sexta-feira, julho 28

Uma noite em nossa ópera

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1983
Autor : Bernard Levin

As luzes da sala extinguiram-se, o pano subiu e o que se seguiu foi uma gloriosa e inesquecível meia hora de agônica hilaridade.

Todos os anos, em outubro, a pequena cidade de Wexford, situada no canto inferior direito da Irlanda, celebra o seu festival de ópera durante três dias de deleite sem paralelo. A cidade sabe que não pode competir com os festivais famosos, cheios de grandes nomes ultradispendiosos, e, mais, que não deve competir com eles em matéria de repertório. Assim, soluciona o primeiro problema procurando jovens cantores em início de carreira, e o segundo, escolhendo óperas não encenadas freqüentemente noutros lugares.
Na noite da inesquecível sessão de encerramento do ano de 1979, cantava-se La Vestale, de Spontini, história de uma virgem vestal que trai o seu dever sagrado pelo amor.
O cenário do primeiro ato consistia numa plataforma de uns 30cm de altura, ao fundo, que descia em declive suave até as luzes da ribalta. Representava o interior de um templo e tinha, por conseguinte, de se assemelhar ao mármore. O cenógrafo conseguiu um efeito bastante convincente, cobrindo a superfície da plataforma com uma tinta vítrea. Ficava escorregadia, mas tudo se remediaria facilmente ( pelo menos assim se pensava ) com a aplicação na superfície de certo conhecido refrigerante. A idéia era, espalha-lo abundantemente, tornando a plataforma pegajosa o suficiente para evitar o risco de algum dos cantores levar um tombo.
Neste ponto, a história apresenta duas versões. Uma é que, não havendo o tal refrigerante, lançou-se mão, em seu lugar, de uma beberagem semelhante, mas menos pegajosa. A outra versão, muito mais aliciante, reza que a empregada da limpeza do teatro, inspecionando naquela tarde as instalações, verificou com horror que o palco estava coberto de um líquido e, inspirada por férreo orgulho profissional, deu-lhe uma muito boa esfregadela e poliu-o de seguida.
As duas, porem, acabam por convergir de novo. Afinal, apesar do superior encanto da segunda versão, não faz diferença qual tenha sido a verdadeira. O que interessa foi o que aconteceu a seguir.
Nessa noite, o pano subiu, para mostrar o herói mergulhado em tristes pensamentos, mesmo na pontinha do palco. Deu um passo... e estatelou-se de costas no chão. Houve um murmúrio de simpatia por parte do público. Ele então se levantou, com imensa dificuldade, deslizou mais um pouco na direção das luzes da ribalta e tentou subir de volta na plataforma. Enquanto tudo isso acontecia, claro, ele ia cantando o seu papel, uma vez que a música não parava. Mas voltar a subir na plataforma constituía obviamente uma tarefa infernal, por isso, a cada tentativa, escorregava de novo para baixo. Estava fazendo o que se poderia considerar uma perfeita demonstração de andar no mesmo lugar – gracioso expediente usado em mímica.
Inteligentemente, o herói decidiu então ficar onde estava mesmo, continuando a cantar. Calculou sem dúvida que os outros artistas dariam por ele ali e ajustariam os seus próprios movimentos em conformidade com isso. E assim aconteceu. O melhor amigo do herói, na ópera, vendo-o lá embaixo, decidiu lealmente juntar-se a ele. Verdade se diga que não tinha muito por onde escolher. No momento em que pisou o palco, escorregou por ele abaixo, esbracejando feito louco, e acabou em cima do herói.
É certo que o que acontecera não vinha de todo fora de propósito, pois o libreto mandava que ambos se abraçassem exatamente nesse instante em amistosa saudação. Não dizia, porem, que ambos, nos braços um do outro e impulsionados pelo ímpeto da descida do amigo, devessem continuar a carreira juntos, palco abaixo, como se estivessem a fim de se atirar na orquestra.
Felizmente, mesmo à beira do desastre maior, conseguiram suster o avanço conjunto e, abrindo caminho ao longo da frente do palco, como alpinistas procurando um atalho em redor de uma fenda intransponível, começaram elegantemente a escalar aquela cruel colina.
A única estrutura que se destacava em toda a superfície lisa era um pequeno altar, sobre o qual ardia a chama ritual sagrada. Esse altar estava firmemente pregado ao chão e, evidentemente, ocorreu aos dois “alpinistas” que, se conseguissem alcança-lo e se agarrassem a ele, teriam encontrado uma base segura para as operações subseqüentes.
Mal o herói e seu amigo alcançaram o almejado objetivo, entrou o coro, e seus membros se viram de imediato executando uma versão coreográfica bastante livre do balé Os Patinadores, apesar da impropriedade total da música. No que respeita à sacerdotisa-heroína, que possuía um forte instinto de sobrevivência, ela patinou até os bastidores e ali descalçou seus sapatos. Depois, aparentemente com receio de que isso não fosse suficiente, tirou também os collants que usava.
Por essa altura, o auditório (uma casa cheia com 440 pessoas) estava tão alucinado de rir que receávamos mesmo provocar alguma lesão interna grave.
Finalmente, sem que o canto jamais tivesse cessado, o coro chegou à mesma conclusão que o herói e o seu amigo, ou seja, que agarrar-se ao altar sagrado era a única maneira de se manter em pé. O problema era só haver um altar – e bastante pequeno. Todo o elenco se amontoou em redor dessa ilhota de segurança, procurando apoio para as mãos, para um pé, ou mesmo para um dedo. Os que estavam mais perto agarraram-se a ele, os seguintes seguraram-se nos já agarrados, os que estavam mais afastados engancharam-se nos últimos, e assim sucessivamente, até que, numa espécie de cadeia através do palco, todo mundo ficou acomodado.
O estado do público era agora o de forte histeria coletiva. Muitos espectadores encontravam-se em estado de colapso, estirados no soalho, contorcendo-se na incontinência agônica de sua hilaridade.
O primeiro ato terminou em meio a apoteóticos aplausos – como jamais ouvi num teatro de ópera. Durante o intervalo, foi aplicado no palco uma dose extremamente liberal do refrigerante pegajoso, o que pôs fim à nossa alegria.
Mas quem quer que, depois de tal deleite, pedisse bis, só poderia ser chamado de ganancioso. A maioria satisfizera-se completamente. Afinal, durante uma gloriosa meia hora, havíamos simplesmente saboreado o leite e o mel do paraíso.

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