terça-feira, julho 11

Um presente do passado

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1971
Autor : Claire Rado de Hedervary

Um gesto generoso praticado 25 anos antes salvou uma prisioneira de Auschwitz da tortura e da morte certa.

No dia 13 de julho de 1944 o trem parou num desvio e um pequeno grupo de prisioneiros políticos desceu com dificuldade. Diante deles havia um portão ornamental com a inscrição Arbeit Macht Frei – O Trabalho Liberta. Além do portão, um vasto campo com milhares de barracas, cercado de arame farpado e telas eletrificadas, torres de vigia dotadas de holofotes, metralhadoras e cães policiais. A única liberdade que se podia alcançar ali era a da morte, porque aquele era Auschwitz – o famigerado campo de concentração nazista na Polônia. Nós éramos o mais recente grupo de prisioneiros a chegar.
Um pelotão de soldados SS de Hitler levou-nos marchando pelo portão. Lá dentro nos ordenaram que tirássemos todas as roupas e as puséssemos em grandes latões. Quem mostrasse a mais leve hesitação era brutalmente espancado.
Fomos levados em fila indiana a um homem vestido com o impecável uniforme de médico militar. Alguns passos atrás dele ficavam seus auxiliares. Era o Dr. Joseph Mengele, chefe dos médicos do campo, um homem alto, esbelto, simpático, e em ótima forma física. Não sabíamos que atrás daquela imagem havia um monstro. Cada homem, mulher e criança que parava nu diante dele era examinado. Depois ele apontava o polegar para a direita ou para a esquerda. Guardas SS empurravam o prisioneiro na direção indicada pelo médico. Os que se apertavam apavorados uns contra os outros à esquerda eram os velhos, os enfermos e os muito jovens. Considerados inaptos para o trabalho, estavam destinados à câmara de gás.
Quando chegou a minha vez o médico examinou o meu corpo e apontou o polegar para a direita. Eu tinha 44 anos, era sadia, portanto ia viver – pelo menos enquanto tivesse forças para fazer trabalho braçal.
Reduzida a um número. Nosso grupo de sobreviventes foi levado a uma mesa onde havia várias agulhas de tatuagem . Olhei entre incrédula e fascinada a operação de gravação de um número em meu braço – 82585. A dor foi pequena, mas senti um pavor crescendo à medida que fui compreendendo o que eles iam fazer – tomar a minha identidade. Fechei os olhos e pensei: “Não sou um número. Meu nome será lembrado como o de um membro do movimento antinazista. Causei mais mal ao seu sistema do que o que você pode me causar. Não sou um número.”
Pouco abaixo do número tatuaram uma pequena figura em forma de coração. (Descobri mais tarde que essa figura indicava que eu era prisioneira política).
Após a operação de tatuagem a nossa nudez terminou. Havia um monte enorme de roupas sujas deixadas pelos que tinham ido para a câmara de gás. Recebemos ordem de apanhar uma blusa, calças e um par de sapatos; tínhamos de fazer isso enquanto éramos empurrados rapidamente pelos guardas. As roupas que apanhei serviram mais ou menos para cobrir a minha nudez, mas não tive sorte com os sapatos. Um tinha salto alto, o outro não tinha nenhum, e ambos eram do pé esquerdo. Mas não me queixei.
Nossa vida entrou numa rotina. Durante o dia fazíamos trabalho pesado de construção – eu transportava areia num carrinho – e à noite dormíamos sobre tábuas em enormes galpões frios. Nossas refeições eram uma sopa rala e, de vez em quando, um pedaço de pão. Começamos a perder peso com uma rapidez alarmante. Todas as noites as chaminés do crematório ficavam vermelhas com as chamas dos que tinham ficado muito fracos e não puderam mais trabalhar.
Cadáveres saqueados. No meu segundo mês, quando éramos levados de volta ao dormitório, uma colega de prisão disse-me baixinho: “A Dra. Winkler quer falar com você.”
Semanas depois ouvi o nome murmurado novamente por outra prisioneira: “A Dra Winkler tem um recado para você. Ela é radiologista do hospital municipal de Budapeste e colabora com o Dr. Mengele em suas experiências.”
Todo o campo sabia dos pormenores das experiências do Dr. Mengele. Ele praticava nos prisioneiros novas técnicas cirúrgicas no coração, fígado e rins; fazia pesquisas de esterilização, utilizando cirurgia e radiologia em homens e mulheres.
