quinta-feira, agosto 30

Breve encontro com Hemingway

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1997
Autor : Arthur Higbee ( do International Herald Tribune )

Durante duas décadas, Ernest Hemingway e Scott Fitzgerald viveram amizade de altos e baixos. . Deve ter sido num dos baixos que Fitzgerald observou: “Ernest sempre daria a mão a um homem que estivesse acima dele.”

Encontrei Hemingway certa vez quando estava abaixo dele. Eu era correspondente da United Press no escritório em Paris – patamar de respeitável altura – mas Hemingway ganhara o prêmio Nobel. O encontro aconteceu no bar do Ritz, à época decorado com belos murais de cavaleiros do século 16.
O ano era 1956. Uma daquelas lindas noites de verão em que o ar da Île de Fance parecia cheio de ouro em pó. Eu estava a uma mesa com a garota. Era nossa despedida. No dia seguinte, toda a paixão se esgotaria, ela estaria voltando para os Estados Unidos. Eu, com o fim do amor, da esperança e sem razão para viver, entraria para a legião estrangeira francesa, iria para um mosteiro ou talvez até pulasse daquele patamar.
Começáramos uma rodada de bloody mary. Ela deu um gole, olhou em volta e subitamente, com mais vivacidade do que eu vira em semanas, exclamou:
“Aquele não é Ernest Hemingway?”
No fim do bar, falando ao telefone, havia um homem alto de barba branca, bonito e imponente o bastante para ser Deus, o Todo Poderoso.
“Sim, é Hemingway”, respondi.
“Por que não o convida para tomar um drinque conosco?”, perguntou ela, sabendo que eu não ousaria.
Que importava se o barman do Ritz me pusesse para fora? Minha vida acabara mesmo.
“Vou chamá-lo”
“Não, não!”, exclamou. “Eu estava brincando.”
“Pois eu não”, respondi, ajeitando os ombros e indo até lá.
Hemingway terminara a conversa telefônica.
“Senhor Hemingway, a jovem da última mesa e eu gostaríamos que nos acompanhasse num drinque, se tiver tempo.”
Ele olhou para mim, depois para ela. Ou porque eu estava tão obviamente em apuros ou porque ela era tão linda – mistura de Gene Tierney com Audrey Hepburn – ele respondeu:
“Tenho uma ligação para fazer, depois vou até lá.”
Quando voltei, a garota perguntou: “O que ele disse?”
“Que vem tomar um drinque conosco. Talvez estivesse só brincando.”
Minutos depois, quando ela e eu evitávamos olhar para o outro lado do bar, uma sombra surgiu sobre a mesa e Hemingway sentou-se. Pedimos outra rodada de boody Mary.
Ele nos contou que iria assistir às touradas na Espanha e que se havia recuperado completamente dos ferimentos sofridos quando seu pequeno avião caíra na selva africana meses antes. Perguntou que tipo de carro eu dirigia. Quando respondi que tinha um Triumph TR-2 – grande motor com chassis bem pequeno -, ele comentou: “Com um desses se anda mesmo!”
Conversamos alguns instantes. Depois ele olhou para o relógio e disse: “Gostaria de ficar, mas tenho um jantar. Foi bom falar com vocês.”
A garota pegou minha mão e sorriu calorosamente pela primeira vez em semanas: “Você é corajoso”, elogiou.
Pedi a conta. “Monsieur Hemingway a payé”, respondeu o garçom. O senhor Hemingway pagara os drinques.
A noite revelou-se linda – tudo como havia sido um dia. Embora a garota fosse partir na manhã seguinte – tinha compromissos familiares nos EUA – prometeu que voltaria no outono, e voltou. Mas isso é outra história.
Anos depois li que Hemingway, famoso mundialmente mas nem sempre reconhecido, gostava quando estranhos chegavam para pedir autógrafo ou oferecer-lhe um drinque.
De qualquer forma, ele estendeu-me a mão quando eu estava abaixo dele.

quarta-feira, agosto 29

Quando os pais são ambiciosos demais

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereiro de 1999
Autor : Helmut Zoepfl

Não negue às crianças o direito de desfrutar a infância!

