terça-feira, julho 4

Estranhas criaturas que encontrei

Fonte : Revista Seleções
Data : Março de 1974
Autor : Mark Twain

Quatro estudos sobre animais, por um dos maiores humoristas de todos os tempos – o inimitável Mark Twain.

DOIS APRESSADOS
No deserto, após o café da manhã, vimos, pela primeira vez, um coiote. Ele é tão doméstico! – tão magro e esquelético, com um pelo tão feio, tão miserável, e com aquela aparência mais do que desconfiada. Quando vê alguém, levanta o beiço, mostra alguns dentinhos, e sai em disparada sobre suas patas macias, em direção ao arbusto mais próximo, olhando para trás, de vez em quando, até ficar fora do alcance de nossas armas; só então, pára, e nos dá uma boa olhada; aí, corre mais uns 50 metros, e pára de novo – até que, finalmente, o cinza de seu corpo se confunde com o da vegetação, e ele desaparece. Mas, se você demonstrar qualquer ressentimento contra o coiote, ele “passa sebo nas canelas”, e põe um latifúndio tão grande entre você e ele que, no momento em que você tiver feito uma mira bem cuidadosa, só mesmo um raio de longo alcance poderá atingi-lo.
Mas, ponha um cão bem rápido atrás dele – um cão com bastante autoconfiança, e que tenha sido criado para bater recordes de velocidade. O coiote sairá, como uma bala, de trás da moita, só parando de vez em quando, para dar aquele “sorrisinho” maroto por trás do ombro, o que encherá o cachorro de estímulo e ambição, e o fará abaixar mais ainda a cabeça, fincar as patas no chão, e levantar uma nuvem de poeira do deserto, ainda maior, atrás dele, como um rastro de sua corrida desenfreada em direção à glória.
Nessa altura, o cão estará apenas a uns 5 ou 6 metros atrás do coiote, só que não consegue entender por que nunca consegue chegar mais perto. Começa a ficar ressentido, e cada vez mais louco, ao notar que o coiote nunca dá sinais de cansaço, nem pára com aquele “sorriso” idiota; e fica ainda mais exasperado ao ver quão vergonhosamente está sendo “levado no beiço” por um estranho, e que raio de corredor é aquele bicho. Então, ele começa a ficar cansado, e o coiote é obrigado a afrouxar um pouco o passo, para não acabar com a brincadeira. Isso deixa o cão indignado, e ele começa a latir, suar e “praguejar”, concentrando as últimas energias para correr ainda mais, até que se vê, finalmente, a um ou dois metros do inimigo – e a uns três quilômetros de seus amigos. Aí, no exato instante em que uma nova esperança ilumina o seu coração canino, o coiote se vira, e dá uma “risadinha” silenciosa e irônica, como quem diz: “Bem, tenho que dar o fora outra vez, parceiro! Você sabe, amigos amigos, negócios à parte, e não posso ficar nisto o dia todo.” E sai voando, de novo, deixando o cachorro completamente desanimado, naquela vasta solidão.
Aquilo faz a cabeça do cão girar. Ele pára, e olha em torno; sobe até o monte mais próximo, e contempla as grandes distâncias; sacode a cabeça, desanimadamente, e, então, sem uma “palavra”, vira-se, e volta para o carro, lentamente, sentindo-se incomensuravelmente envergonhado, e decidido a hastear sua cauda a meio-pau por uma semana.

A FORMIGA IDIOTA
Quer me parecer que, em matéria de intelecto, a formiga é estranhamente superestimada. Estou me referindo à formiga comum, é claro; não tenho qualquer experiência com aquelas maravilhosas formigas suíças e africanas que votam, mantém exércitos ou escravos, e discutem sobre religião. Mas, estou convencido de que a formiga média é uma tapeação. Admito seu esforço; é o animal mais trabalhador do mundo – quando ninguém está olhando. Mas é contra sua cabeça-de-vento que me revolto.
Ela sai para fazer compras, pega alguma coisa, e o que faz? Vai para casa? Não, porque nem sabe onde fica sua casa. Pode estar a apenas um metro dali, mas não importa, ela não a encontra. Pega a sua carga – geralmente algo que não tem a menor utilidade para ela, nem para ninguém mais, e, quase sempre, sete vezes maior do que devia ser. Sobe aos lugares mais espinhosos para apanha-la, depois levanta-a sobre a cabeça, com sua força, e começa a voltar numa frenética correria. Aí, choca-se contra uma pedrinha, escala-a, com a carga às costas, rola pelo outro lado, espana a poeira do corpo, umedece as patinhas, agarra-se neuroticamente ao seu objeto, levanta-o no ar outra vez, e recomeça a caminhada, mas desta vez numa direção completamente diferente.
Ao fim de meia hora, já está a 15 centímetros do ponto de origem, e é hora de descansar sua carga no chão. Enxuga o suor, retesa os músculos, e sai às pressas, como sempre, sem destino certo. Faz inúmeros ziguezagues sobre o mesmo palmo de terra e, de vez em quando, choca-se contra a mesma pedrinha. Não se lembra nunca de já tê-la visto antes; olha em torno, para ver qual não é o caminho para casa, pega seu fardo, e repete todas as desventuras pelas quais já passou antes.
Finalmente, faz uma pausa para descansar, e uma amiga se aproxima. Evidentemente, a amiga lhe observa que uma perna de gafanhoto morto no ano anterior é uma ótima aquisição, e se oferece para ajuda-la a transportar a coisa para casa. Cada uma pega numa extremidade da perna do gafanhoto, e começam a puxar com toda a força em direções opostas. Daí apouco, fazem outra pausa para descansar, e discutem o assunto. Concluem que alguma coisa está errada, mas não sabem o quê. Então, tentam de novo. Mesmo resultado.
Seguem-se mútuas recriminações. Acaloram-se, e a discussão acaba em briga. Mordem-se as patas, durante algum tempo, depois roam para lá e para cá, até que uma delas perde uma pata ou uma antena, fazem as pazes e decidem voltar ao trabalho, da mesma forma insana de antes. Só que, agora, uma das formigas está em desvantagem, e a outra arrasta a carga ( e a outra formiga com ela ) numa direção definida.
Finalmente, quando aquela perna de gafanhoto foi arrastada durante horas sobre a mesma faixa de terra, e colocada exatamente sobre o local onde jazia primitivamente, as duas formigas, já suadas, inspecionam o objeto cuidadosamente, concluem que uma perna seca de gafanhoto não é grande coisa, afinal, e decidem recomeçar cada uma por si, em diferentes direções, até que uma delas encontre um prego velho, ou qualquer outra coisa que seja pesada o bastante para oferecer diversão, e inútil o suficiente para que uma formiga a deseje.

