu”. ‘Você pode me agradecer prestando a outros a ajuda que lhe dei’, disse ele. ‘Descubra alguém que esteja em grande necessidade ou desespero. Assim ficaremos quites.’
“Abri consultório em Budapeste e a clínica me absorveu. Um dia soldados nazistas apareceram em meu consultório. Precisando de um radiologista, o Dr. Mengele mandou me prender e me trazerem para Auschwitz. Quando eu soube que você estava aqui, resolvi salva-la.”
Trovoada a Leste. Pela janela vi os primeiros sinais da alvorada. “Você precisa ir antes que clareie mais”, disse a Dra Winkler. “A enfermaria de contagiosos fica no Pavilhão 8. A dra Elvira dorme perto da segunda janela do lado norte. Bata na janela e dê a senha ‘Perugina’. Vá com Deus.”
Ao primeiro clarão da aurora as distantes torres de vigia apareciam recortadas contra o céu. Andei colada às paredes dos pavilhões durante um tempo que me pareceu horas, abaixando-me toda vez que passava por uma janela. Finalmente cheguei à enfermaria de contagiosos e procurei a segunda janela. Bati. Não demorou muito, a janela se abriu. “Perugina”, murmurei.
Braços fortes puxaram-me para dentro. Fui levada a uma esteira, deitei-me e dormi imediatamente.
Durante alguns dias o nosso único assunto era o avanço russo. Ouvíamos os canhões troando. Dia a dia, hora a hora, o troar tornava-se mais forte, anunciando a hora da libertação. Um dia cedo a Dra Winkler veio ver-me. Estava pálida mas calma. “Vim me despedir”, disse ela. “O Dr. Mengele embarca hoje com a sua equipe para Berlim.”
Depois de uma pausa, continuou com voz calma: “Se eu escapar desta guerra, vou dedicar o resto da minha vida a descobrir o paradeiro de Mengele, e quero relatar seus crimes. Acho que ele sabe disso. Ele pode até ter decidido matar-me. Se isso acontecer, cabe a você dizer ao mundo o que se passou aqui sob o disfarce de ciência.”
Fiquei comovida. “Não tive oportunidade de agradecer-lhe”, disse. “Você salvou a minha vida.”
“Não, Claire. Seu pai esticou a mão do fundo do passado para salvar a sua vida. Para mim isso é milagre, e acho que você também concorda.”
Pouco depois uma comissão da Cruz Vermelha Polonesa entrava em Auschwitz na esteira dos exércitos russo e encontrava a equipe médica morta numa vala a 20 quilômetros do campo. Mas o Dr. Mengele nunca foi encontrado, e presume-se que ainda esteja vivo. Entre os cadáveres encontrados na vala estava o de Catherine Winkler, com um orifício de bala na têmpora esquerda.