segunda-feira, julho 3

Adnré, uma foca na família

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1977
Autor : Harry Goodridge e Lew Dietz

Quando foi tirado do mar, era um filhote órfão de apenas dois dias. Isso se passou há 16 anos, e a vida nunca mais foi a mesma para André e para nós.

Desde o princípio, havia algo de especial em André. Em certa manhã de maio de 1961, ele saiu do mar e veio em direção a mim, como um cão aproximando-se de seu amigo e dono – de modo natural e descontraído.
Encontramo-nos em Robinson’s Rock, um recife escuro coberto de vegetação aquática, na baía de Penobscot, no Maine, a cerca de seis quilômetros de minha casa em Rockport. Eu estava com o construtor de barcos Bob Lane em sua lancha a motor. Ao aproximarmo-nos da rocha, Bob subitamente fez sinal com o polegar, indicando a enseada do porto: “Ei! Olha ali um filhote de foca.”
Vi a pequena cabeça lustrosa a 15m de distância, só com o crânio e os olhos redondos à tona. A seguir, a foca levantou a cabeça, como para ver melhor. Os olhos que se encontraram com os meus não mostraram o menor receio. Em vez de mergulhar, a focazinha nadou para a lancha.
Ao mesmo tempo que fazia sinal a Bob para avançar lentamente, procurei em torno a mãe do filhote. Nem sinal dela. As focas mães protegem muito seus bebês e por isso pensei que sua ausência significasse que aquele filhote era órfão. Eu sabia que o destino de um filhote abandonado é morrer lentamente de fome ou acabar de um momento para outro nos dentes de um tubarão-branco. Então, lancei a rede e trouxe o órfão para bordo.
Inesperadamente posto em frente a estranhas criaturas, cujo tamanho só por si representava uma ameaça, um animal selvagem em geral reage com hostilidade. Não foi isso o que aconteceu com aquele animalzinho amistoso. Tratou de instalar-se confortavelmente, arrastando-se pelo barco, examinando todos os recantos, curioso e brincalhão como um gatinho. Debrucei-me sobre ele e acariciei-lhe a cabeça acetinada. Seus olhos meigos refletiam inteira confiança. Isso foi há 16 anos; depois, a vida nunca mais foi a mesma para nós dois.
Necessidade de companhia humana. Foi fácil a adaptação de André a seu novo mundo. A família Goodridge ( minha mulher e nossos cindo filhos ) não o atemorizou nem o impressionou. Parecia aceitar-nos.
Durante as primeiras três semanas, alimentei André com uma papa de leite condensado, gema de ovo e vitaminas, mas daí a pouco “desmamei-o”, obrigando-o a comer arenques e cavalas. Uma vez que ele se habituara ao peixe, eu não queria que André ficasse dependente do homem, mas pouco podia fazer para lhe ensinar como obter sua própria comida no mar. Só podia deixa-lo partir e esperar que tudo se passasse da melhor maneira.
Assim, todos os dias André se aninhava no banco traseiro do carro e íamos nadar no mar. Eu soltava-o no porto e deixava-o à vontade. Se partisse de vez, para mim estava bem. Todas as noites, porém, eu ia até a beira d’agua e André lá estava esperando que eu o alimentasse, o tirasse do mar e o levasse para casa.
Um dia, para minha grande satisfação, recusou o peixe que lhe oferecei. Parecia estar crescendo. Percebi então que ele tinha aprendido a arte de caçar. Presumi que, tendo conseguido tornar-se auto-suficiente, aproveitaria sua liberdade e partiria de vez. Não foi isso que aconteceu. André sentia necessidade de companhia humana, a única que na realidade conhecia.
André foi-se..” André era um companheiro endiabrado. Eu tinha posto uma banheira velha no porão, e enchia-a de água como se fosse uma piscina para focas. Ele ficava imerso, como se dormisse. Quando alguém, por acaso, se aproximava, erguia-se de repente e salpicava o incauto com suas barbatanas.
