segunda-feira, julho 17

O Beija-flor que chorava

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1979
Autor : Gladys Francis Lewis

Pacientemente, eles cuidaram do beija-flor sem cauda, perdido e infeliz. Depois ele partiu, deixando-os com as recordações de um tempo maravilhoso.

Foi uma tarde do outono de 1971 que meus vizinhos Carl e Wilma Merger, trouxeram para casa o pobre órfão dentro de uma caixa de sapatos. Tendo perdido as penas da cauda em algum acidente na floresta, o beija-flor era um pequenino ser perdido e infeliz. Os Merger olhavam para ele quando de repente ouviram uns suspiros muito débeis vindos daquela minúscula garganta, parecendo soluços de uma criança cansada de chorar.
“Incrível!”, disse Wilma em voz baixa. “Este montinho de penas com um coração deste tamanhinho está soluçando!” Colocou-o na palma de sua mão e levantou-o à altura dos olhos, apertando as penas macias de encontro ao rosto. Nesse momento o pequeno animalzinho deu um último soluço e quedou-se como se já não tivesse vida.
Com muito cuidado Wilma mergulhou o bico do beija-flor num prato de mel. Imediatamente ele disparou sua comprida língua em forma de tubo e começou a se reanimar. Pouco depois Honey ( “Mel”, como os Merger logo o chamaram ) já estava recuperado e começou a explorar o apartamento do casal em Toronto, esvoaçando desajeitadamente sem a cauda estabilizadora.
Honey gostou francamente da casa dos Merger, cheia de plantas, banhada pelo sol e onde não havia gatos. Carl e Wilma, ambos aposentados por sofrerem de males cardíacos, sentiram-se conquistados. Foi assim que começou uma história de amor entre duas simpáticas pessoas e uma “amostra” de avezinha que pesava exatamente dois gramas.
Toda a história tinha começado realmente no princípio do verão, quando a irmã de Carl lhe pedira insistentemente que tomasse conta de outro beija-flor ferido. “Encontrei-o sem uma asa, se batendo por aí como um doido”, explicou ela. “Você adora pássaros, Carl. Não quer tratar deste?”
“Uma vez eu criei um papa-figos”, admitiu Carl. “Mas um beija-flor! Eles vivem de néctar. Como é que a gente iria alimenta-lo?”
Os Merger telefonaram então para os Windinglane Sanctuary, hospital de aves feridas que ficava nos arredores de Toronto, para pedir conselhos. Os veterinários recomendaram uma dieta de mel diluído e pasteurizado e gema de ovo bem cozida. Os Merger dedicaram-se tão entusiasticamente a criar o beija-flor que pouco tempo depois o Sanctuary lhes enviou um outro passarinho desses ferido.
Nenhum deles sobreviveu aos ferimentos, mas Honey tinha uma possibilidade: se conseguisse resistir ao cativeiro o tempo suficiente para que lhe crescessem as penas da cauda, talvez pudesse voltar à liberdade.
Para os Merger, condicionados por anos de doença a se agarrarem às menores esperanças, tratava-se de um verdadeiro desafio. Leram tudo o que havia à disposição. Aprenderam que um beija-flor pode voar a mais de 100km/h, que suas asas batem cerca de 75 vezes por segundo e que ele tem de ingerir alimento aproximadamente de 20 em 20 minutos para compensar a fantástica energia gasta por seu pequenino corpo – exceto nos vôos migratórios de ida e volta às Américas Central e do Sul, durante os quais se alimenta de reservas de gordura armazenada em seu corpo, durante a noite, quando atinge um estado semicomatoso. Aprenderam também que o beija-flor é um grande conquistador – acasalando com uma fêmea para abandona-la a seguir e ir conquistar outra e mais outra.
Wilma, sendo nutricionista, dedicou-se ao problema da alimentação da ave. Estudou e preparou alimentos alternados como mel diluído em água, gema de ovo em suspensão em hidromel e “pão de abelha”, rico em pólem, que vinha de uma colméia. Quanto às vitaminas e minerais, consultou o farmacêutico, que troçou dela: “Vitaminas para um beija-flor? Nunca ouvi falar em semelhante coisa!” Mas não deixou de arranjar umas vitaminas em gotas, para bebês, um pouco de cálcio e comprimidos de ferro. Wilma adicionou um bocadinho de cada coisa ao hidromel.