O CACHORRO SALSICHA
No trem, entre Baroda e Bombaim, na Índia, viajamos em companhia de um cavalheiro com um notável cachorro. Seu pêlo era macio, brilhante e preto, e parecia muito bem cortado. Era um cachorro muito comprido e baixinho, com patas curtinhas e estranhas que se dobravam para fora, mais ou menos como parênteses ao contrário ) (.
Na verdade, ele parecia ter sido feito à feição de um banco de parque, pela altura e comprimento. Achei o cachorro estruturalmente muito mal feito, devido à longa distância entre os suportes posteriores e inferiores. Com o tempo, sua parte de trás deveria vergar, e me pareceu que ele ficaria um cachorro mais prático e resistente se possuísse mais algumas pernas. Ainda não tinha começado a vergar, mas a forma das patas indicava que o peso excessivo sobre elas estava começando a se impor. Tinha ainda focinho comprido e orelhas muito caídas, além de uma aparência resignada.
Educadamente, achei melhor não ficar olhando muito para o cachorro. Sem dúvida, um homem com um cão como aquele devia se sentir como uma pessoa com um filho vesgo. Mas o cavalheiro parecia orgulhoso do cachorro. Disse que ele já tinha ganho várias medalhas em exposições na Índia e na Inglaterra, e que, quando passeavam em Londres, as pessoas paravam na rua para ver o cachorro. Naturalmente, não quis ofende-lo, mas quase comentei que, se você pega um cachorro, comprido e baixinho como aquele, e o faz desfilar por uma rua de qualquer cidade do mundo, e sem cobrar nada, qualquer pessoa é capaz de parar e olhar. Ele se orgulhava de seu cão receber prêmios. Mas isso não é nada: se eu fosse feito daquele jeito, com certeza que também ganharia prêmios.
Conclui que o homem estava levando o cachorro para caçar elefantes – pelas observações de que ele tinha apanhado caça grossa na Índia e na África. Mas, se fosse verdade, ele iria se desapontar. Não acredito que aquele cão fosse feito para elefantes. Faltava-lhe energia, caráter. Tudo isso era óbvio na humildade e resignação de seu focinho. Tenho certeza de que ele jamais atacaria um elefante. Talvez nem sequer corresse, se visse um – parecia mais um cachorro que se sentaria para rezar.

O CAMELO FAMINTO
Na Síria, certa vez, nas cabeceiras do Rio Jordão, um camelo pegou meu sobretudo, enquanto os carregadores armavam as tendas, e examinou-o tão detidamente como se quisesse mandar fazer um pelo mesmo modelo. Então, depois que se cansou de examina-lo como peça de vestuário, passou a examina-lo como peça de alimentação. Segurou-o com as patas, agarrou uma das mangas com os dentes, arrancou-a aos poucos, enquanto abria e fechava os olhos, como se estivesse numa espécie de êxtase religioso – como se nunca tivesse comido nada melhor do que um sobretudo, em toda a sua vida.
Lambeu os beiços algumas vezes, e preparou-se para a segunda manga. A seguir, experimentou o colarinho de veludo, e deu tal “sorriso” de contentamento que ficou claro que ele considerava o colarinho como o maior petisco de um sobretudo. Seguiram-se os bolsos, juntamente com algumas cápsulas de fuzil, pastilhas contra tosse e uns figos de Constantinopla.
Então, minha correspondência para o jornal escorregou, e ele não relutou em prova-la – algumas cartas e artigos, além de notas escritas à mão. Mas aí, ele começou a pisar em terreno perigoso, e sua sabedoria lhe indicou que aqueles documentos eram meio pesados para seu estômago. Às vezes, mastigava uma piada que o fazia se sacudir tanto que largava o papel. As coisas estavam ficando pretas, mas ele, corajosamente,abocanhava de novo o papel, até que, finalmente atacou alguns artigos que nem mesmo um camelo poderia mastigar e engolir impunemente.
Começou a arfar e arquejar, com os olhos meio para fora das órbitas, e a esticar as canelas; uns 15 minutos depois, caiu duro, e teve uma morte de indescritível agonia. Fui lá, puxei o manuscrito de sua boca, e descobri que aquela sensível criatura tinha encontrado a morte devorando um dos artigos mais suaves e legíveis que já ofereci ao respeitável público.

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