Certa vez, Toni, minha filha de sete anos, foi para a beira do mar com um casaco novo de botões de metal. Quando se inclinou para acariciar a cabeça da foca, André arrancou-lhe um dos botões e deixou-o cair a seis metros de profundidade.
Toni ficou desolada, claro. Eu zanguei-me e dei a André um verdadeiro corretivo; depois esqueci o que se passara. No dia seguinte fui ao mar. André esperava por mim. Deixou cair o botão a meus pés.
Quando novembro chegou e o gelo se tornou espesso no interior do porto, André ( agora por sua própria iniciativa ) cavou nele uma abertura perto do cais. Ali estava ele, todas as tardes, quase à mesma hora. Depois, uma manhã, em fins de dezembro, acordei com forte ventania de nordeste; vesti-me rapidamente e fui para a beira-mar. Confirmava-se o que eu mais receava: tinha-se quebrado o gelo, e blocos dele, com arestas vivas, estavam-se despedaçando e rodopiavam na ondulação. A abertura cavada por André desaparecera. Eu sabia que a cabeça de uma foca nova podia ser esmagada como uma uva em meio àquela violenta ação do mar.
Não disse uma palavra à família acerca de meus receios. Voltei ali no dia seguinte, e no outro. O mar, entrementes, acalmara, mas não havia qualquer sinal de André.
Uma noite, antes do jantar, dei a notícia: “André foi-se”. Pelo silêncio comovido da sala, compreendi que qualquer que fosse minha idéia, “foi-se” não tinha sido uma expressão feliz. Emendei logo. “André nos deixou”, disse aos meus filhos. Fosse como fosse, soava melhor assim.
Fonte das maravilhas. Em fevereiro, já estávamos mais ou menos conformados com a perda de André. Depois, dia 18 de maio, recebi um telefonema de um jornalista que eu conhecia da vizinha cidade de Rockland. “Harry”, dizia ele, ‘há uma foca no cais de McLoon. Não será o André?”
Pela descrição que fez do animal e de suas atividades, fiquei certo de que era o André. A caminho de Rockland, contudo, comecei a preocupar-me: Após seis meses de liberdade, teria ele algum interesse em voltar para casa?
Aproximei-me dele e falei-lhe. Tudo quanto recebi foi um olhar sonolento. Fiz André entrar numa cesta de lagostas, meti-a no caminhão e voltei para casa.
A família estava ansiosa quando arrastei a cesta para a cozinha e soltei André no chão. Todos aguardávamos. Eu não precisava ter-me preocupado. Ele olhou para todos nós durante alguns momentos; depois foi rebolando até a porta aberta do porão e observou seu antigo alojamento. Satisfeito, deitou-se sobre sua esteira e adormeceu profundamente.
No outono de 1967, André, então com seis anos, tinha-se tornado uma fonte de maravilhas, demonstrando uma sutiliza que indicava ( para mim, pelo menos) capacidade de raciocínio. Por exemplo: tendo-se esgotado minha reserva de arenque congelado nesse mês de outubro, fui forçado a recorrer à cavala, peixe que ele detestava. Remei para o viveiro onde André agora se encontrava e esvaziei um balde de cavala, na plataforma.
André roçou com o focinho o peixe e demonstrou com um bufo a sua aversão. Pegou num, sacudiu-o um pouco, abriu-o finalmente com os dentes e logo atirou-o na água sem o provar. Momentos depois deslizou rápido para a água e ficou parado no extremos de sua “piscina”. Enquanto eu observava, André deu um profundo mergulho. Para surpresa minha, pôs a cabeça de fora, não com a cavala na boca, mas com uma pescada viva. Só depois de dilacerar mais dois peixes e de atira-los na água é que me ocorreu que ele estava utilizando as cavalas detestadas como isca para atrair os peixes de que realmente gostava!
Uma noiva e duas amigas. André era macho e necessitava da companhia de uma fêmea. Assim, na primavera de 1968, comprei-lhe uma, muito nova, de olhos meigos. Trudy, como a nova foi chamada, não tinha ainda maturidade, mas pelo menos servia para companheira de brincadeiras. Começou a corteja-la, é claro, abraçando-a com suas barbatanas. Ela mordiscava-o depois, perseguiam-se pelo recinto. Nos meses que se seguiram, tornaram-se tão amigos que decidi liberta-los juntos neste outono. O meu receio era que Trudy, depois de viver durantes meses comigo e com André, tivesse sido “marcada” pelo gênero humano e por sua relação especial com André.