Três mães estão sentadas num banco da pracinha observando os filhos com satisfação. Uma senhora se junta a elas. Depois de algum tempo, uma das mães diz:
“Olhem só a minha filha. Ela reuniu um monte de pedras e está contando. Ouçam! Ela já sabe contar até cem!”
“Grande coisa!”, contesta a segunda mãe. “Olhem só! Meu filho tem 4 anos e meio e sabem o que tem nas mãos? Um livro. Acreditem ou não, o garoto já sabe ler perfeitamente.”
“E o que pensam vocês que meu garoto está fazendo?”, replica a terceira mãe.
“Não está só rabiscando naquele papel, não. Está escrevendo uma pequena redação intitulada ‘Uma tarde agradável no parque.’”
“E então?”, perguntam as três mães à senhora que chegou depois.
“Em sua opinião, qual das crianças é a mais esperta?”
“Crianças?”, contesta a senhora tristemente. “Que crianças? Não estou vendo criança nenhuma!”
Sejamos francos: que pais não estão convencidos de que os filhos possuem dotes excepcionais? Essa confiança na habilidade de suas proles é admirável. Não há nada mais prejudicial, porém, do que estabelecer muito cedo uma rotina intelectual para os filhos.
Nos últimos anos, soluções engenhosas vem surgindo, uma trás da outra. E se os pais não aderem à última moda, acabam se culpando por haver prejudicado as possibilidades de sucesso dos filhos. É o que vem acontecendo, em nome da ‘educação de elite’ e do ‘incentivo às crianças superdotadas’.
A mera definição do termo já é problema. Tanto ‘elite’ quanto ‘superdotado’ não são conceitos cientificamente precisos e aceitos – cada qual entende tais conceitos a seu modo. O termo ‘inteligência’ é ainda pior. No campo da psicologia aplica-se a seguinte definição inespecífica: “Inteligência é aquilo que pode ser medido por meio de um teste de inteligência.” A definição não revela alto grau de inteligência por parte daqueles que desejam criar um programa em torno dela.
Qualquer cientista honesto irá admitir que existem limites à nossa habilidade de medir características humanas e que os métodos dos testes são freqüentemente questionáveis. Além do mais, sabe-se que quanto mais jovem o indivíduo mais difícil é julgar se possui algum talento. São poucos os casos em que é possível prever as habilidades que se desenvolverão mais tarde. São muitos os fatores que atuam no desenvolvimento de um talento: influências genéticas, ritmo individual de desenvolvimento, efeitos do relacionamento social, encontros fortuitos, bem como acontecimentos que possam motivar ou bloquear o desenvolvimento da criança.
Só há um prognóstico seguro: se o estímulo às crianças superdotadas não for tratado com a maior sensibilidade, as conseqüências poderão ser desastrosas. Pais exageradamente ambiciosos são propensos a diagnosticar – de forma errada – os filhos como superdotados. Imediatamente após o nascimento, incentivam desigualmente as habilidades cognitivas da lógica, fala e pensamento, negligenciando o corpo e a alma.
Equipes das escolas maternais continuam reclamando de pais que desejam transformar a escola em laboratório de ensino que inclua treinamento em leitura, escrita e aritmética. Vigiam e questionam cada minuto que o filho esteja ‘simplesmente’ cantando, desenhando ou brincando.

terça-feira, agosto 28

Uma escola para Dave

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereito de 1999
Autor : Peter Michelmore

Ele tinha mais a aprender com Frank do que imaginava.

