domingo, julho 23

A porta aberta

Fonte : Revista Seleções
Data : Março de 1982
Autor : Saki ( H. H. Munro )

“Seus corpos nunca foram encontrados”, contou ela.

Minha tia já vai descer, Sr. Nuttel”, disse a jovem de 15 anos, com um ar muito seguro de si. “Enquanto isso, o senhor vai ter de me aturar.”
Franton Nuttel tentou dizer uma frase correta que agradasse à mocinha, sem parecer indevidamente satisfeito com a ausência da tia. No seu íntimo, duvidava um pouco de que aquelas visitas formais ajudassem a curar a depressão nervosa que ele supostamente deveria estar tratando na quietude do campo.
“Vou lhe dar cartas de apresentação para todos os meus amigos de lá”, tinha dito a irmã dele. “Senão, você vai ficar completamente isolado, sem falar com ninguém, e seus nervos vão ficar cada vez piores.”
“O senhor conhece muita gente aqui pelas redondezas?” perguntou a sobrinha, quando lhe pareceu que o silêncio já havia durado bastante.
“Não conheço praticamente ninguém”, respondeu Framton. “Minha irmã esteve aqui de visita há quatro anos, e foi ela quem me deu umas cartas de apresentação.”
“O senhor não sabe nada sobre a minha tia?”, acrescentou a menina.
“Sei apenas seu nome e endereço.”
“A grande tragédia da vida dela aconteceu há três anos”, prosseguiu a garota. “Isso foi depois de sua irmã ter estado aqui.”
“Que tragédia?”, indagou Framton. Ele estava achando que aquele lugar tranqüilo não combinava nada bem com tragédias.
“O senhor é capaz de estar intrigado com o fato de aquela porta envidraçada estar aberta nesta época do ano”, disse-lhe a sobrinha, apontando para uma porta que dava para um gramado. “Por aquela porta, faz hoje exatamente três anos, o marido e os dois irmãos mais novos da minha tia saíram para caçar. Quando atravessavam o lamaçal foram engolidos por um pântano traiçoeiro. Seus corpos nunca mais apareceram.”
Aqui a voz da menina tornou-se hesitante. “A pobre titia sempre pensa que eles vão voltar algum dia – eles e o cachorrinho que sumiu junto – e que vão entrar aí por essa porta. É por isso que ela fica aberta todos os dias até o entardecer. Ela passa a vida me contando como eles saíram – meu tio com sua capa de chuva branca no braço. Sabe, às vezes, em tardes calmas como esta, na hora do crepúsculo, tenho uma sensação arrepiante de que eles vão mesmo entrar aí por esta porta...”
Um estremecimento de horror passou pelo seu corpo, e ela calou-se. Foi com alívio que Framton viu entrar na sala, toda animada, a tal tia, desculpando-se por vir tarde.
“Espero que não se incomode que a porta esteja aberta”, disse ela. “Meu marido e meus irmãos devem estar chegando de uma caçada, e eles sempre entram por essa porta.”
Continuou tagarelando animadamente sobre as caçadas de patos naquele inverno. Framton fez desesperados esforços com o fim de desviar a conversa para um assunto menos pavoroso, mas estava percebendo que a dona da casa não lhe prestava muita atenção, pois desviava continuamente o aflito olhar em direção à porta aberta.
“Os médicos me ordenaram um completo repouso, não posso me enervar nem fazer exercícios físicos”, anunciou Framton, que imaginava – como muita gente – que completos estranhos ficam fascinados com os menores detalhes das doenças da gente.
“Sim?”, respondeu a Sra. Sappleton, com ar distraído. De repente animou-se, mas não devido á conversa de Framton.
“Até que enfim chegaram!” exclamou ela. “Bem a tempo para o chá.”
Framton estremeceu e, com um ar compreensivo, virou-se para a sobrinha. A menina estava olhando arregalada para a janela aberta, seus olhos repletos de terror. Framton voltou-se de repente e olhou na mesma direção.
À meia-luz do crepúsculo viam-se três vultos andando silenciosamente pelo gramado, acompanhados por um cachorrinho. Todos traziam espingardas e um vinha de capa branca pelos ombros.
Framton agarrou sua bengala e saiu ventando pela porta do saguão e pelo caminho de cascalho, sem reparar no que fazia.
“Cá estamos, querida”, disse o homem da capa branca, entrando pela porta do jardim. “Quem é que saiu assim correndo quando nós aparecemos?”
“Um tal Sr. Nuttel”, respondeu a Sra. Sappleton. “Quando vocês chegaram, saiu voando sem uma palavra de explicação! Até parecia que tinha visto um fantasma.”
“Acho que foi por causa do cachorrinho”, disse a sobrinha placidamente. “Ele me contou que tem horror a cães. Uma vez, nas margens do rio Ganges, ele foi perseguido por uma matilha de cães esfaimados, fugiu para um cemitério e foi obrigado a passar a noite dentro de uma cova recém-aberta, enquanto os animais rosnavam e babavam lá em cima. Realmente é mais do que suficiente para que uma pessoa fique nervosa.”

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