Estava enganado. Soltei-os numa tarde fria. Trudy veio à superfície uma vez e olhou para mim no cais. Depois, a água cinzenta fechou-se sobre ela. André regressou, alguns dias mais tarde, sozinho. Nunca mais voltei a ver Trudy.
As instalações que eu tinha preparado para André durante os invernos anteriores não mais satisfaziam; por isso, em fins de agosto de 1973, telefonei ao diretor do Aquário da Nova Inglaterra, em Boston, e perguntei-lhe se receberia André como hóspede durante o inverno. “Teremos muito prazer nisso”, respondeu ele.
No primeiro dia de novembro, quando a caminhonete do aquário chegou, dela desceu Annie Potts, a bela treinadora-assistente que tomaria conta de André. Perguntou se havia instruções especiais.
“Acho que seria bom que tivesse companhia”, disse-lhe eu.
“Ficará com três outras focas: um macho e duas fêmeas”, respondeu Annie.
“´Ótimo! Mas eu queria dizer companhia humana.”
Annie sorriu. “Eu mesma lhe farei companhia.”
Tranqüilizado pela evidente simpatia da moça para com os animais, aproximei a cabeça da jaula de André para dizer-lhe adeus. Ele roçou o focinho pelo meu cabelo; foi tudo. Quando o caminhão começou a subir a íngreme ladeira da aldeia, senti-me angustiado. Após quase 13 anos de liberdade, como iria André adaptar-se a um tanque? Eu estava me sentindo como uma mãe que acaba de mandar o filho para um acampamento pela primeira vez.
Dias mais tarde, telefonei para o aquário e perguntei ao diretor como nosso André estava se comportando. “Vai tudo muito bem”, disse-me, “ma há um pequeno problema. Nosso outro macho, Hoover, não está muito contente por André monopolizar as duas fêmeas. Hoover vai para o fundo da piscina e fica lá, de mau humor. Não tem comido. Penso que teremos de por Hoover noutro tanque.”
De novo em casa. À medida que se aproximava a primavera e a ocasião de André ser solto, comecei a preocupar-me com minha decisão de deixa-lo voltar para casa por mar. Sabia que ele era capaz de fazer a viagem de 300km para Rockport, mas, após seis meses de clausura, quereria voltar para casa?
Em 26 de abril de 1974, levamos André a 30km ao norte de Boston para soltá-lo. Abri a jaula e ele saiu. Olhou para mim, depois para a água, e partiu.
Passaram-se quatro dias de ansiedade; então, o telefone tocou. Era Uma Ames, e o marido, Leonard, que moram do outro lado do porto. “Ele está aqui”, anunciou Uma. “Descansando no caíque de Leonard. Chamei por ele e parece-me que agitou uma barbatana.”
Corri para meu barco e fui até lá. É claro que André tinha-se apoderado do caíque dos Ames. Mexeu-se ao ouvir aproximar-se um barco a motor, levantando a cabeça por cima da amurada do pequeno caíque, meio afundado.
“Olá André!” exclamei. “Que tal a viagem?”
Por um momento ele me olhou com ar compenetrado; depois, com a magnífica indiferença de um rei, adormeceu novamente. Acariciei-o e deixei-o descansar.
Uma hora depois, alguém telefonou dizendo que André se achava dentro do porto e parecia querer ir para seu viveiro. Estava à espera quando eu cheguei. Abri a passagem e, sem a mínima hesitação, meteu-se em sua piscina.
André se achava em casa. Nessa noite, depois do jantar, fui vê-lo de novo. Soprava do mar um vento tépido. Os habitantes da aldeia estavam ocupados raspando e pintando seus barcos, preparando-os para a primavera que viria. André recusou o oferecimento de peixe congelado. Por isso acendi meu cachimbo e ali nos sentamos ao crepúsculo, falando de muitas coisas.

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