O aviso de que a Dra. Winkler tinha um recado para mim ressoava em meus ouvidos, e me deixava intrigada. Talvez ela estivesse ligada a algum movimento clandestino para organizar atos de sabotagem. Talvez estivesse ligada ao grupo secreto de libertação. O fato de poder mandar tantos recados era um indício. Mas eu precisava ter cautela.
Com o trabalho pesado de construção que eu estava fazendo, minhas forças decaiam rapidamente. Graças a uma série de truques, ajuda secreta e informações, fui admitida à sala de costura, que ficava perto de um dos crematórios. Suas altas chaminés, que expeliam fumaça negra e chamas vermelhas, eram vistas da sala de costura, onde trapos ensangüentados pertencentes aos prisioneiros que tinham ido para a câmara de gás eram remendados para serem usados por futuros candidatos.
A sala de costura era comandada por uma tenente cujo corpo sadio contrastava escandalosamente com a magreza das mulheres que trabalhavam curvadas sobre as máquinas. Essa nazista arrogante logo implicou comigo. Uma tarde ela agarrou de repente o pano que eu estava cosendo e disse: “Isto está horrível!”
Tentei explicar que eu não podia fazer melhor porque me tiraram os óculos, e ela não me deixou terminar. “Não interrompa uma oficial alemã”, gritou, e deu-me um bofetão no rosto.
Instintivamente ergui as mãos para proteger o rosto. As outras guardas seguraram meus braços e gritaram: “Ela agrediu uma oficial alemã!”
“Levem essa mulher!” – gritou a tenente. “Levem de vez.”
No dormitório fui jogada na tábua de dormir. Não sei quantas horas passei ali. Já estava escuro quando um guarda finalmente apareceu e disse: “Você vai voltar para a sala de costura.” Iam me dar outra oportunidade” O guarda levou-me à sala de costura, empurrou-me para dentro e fechou a porta. Eu tinha caído numa armadilha; 50 prisioneiras estavam sendo preparadas ali para a câmara de gás. Soldados SS logo apareceram para nos levar para o crematório.
A Dívida da Doutora. Os soldados que nos acompanhavam estavam nervosos e preocupados, e não levamos muito tempo para descobrir o motivo. Aushwitiz estava na linha de marcha dos exércitos russos vitoriosos que avançavam de Leste, e quando chegassem ao campo de concentração nós, prisioneiros, seríamos libertados. É claro que os soldados nazistas estavam mais empenhados em salvar suas vidas do que em tirar as nossas. Fui ficando para trás na coluna e descobri que o soldado da retaguarda não estava lá: tinha ido à frente comentar as notícias com seus companheiros. Quando nossa coluna dobrou à esquerda na esquina de um prédio eu deixei-a a colei-me à parede, esperando o alarma. Não houve nenhum. Não havia nenhuma chance de fugir de Auschwitiz, mas mesmo assim corri. Eu não tinha plano. Não pensei em nenhum rumo. Apenas corri.
Era importante que eu me escondesse, mas não tive coragem de entrar em nenhum dos dormitórios guardados. Vi um galpãozinho com uma tabuleta na entrada: PERIGO.
Não faz mal, pensei. “Qualquer coisa é melhor do que o lugar de onde venho.
Puxei a porta desesperadamente, mas no estado de fraqueza em que me achava não consegui abri-la. De repente, inesperadamente, a porta escancarou-se mostrando um vulto vestido de avental branco de médico. “Graças a Deus você veio”, disse uma voz meiga.
Agora eu já via que o vulto era uma mulher bonita. Deduzi imediatamente que era a Dra Winkler. “Você deve ter ouvido que eu queria falar com você”, disse ela. “Eu queria ajuda-la, mas não consegui um meio de me aproximar de você sem perigo. Eu também sou prisioneira.” Fez um gesto encabulado para a aparelhagem de raios X. “Se eu me recusasse a cumprir as exigências do Dr. Mengele ele me teria mandado fuzilar.”
De repente ela levou um dedo aos lábios. Ouvimos o ruído de botas cravejadas se aproximando. Só podia ser algum guarda à minha procura. Mandando-me ficar escondida atrás da porta, ela saiu do galpão.
-Procura alguém? –perguntou ela lá fora.
-A 82585. Ela fugiu de uma seleção.
-Para cá ela não veio –disse a Dra Winkler. –Entre e veja se quiser.
Foi uma cartada desesperada, porque se o soldado me encontrasse as duas seríamos executadas. Mas o guarda, aborrecido com o trabalho que o meu desaparecimento estava dando, virou nos calcanhares e se afastou.
-Precisamos tirar você daqui antes do amanhecer –disse a Dra Winkler. Notei que as mãos dela tremiam. –Tenho uma amiga, uma médica italiana que dirige a enfermaria de doenças contagiosas. Nenhum guarda entra lá. Ela pode esconder você até a chegada dos russos.