Numa tarde do outono de 1993, Dave Blair, 17 anos, estava mais uma vez “matando” aula, seguindo para a porta da escola.
Dave não gostava de estudar e deixava isso claro. Conseqüentemente, os professores nem sempre gostavam de Dave. Eles o acusavam de ser “impulsivo e grosseiro”. Talvez fosse mesmo, mas Dave não se importava com isso. O rapaz de cabelos escuros era extrovertido e popular entre os colegas, mas se sentia perdido na sala de aula. Lia com dificuldade e, quando empacava em algum trecho, percebia o desagrado dos professores.
“A escola não adianta nada para mim”, costumava dizer. “Acho que vou desistir.”
Ele só hesitava porque iria desapontar a mãe divorciada, que mantinha três empregos para poder pagar as contas. Agora, fora da escola, Dave viu um amigo aproximar-se de um trailer estacionado nos fundos do prédio desde agosto.
“O que esse trailer está fazendo aí?” perguntou.
“Vou mostrar a você”, respondeu o garoto.
Numa área ampla, oito adolescentes espalharam-se por algumas mesas.
“Eis aqui alguém que pode ajudar você” disse o amigo de Dave, apresentando-o a Sue Scott, mulher de cabelos castanhos e uns trinta e poucos anos, de pé, diante do grupo.
Dave não sabia o que pensar daqueles garotos estranhos. Estava claro que se tratava de uma turma para deficientes – adolescentes com autismo, paralisia cerebral, deficiência mental. Um deles disse algumas palavras incoerentes, em voz alta, mas a maioria permaneceu em silêncio.
Apontando para um jovem de ombros largos, olhos estreitos e oblíquos, Sue Scott disse:
“Este é Frank Howard, ele vai apresentar você a todos.”
Sorrindo timidamente, Frank, um rapaz de 20 anos portador da síndrome de Down, acompanhou Dave até cada um deles, enquanto a professora pronunciava em voz alta seus nomes. Nem Frank nem Dave disseram palavra.
“Este é o nosso recreio”, explicou Sue Scott, fingindo não perceber a surpresa no rosto de Dave. “Estamos brincando com um jogo de dados chamado Yahtzee.”
Dave observou os garotos chocalharem e lançarem os dados. A princípio sentiu pena deles. Mas, à medida que iam dominando o jogo, Dave viu o rosto deles brilhar. Logo Dave também estava participando.
“Muito bem, Frank!” gritou quando o jovem lançou os dados, conseguindo boa jogada.
Ei, gostei disso, disse Dave a si mesmo quando retornava às suas aulas. Talvez eu volte para outra visita.

A melhor fase de sua vida. Dave descobriu que Frank Howard fazia parte de um projeto experimental para integrar jovens deficientes à escola Hayes. E soube que a professora Sue Scott desenvolvia um programa destinado a levar jovens a agirem como defensores, mentores e amigos dos deficientes.
Para alegria de Sue Scott, Dave reapareceu no trailer na tarde seguinte. Quando entrou, Frank Howard correu para o seu lado.
“Oi!”, disse Frank, ansioso.
Os dois sentaram-se juntos enquanto Sue Scott e alguns voluntários faziam uma demonstração da comunicação por sinais. Toda vez que Frank entendia corretamente um gesto, Dave assentia com a cabeça e Frank abria um largo sorriso.
Um dia Frank, com uma expressão de orgulho nos olhos, encontrou Dave na porta. Frank tinha falado muito pouco com ele, mas agora parecia estar a ponto de dizer algo. Finalmente conseguiu.
“Dave”, disse ele, em voz baixa mas clara.
Esse simples som, seu nome, emocionou Dave de uma forma que o surpreendeu.
Ele logo percebeu que poderia ser útil na turma de Sue Scott. Ela enfatizava as capacidades e não as deficiências. Isso lhe disse alguma coisa. Sabia o que era enfrentar as próprias dificuldades. Também viu como Frank estava sempre ávido por aprender, embora tudo fosse difícil para ele. As visitas de Dave ao trailer tornaram-se uma rotina diária.
O espírito alegre e caloroso de Frank despertou o senso de humor de Dave. Um dia, fazendo palhaçadas, Dave imitou o rosto severo de um professor e ordenou a Frank que deixasse de brincadeiras. Sabendo que o outro estava fingindo, Frank começou a imitar o modo como Elvis Presley dançava, o que fez Dave rolar de rir.
Mais tarde, quando alguns amigos, intrigados, perguntaram por que ele andava com Frank, Dave respondeu:
“Temos mais coisas em comuns do que diferenças.”
Em um bilhete para Sue Scott, a mãe de Frank, Donna, escreveu:
“Meu filho está vivendo a melhor fase de sua vida.”
Não era só divertimento, porém. Usando fotos de sinais de trânsito, Dave ajudava Frank a reconhecer palavras como perigo e pare. Com o auxílio de um livro de receitas com ilustrações, ensinou Frank a fazer panquecas. Com a ajuda de Dave, Frank também praticava caligrafia, preenchia cronogramas e aprendia a encontrar as salas de aula.
Dave, por sua vez, sentia-se útil. Durante uma aula de química queimou a mão acidentalmente em vidro derretido. Na aula que se seguiu, com a queimadura latejando, pediu à professora permissão para ir buscar uma bolsa de gelo.
“Você está fingindo”, censurou ela. “Não pode estar doendo tanto.”
Magoado com a repreensão, Dave saiu tempestuosamente da sala. Ainda estava zangado quando entrou pisando forte no trailer.
“Para mim chega!”, disse para Sue Scott. “Vou abandonar a escola”
Nesse momento, seu olhar fixou-se em Frank, que acenava para ele. Aos poucos a mágoa de Dave passou. Ele não podia simplesmente ir embora. Não sentiria mais pena de si mesmo, decidiu, não falaria mais em sair da escola.
“O que há, grande Frank?”, disse por fim, indo até ele.