Até então ela dera banho no beija-flor com as próprias mãos, o que se tornou particularmente necessário no dia em que Honey chafurdou alegremente na colher de chá do seu tratamento especial: era geléia de maçã. Mas certo dia eles repararam que Honey batia muito as asas, espojando-se numa planta da sala.
“Mas claro!” exclamou Carl. “Ele gosta de tomar banho mas é à sua maneira, numa folha coberta de orvalho.” E a partir daí passou a borrifar com água essa planta todas as manhãs. Honey, batendo as asas, tomava sua chuveirada com as gotas de orvalhos das folhas.
Para essa ocasião o hospital de beija-flores dos Merger era assunto de todo o prédio. Por vezes eu entrava um pouco para assistir às abluções matinais, depois das quais Honey se enxugava à janela, ou, nos dias sem sol, debaixo de uma lâmpada. Sua plumagem recompunha-se rapidamente. A dieta estava dando resultado. Em janeiro Carl anotou em seu diário: “A cauda de Honey principia a crescer.”
Passado pouco tempo Honey começou a curtir a descoberta de novas habilidades. Brincando lançava a língua sobre partículas de pó iluminadas por um raio de sol e planava por cima do tapete verde, fazendo voar pedacinhos de linha, tentando instintivamente retirar insetos daquela “erva” tão esquisita.
Desde o princípio os Merger evitaram mimar o beija-flor, e Carl deixou todo o tratamento a cargo de Wilma. Pensaram que, quanto menos Honey dependesse dos seres humanos e menos neles confiasse, maiores seriam as possibilidades de sobreviver em liberdade quando chegasse o momento de soltá-lo. O animalzinho, porém, sabia muito bem o que queria; tanto assim que começou a se comunicar tão obviamente como se soubesse falar.
Um dia Wilma apresentou-lhe inadvertidamente um ovo batido numa hora em que costumava dar-lhe hidromel; ele o provou e lançou-se direto sobre o rosto dela. O bico de um beija-flor é afiado como uma agulha e estes pequenos passarinhos não temem coisa alguma. Atacam quem quer que os provoque, seja um marimbondo, um corvo – o que for. “Se o beija-flores fossem tão grandes como sua coragem”, escreveu certa vez um naturalista, “os lugares que eles freqüentam não seriam seguros para ninguém.”
No entanto, embora Honey já se tivesse algumas vezes lançado furiosamente sobre a gaiola do periquito dos Merger, com seres humanos só demonstrava simpatia, e por isso Wilma nem se mexeu. Honey freou, esvoaçou indecisamente e começou a dar-lhe bicadinhas à volta da boca, nas bochechas e na testa, mas nunca nos olhos. A mensagem era muito óbvia. Poderia a pessoa humana lhe dar o alimento certo? Foi o que Wilma fez, e o incidente terminou com Honey comendo tranqüilamente – a primeira de muitas demonstrações suas de inteligência e afeto.
A deficiência cardíaca de Wilma exige que ela descanse 90 minutos todas as tardes. Mal ela acabava de se deitar, Honey ia aninhar-se na cova de seu pescoço, muito satisfeito. Logo que descobriu que ela geralmente ficava acordada na última meia hora de repouso, embora continuasse deitada, passou a esvoaçar inquieto até ela se levantar.
Uma vez Honey voou até o banheiro, ficou muito espantado com os espelhos e foi de encontro a um deles. Wilma ouviu seu débil piar de aflição e correu para lá, indo encontra-lo agarrado a um suéter pendurado na porta. Embora não tivesse sofrido nenhum ferimento grave e pouco depois já pudesse mover-se à vontade, naquele momento ele parecia não conseguir voar com a vivacidade de outrora. Os Merger consultaram seus livros e decidiram pôr caldo de concentrado em seu hidromel, para lhe acrescentar proteínas. Prudentemente Honey provou a mistura e sacudiu a cabeça. Voltou a dar um golinho e pareceu refletir. Abanando energicamente a cabeça, voou direto para o rosto da Wilma e começou a habitual cena de bicadinhas – em volta dos lábios, das bochechas e da testa, mas sempre delicadamente. Era a maneira de ele declarar que detestava aquele caldo horrível.