-Por que você está fazendo isso por mim? –perguntei.
-Você é a oportunidade de pagar uma grande dívida que contraí há muito tempo com o homem mais bondoso e mais sábio que conheci. É Alexandre Rado, seu pai.
Do Fundo do Passado. De repente eu me vi chorando. O nome de meu pai trouxe-me à mente todas as boas recordações de minha infância. Desde que aprendi a andar e pude acompanhar os passos de meu pai, eu fui sua companheira de passeios aos domingos. Ele nunca me tratava como a uma criança. Ele me fazia sentir que eu tomava parte em seus problemas. Lá em casa diziam que eu fui criada “com leite paterno”.
Meu pai era muito conhecido em Budapeste, porque era proprietário da agência de notícias que abastecia os grandes jornais do mundo, com notícias dos Bálcãs. E era também o intérprete daquele grupo de intelectuais húngaros que achavam que a sociedade tinha obrigação de proporcionar educação e oportunidades iguais a todos os cidadãos.
A Primeira Guerra Mundial pôs fim ao Império Austro-Húngaro e impôs ao povo húngaro a ditadura comunista do brutal Bela Kun, implantada em março de 1919. Pouco depois a polícia deu uma busca em nosso apartamento à noite, à procura de literatura subversiva. Vendo a brigada vermelha arrombar a porta, meu pai se enfureceu, protestou e mandou-os saírem. Nesse momento ele caiu morto, vítima de um ataque cardíaco. Ele não tinha o hábito de se enfurecer.
“Eu sou uma das muitas pessoas que seu pai ajudou”, disse-me Catherine Winkler. “Minha mãe viúva não podia pagar a escola de Medicina para mim – mas quando chegou a ocasião o dinheiro apareceu milagrosamente”. Só depois que terminei o curso foi que ela me contou que o dinheiro viera de Alexander Rado.
“Contrariando as instruções dele, fui agradecer. Discutimos, e ele finalmente acedeu”. ‘Você pode me agradecer prestando a outros a ajuda que lhe dei’, disse ele. ‘Descubra alguém que esteja em grande necessidade ou desespero. Assim ficaremos quites.’
“Abri consultório em Budapeste e a clínica me absorveu. Um dia soldados nazistas apareceram em meu consultório. Precisando de um radiologista, o Dr. Mengele mandou me prender e me trazerem para Auschwitz. Quando eu soube que você estava aqui, resolvi salva-la.”
Trovoada a Leste. Pela janela vi os primeiros sinais da alvorada. “Você precisa ir antes que clareie mais”, disse a Dra Winkler. “A enfermaria de contagiosos fica no Pavilhão 8. A dra Elvira dorme perto da segunda janela do lado norte. Bata na janela e dê a senha ‘Perugina’. Vá com Deus.”
Ao primeiro clarão da aurora as distantes torres de vigia apareciam recortadas contra o céu. Andei colada às paredes dos pavilhões durante um tempo que me pareceu horas, abaixando-me toda vez que passava por uma janela. Finalmente cheguei à enfermaria de contagiosos e procurei a segunda janela. Bati. Não demorou muito, a janela se abriu. “Perugina”, murmurei.
Braços fortes puxaram-me para dentro. Fui levada a uma esteira, deitei-me e dormi imediatamente.
Durante alguns dias o nosso único assunto era o avanço russo. Ouvíamos os canhões troando. Dia a dia, hora a hora, o troar tornava-se mais forte, anunciando a hora da libertação. Um dia cedo a Dra Winkler veio ver-me. Estava pálida mas calma. “Vim me despedir”, disse ela. “O Dr. Mengele embarca hoje com a sua equipe para Berlim.”
Depois de uma pausa, continuou com voz calma: “Se eu escapar desta guerra, vou dedicar o resto da minha vida a descobrir o paradeiro de Mengele, e quero relatar seus crimes. Acho que ele sabe disso. Ele pode até ter decidido matar-me. Se isso acontecer, cabe a você dizer ao mundo o que se passou aqui sob o disfarce de ciência.”
Fiquei comovida. “Não tive oportunidade de agradecer-lhe”, disse. “Você salvou a minha vida.”
“Não, Claire. Seu pai esticou a mão do fundo do passado para salvar a sua vida. Para mim isso é milagre, e acho que você também concorda.”
Pouco depois uma comissão da Cruz Vermelha Polonesa entrava em Auschwitz na esteira dos exércitos russo e encontrava a equipe médica morta numa vala a 20 quilômetros do campo. Mas o Dr. Mengele nunca foi encontrado, e presume-se que ainda esteja vivo. Entre os cadáveres encontrados na vala estava o de Catherine Winkler, com um orifício de bala na têmpora esquerda.

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