sábado, julho 22

Era uma vez um golfinho...

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1972
Autor : Maurice Shadbolt

A história de Opo, a fera boazinha que deu uma lição de fraternidade e amor.

A única história de fadas que jamais vivi começou no verão de 1955-56. Jovem escritor em começo de carreira, eu alugara uma casinha à beira-mar em Opononi, na remota região setentrional da Nova Zelândia, com a intenção de ali escrever minha primeira novela. Tinha um mês de férias do estúdio de filmes documentários para o qual trabalhava – e toda a ambição do mundo.
Jamais escrevi a tal novela. A vida escreveu à minha volta algo muito melhor, uma história que jamais consegui esquecer.
Certa manhã, pouco depois de ter chegado àquele vilarejo tranqüilo, saí para um passeio a pé. O centro do lugar não eram mais que um velho prédio colonial caindo aos pedaços, transformado em bar, ligado por uma rangente calçada de madeira a um armazém e agência do correio. E um pequeno cais abandonado com o declínio da navegação costeira. Havia talvez umas três ou quatro dúzias de casas, ocupadas principalmente por maori e por europeus aposentados. O vilarejo sobre a baia ficava situado ao lado de imensas dunas de areia amarela, com o mar aberto à sua frente e um banco de areia onde as ondas batiam fazendo espuma, de encontro ao qual muitos navios se tinham destroçado no tempo dos pioneiros. Um lugar tranqüilo, com muito passado e pouco futuro. O tipo do lugar onde nada de importante acontece. Talvez exatamente por isso algo aconteceu, e a vida não podia ter escolhido cenário mais luminoso.
Encontrei um bando de pessoas agitadas no cais. Olhavam para o mar e apontavam. Um barquinho de pesca vinha voltando, o que não era nada demais. Vi então uma barbatana perseguindo o barco. Não o seguia apenas, circulava-o . Tubarão? Não, claro que não. Um golfinho. Mas eu já vira golfinhos por ali, brincando à volta dos barcos.
Quando o barco atracou, o golfinho pareceu deitar âncora ao seu lado, boiando pacientemente. O pescador, muito suavemente, começou a esfregar-lhe as costas com um pano macio. O golfinho virou de barriga para cima, entregando-se inteiro ao prazer. Percebi então que estava sendo testemunha de algo notável. Afinal, aquele não era um golfinho domesticado e treinado, dos que aparecem em espetáculos aquáticos; era uma criatura dos mares, buscando, por iniciativa própria, a companhia de humanos. Desde a antiguidade das histórias gregas e romanas sobre amizades entre homens e golfinhos, tal intimidade poucas vezes havia sido registrada.
Como eu, a maioria dos habitantes de Opononi, no começo, pensara que aquela barbatana nas águas tranqüilas da sua baía era tubarão. Depois de estabelecida a verdadeira identidade, durante algum tempo ficaram sem saber o que fazer com o estranho visitante. Mas logo começaram a fazer-lhe festas com remos e vassouras de pano e tentaram dar-lhe peixe para comer. Opo, como logo o batizaram, reagia cada vez com mais afeição.
Nos longos dias de verão, Opo começou a passar mais e mais tempo perto da praia, nadando cautelosamente entre os banhistas. Movimentos súbitos e violentos faziam-no disparar para o mar alto. Mas acabou acostumando-se aos seres humanos mais animados, especialmente crianças pequenas. Aprendeu a aceitar carinhos e abraços. Às vezes – como nas histórias antigas – até deixava-se cavalgar um metro ou dois por uma criança às gargalhadas.
No meu último dia de férias, fui nadar na baía, e, como esperava, dei com Opo emergindo alegremente ao meu lado, com o seu engraçado nariz em forma de garrafa. Ela (acabou-se verificando que era uma fêmea da variedade tursiops ) rolava e mergulhava ao meu lado, depois passava por baixo, e finalmente seguiu-me até à praia, onde a esperavam as crianças.