Carl lembrou-se de que seu papa-figos conseguira sobreviver comendo bichinhos – fontes de proteínas naturais. Percorreu os mercados de frutas pedindo aos vendedores “as bananas mais podres” que tivessem; mas nem mesmo as bananas mais escuras tinham insetos. Por fim um amigo seu que trabalhava num departamento universitário de biologia deu-lhe um precioso frasco cheio de insetos de fruta e ensinou-lhe a fazer uma cultura para criar mais.
A cozinha dos Merger transformou-se num laboratório para alimentar tais insetos. Todos os dias Wilma soltava alguns e, mal Honey ouvia o tinir do frasco, punha-se logo em movimento para ir caçar suas pequenas presas.
Com a chegada da primavera, o beija-flor, como qualquer jovem cheio de vida, queria adiar a hora de ir dormir enquanto houvesse luz. A única maneira de pô-lo para dormir era atraí-lo com comida até a gaiola e depois fechar a porta com um fio muito comprido. Talvez ele sentisse também necessidade de acasalamento porque já estava quase adulto. Na verdade, até então os Merger não tinham certeza se ele era macho, mas agora já não restavam dúvidas – com as pintas vermelho-douradas e amareladas que lhe apareciam à volta do pescoço alastrando-se até formarem uma mancha lustrosa cor de rubi.
Em maio o casal levou Honey para sua casa de campo e, chegados lá, a primeira coisa que Carl fez foi pôr na janela um raminho de bálsamo para Honey. Este ficou deliciado e voava livremente em volta da casa, voltando sempre. Uma porta deixada aberta por acaso já não constituía tentação. Só quando o pequeno sobrinho de Carl lhe mostrou timidamente um dente-de-leão à distância de um braço é que algo adormecido no fundo de Honey pareceu acordar. Durante muito tempo a avezinha pairou sobre a flor, parecendo querer sorver a sua essência, e com ela a consciência do mundo natural.
Nessa primeira tarde no campo, o sol poente banhou-o com seus raios. O fogo da luz em seu corpo produzia um surpreendente espectro de cores – dourado, vermelho, safira, verdes iridescentes. A beleza do beija-flor, outrora um pequenino ser esgotado e soluçante, era agora digna de se admirar.
Durante o quente mês de julho os Merger foram várias vezes ao Windinglane Sanctuary para que Honey se habituasse gradualmente com a vida em plena natureza. Enquanto Honey sugava lilases, os Merger lanchavam ali por perto, observando-o ternamente. Até que, numa tarde ensolarada, repararam que ele tardava em entrar na gaiola, parecendo ter-se apercebido daquele mundo simultaneamente novo e antigo, acolhedor e familiar, e experimentando a excitação de anteriores formas de vida. Era o período do acasalamento e das migrações, sentindo-se uma vida nova no ar. Wilma sussurrou: “Acho que ele decidiu qualquer coisa.” O beija-flor então voou resolutamente para uma moita de lilases, sugando as flores. Subiu no ar, elevando-se cada vez mais alto, apanhando insetos em vôo. Depois foi-se: passou pelos salgueiros, ergueu-se acima dos pinheiros e confundiu-se com o azul do céu.
Os Merger esperaram em silêncio, e então voltaram para seu apartamento vazio. Sempre souberam que o pequeno animal teria de partir. Nada havia a fazer. Aquilo era um pouco como perder um filho.
Voltaram três vezes a Windinglane, e sempre viram um beija-flor ( Honey, com certeza ), mas não tentaram chamá-lo. Ele parecia feliz e adaptado à vida na natureza.... pois na última visita apareceu com uma companheira.
Nessa noite os Merger foram para casa satisfeitos. Tinham devolvido a Honey sua vida livre e natural. Em troca ele lhes dera os meses mais deliciosos de suas vidas.

Nenhum comentário: