terça-feira, julho 18

Outra História de amor

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1971
Autor : Loudon Winwright

Bem no meio de um fim-de-semana longo de Ano Novo, cheio de sol sobre a neve linda, nosso cachorro morreu. Mais precisamente, mandamos que sua vida fosse extinta por um veterinário que concordou que aquilo era o que se devia fazer por um animal velho que padecia de um mal tão doloroso e incurável. Nunca tive uma noção tão clara da tênue linha entre agora e nunca mais quanto tive ao segura-lo naquela mesa do veterinário.
Um tanto perturbado por meus sentimentos, e por alguma estranha razão pensando não em Lassie, mais em Love Story, vou arriscar uma versão da pergunta que abre o romance de Erich Segal: que se pode dizer de um cachorro de 11 anos e meio que morreu? Que ele não era nada inteligente. Que sujava tudo quando comia. Que reluzia quando corria a velocidades maravilhosas pelos campos, rolava rosnando pela neve e saltava sobre muros de pedra, uma mancha viva cor de castanha. Que não ligava muito para Mozart e Bach, mas que os solos de violino e de acordeão o faziam uivar. Que quebrava seis copos com uma rabanada. Que, quando eu lhe perguntava que lugar eu ocupava entre as pessoas de quem ele gostava, ele batia o rabo no chão e sorria.
Havia uma qualidade totalmente não humana no seu amor. Quase todo mundo era um alvo aceitável para o seu afeto e, ao contrário desses animais de um só dono, que lambem a mão do dono e logo esquartejam o filho do vizinho, ele não ameaçava nada.
Não que ele não soubesse escolher. Ele era meio setter irlandês e meio cão de busca dourado e não era nenhum vagabundo. Não acompanhava estranhos. Suas investigações diárias, embora cobrissem grandes extensões, quase sempre o traziam de volta a casa, à noite. Gostava de dormir nos tapetes, geralmente onde era provável que a gente tropeçasse nele. Gostava de andar de automóvel. Mais que tudo, gostava de ser convidado para passeios a pé e trabalhava como um guia avançado em volta do caminhante – na frente, atrás, ao lado, às vezes numa corrida louca a boa distância – e no inverno, quando descansava de uma dessas admiráveis arrancadas em todas as direções, quebrava o gelo num riacho para refrescar a barriga e a língua.
Em quase todos os estados de espírito menos a alegria, ele era de uma tranqüilidade exemplar. Uma paciência calma, de olho arregalado, caracterizava seu estilo. Com os outros cães ele era alerta e atirado, mas não agressivo, e, embora seu pêlo se eriçasse maravilhosamente e ele rosnasse bem, quando desafiado, tinha uma aptidão notável para evitar lutas e sabia escapar de uma briga com uma displicência que sugeria que aquilo não valeria a pena. No fim da vida, ele foi maltratado por um cachorro muito mais jovem e mais forte, na mesma rua, mas aceitava aquela indignidade como se fosse normal que o cachorrinho que ele antes tinha ensinado a brincar agora abusasse dele. Mesmo quando ficou bem fraco e velho, sempre saia correndo para defender seu território.
Espero que ele tenha tido uma vida sexual cheia e feliz, mas só sei de um caso seu, quando ele foi pai de uma ninhada. Contamos uma história a respeito dessa ligação arranjada ( não sei mais ao certo se é inteiramente verdade ): John Henry foi levado de carro ao veterinário para um encontro supervisionado. Depois o veterinário disse que ele tinha certeza de que tudo dera certo, mas que talvez, para garantia, os dois devessem ser reunidos novamente. Então, no dia seguinte, nosso cachorro foi posto no carro e conduzido a seu encontro, que foi novamente considerado bem sucedido. O caso foi declarado consumado e encerrado. O cachorro voltou para casa. No dia seguinte, foi encontrado no carro, provavelmente aguardando outra viagem e outro encontro.
Ao contrário da personagem condenado de Segal, ele não era perfeito. De vez em quando seu gosto em matéria de comida voltava-se para o lixo e ele derrubava latas, em busca dos melhores bocados. Cavava buracos nos gramados e gostava de deitar-se sobre plantinhas novas. Era um descobridor de lama. Quando encontrava alguma coisa – muitas vezes invisível e até inexistente – para a qual latir, latia alto e ignorava completamente as ordens de parar e voltar para casa. Orgulho-me de uma parte de sua ignorância. Não sabia truque algum, a não ser uma espécie de aperto de pata meio desenxabido que ele usava como último recurso em sua busca perpétua e animada de carinho.
Nos últimos dias ele tinha grande dificuldade em levantar-se. A dor, mesmo disfarçada por comprimidos, deixava-o estúpido de exaustão e tornou-se claro, apesar de toda a nossa relutância, que o que ele precisava mais era de um empurrão para fora da vida.
Na noite depois que aquilo aconteceu, sonhei que meu filho o estava chamando. O menino tinha um jeito de chamar o cachorro. Acordei. A vida acabava sendo uma sucessão de cachorros, pensei, e pensei naqueles de que me lembrava.
De repente, fantasmas na casa. Cachorros velhos. Dormi e quando acordei de novo, à meia-luz mortiça, tive quase certeza de ouvir unhas arranhando o chão da sala e seu latido discreto indicando que queria sair. Não hei de viver com muitos outros cães, e jamais hei de viver com outro cão como ele.

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