Para mim, a história deveria acabar aqui: voltei à cidade no dia seguinte. Eu devia ter visto logo. Algumas semanas depois, Opo ficara famosa. O golfinho de Opononi estava nas manchetes dos jornais, não só na Nova Zelândia, mas no mundo todo. Havia apenas alguns minutos que estava de volta ao estúdio, quando o chefe de produção me chamou ao seu gabinete. “Esse golfinho”, ele perguntou, “é verdade essa história?” Não tive o menor problema em confirmar.
“Nesse caso”, disse ele, “é melhor você voltar lá e dar mais uma olhada, só para ter a certeza. E desta vez leve um cinegrafista junto.”
Assim, em menos de uma semana, eu estava de volta à Opononi, onde encontrei as coisas tremendamente mudadas. O que era uma aldeia tranqüila transformara-se numa massa barulhenta de gente. Não havia uma cama vaga no hotel e todas as cabanas de beira de praia explodiam de gente. Onde era possível acampar, ao longo da praia, barracas ocupavam todos os espaços. Incrível como pareça, havia até um guarda para dirigir o mar de carros que haviam vencido as difíceis estradas rurais até Opononi.
Arranjamos lugar para dormir com um casal de velhinhos aposentados. Na manhã seguinte, saí para renovar minha amizade com Opo. Encontrei-a brincando entre os banhistas; ela aprendera a equilibrar uma bola de borracha no focinho, deixá-la rolar pela barriga e depois dispara-la com a cauda a uns 50 metros de distância. Talvez se lembrasse de mim, talvez fosse apenas atraída pela visão e pelo barulho da câmara: o fato é que ela enroscou-se devagarinho pelas minhas pernas, voltou-se e, não há dúvida, fixou seu olhar na máquina.
Opo não demorou a passar de bolas de borracha para garrafas de cerveja, cheias ou vazias. Equilibrava uma garrafa delicadamente no focinho, arremessava-a para o alto e aparava-a na volta. Claro que ninguém lhe ensinara o truque; aprendera sozinha, para divertir seus amigos humanos. Quando as crianças da escola de Opononi faziam roda e cantavam na água, Opo entrava no meio e ficar nadando. Ele aprendeu também, era óbvio, a apreciar os aplausos do público. Quando os recebia, dava um salto enorme e feliz fora da água, brilhando à luz do sol. Mas, quando crianças estavam por perto, nunca fazia isso; Opo jamais machucou ninguém, e, se alguém a machucava, agarrando-se às suas nadadeiras ou à cauda, ela escapava rapidamente, batendo zangada com a cauda na água.
Nossas melhores cenas foram sobre a amizade que se estabelecera entre Opo e uma garotinha tímida de Opononi, Jill Baker, de 13 anos.
Quando a menina estava por perto, Opo não queria mais ninguém. Se Jill tentava fugir ao golfinho cercado de gente, nadando para longe do cais, Opo sempre dava jeito de encontrá-la e ir ficar ao seu lado. Para evitar as multidões, Jill passou a nadar com Opo à noite, quando os espectadores haviam ido embora. Filha única e menina solitária, ela achava que o golfinho era igualmente solitário. A amizade delas, em meio a toda aquela turbulência, era ainda mais estranha e comovedora.
Quem tenha estado em Opononi naquele fantástico verão nunca o esquecerá. Embora sempre crescente, a multidão jamais provocou distúrbios. As pessoas pareciam ficar mais gentis por influência do golfinho. Chegavam diariamente, aos milhares, e às vezes caíam na água com roupa e tudo, na esperança de passar a mão em Opo. Não eram só neozelandeses: australianos e americanos começavam a aparecer. Era aparente que Opo logo viria a ser um dos tesouros turísticos do Pacífico.
Como Anthony Alpers registra tão vividamente em seu livro Delphins, Opo tinha o efeito de uma benção sobre a crescente massa humana – era como “uma cena bíblica, com os crentes simples tentando tocar nas vestes de um santo profeta e conquistar a redenção”. Disse um velho maori: “A missão da vida de Opo é a de unir todas as pessoas, todas as raças, em paz e amizade.”
Muitas vezes pensei nisso à noite, quando as multidões haviam ido embora e Jill nadava sozinha, no escuro, com Opo.
Eu gostaria, no entanto, que alguns de nós se tivessem dado ao trabalho de reler o que aconteceu na cidade colonial romana de Hipona, na África do Norte, há quase 2.000 anos. É o único outro caso que a história registra de um golfinho selvagem ter-se tornado amigo de toda uma comunidade – e de a ter modificado. Como Plínio, o Velho, conta sobre Hipona, na sua História Natural, o golfinho. Como o de Opononi, atraiu gente de quilômetros de distância. Todas as autoridades provinciais que vinham testemunhar o fato tinham de ser recebidas e festejadas. Hipona não tardou em perder suas características de paz e tranqüilidade. No fim, os habitantes da cidade tiveram de livrar-se secretamente do animal.
Opononi revivia no Pacífico Sul a história de Hipona. Embora a maioria das pessoas da aldeia, os comerciantes principalmente, estivessem felizes com a invasão, havia quem se ressentisse das mudanças acarretadas pelo golfinho.
No dia 8 de março de 1956, um dia antes da minha volta à cidade, fui dizer adeus a Opo, mas não a encontrei. Saí de lá meio desapontado.
Opo foi encontrada morta no dia seguinte, seu corpo preso às rochas. Nunca se soube exatamente de que morreu, mas muitos, talvez a maioria da população local, achavam que Opo tinha sido morta para pôr fim ao paralelo com Hipona.
O corpo de Opo foi trazido para a praia, em meio a crianças e maori que choravam. O governador-geral, Sir Milloughby Norrie, mandou um telegrama de pesamos. Algumas bandeiras adejavam a meio pau. Dois dias depois, Opo foi reverentemente enterrada numa funda cova aberta por velhos soldados. A cerimônia foi celebrada por maori. Palavras cristãs foram pronunciadas.
Para mim, ainda não era o fim. Depois de uma dúzia de anos e seis livros publicados, eu ainda não escrevera uma palavra sobre Opo. Aquele verão parecia-me mais um sonho que uma recordação, algo à parte. Difícil acreditar que jamais tivesse acontecido. Um dia, num mundo enfermo de guerras e poluição, o golfinho reapareceu para me perseguir. Estaria querendo dizer que o homem dever lembrar-se, antes que seja tarde demais, de que ele é apenas irmão de toda a criação, da ave que voa e das folhas das árvores?
Fiz então a única coisa possível. Tentei apreender a verdade de Opo na minha novela, O verão do Golfinho.
No verão passado, então, descobri que não era apenas o meu conto de fadas. Voltei a Opononi pela primeira vez, como se uma dívida tivesse sido saldada. É de novo uma aldeia tranqüila, suas praias claras batidas por águas preguiçosas. Algumas coisas mudaram. O velho prédio colonial que abrigava o bar foi destruído por um incêndio; o novo bar é uma coisa sem caráter. O túmulo de Opo está no meio da aldeia, sempre com flores. Ali perto há uma estátua de um menino com um golfinho. Opononi tornou-se lugar de peregrinação para milhares de pessoas que jamais viram Opo movendo-se magicamente com humanos.
Fiquei ali parado, o olhar perdido no mar. “Conta a história do golfinho, mamãe...” ouvi uma menininha pedir. “Conta a história do golfinho que vivia aqui.” “Bem”, disse a mãe, “era uma vez...”
E a história começava de novo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Hola: Quin conte més bónic i tendre. M'ha agradat molt. Encara que hi han paraules que no entenc bé si que he pogut captar el que vol transmetre aquesta història que m'ha arribat al cor.

Et felicito!

Tornaré per llegir-ne més.

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