Dançando num concerto de rock.
Durante o inverno e a primavera de 1994, Dave ajudou a promover a integração dos jovens deficientes na vida estudantil. Um rapaz começou a freqüentar regularmente as aulas de matemática; outros, as de economia doméstica, trabalhos com madeira e educação física. A maior parte deles estava aceita.
Um dia, quando fazia compras com o filho, Donna viu um grupo de adolescentes vir na direção deles.
“Oi Frank!”, disseram calorosamente.
“Vocês estudam na escola Hayes?”, perguntou Donna.
“Estudamos, foi lá que conhecemos Frank”, respondeu um garoto.
Donna logo percebeu por que eles eram tão amáveis com Frank.
“Tchau, Frank, dê um alô para o Dave”, disse um deles quando se afastaram.
No piquenique do fim de ano escolar, ela notou como Dave e seu filho eram amigos.
“Dave está ajudando Frank a desenvolver todas as suas potencialidades”, contou-lhe Sue Scott. “E Frank deu a Dave a oportunidade de se destacar quando mais precisava disso.”
Instintivamente Donna confiou em Dave e pensou como seria bom se Frank saísse uma noite com o amigo. Lembrou-se das quatro entradas que tinha comprado para um show de rock, duas das quais eram para a sua filha, Aimee, e uma amiga.
Armando-se de coragem, Donna perguntou a Dave:
“Você levaria meu filho ao show do Aerosmith?”
“Seria um grande prazer”, respondeu Dave.
No anfiteatro Frank pulava ao ritmo da música e dedilhava uma guitarra imaginária, os olhos cheios de entusiasmo. Mais tarde, espremidos na multidão, Dave emprenhava-se em não se perder do amigo. Aimee ficou observando os dois descerem a escada.
“Dave não se importa com o que as pessoas pensam”, disse para a amiga. “Ele está segurando a mão de Frank.”

“Amigos para sempre”. Quando Dave conseguiu um emprego à noite e nos fins de semana em um restaurante, encontrou um jeito de incluir Frank Uma organização não lucrativa tinha um programa de treinamento profissional para deficientes. A organização concordou em treinar Frank para lavar pratos no restaurante. Dave, porém, tinha outras idéias.
Os membros do programa de amigos dos deficientes que paravam para comer ficavam encantados em ver Frank arrumando e tirando as mesas.
“Quero que ele conviva com as pessoas”, dizia-lhes Dave.
Mas as muitas horas no restaurante aumentavam os problemas de Dave na escola.
“Nesse ritmo você não vai se formar”, observou o orientador no último ano. “Você corre o risco de voltar no próximo período.”
Enquanto isso, Sue Scott elaborou para seus alunos uma escala de notas avaliando assiduidade, atenção, comportamento, asseio e companheirismo. Frank iria obter o certificado e formar-se com o restante da turma.
Quando Dave soube da notícia, disse para Sue:
“Vou me formar com Frank. Não perco isso de jeito nenhum.”
E estudou como nunca.
Num belo dia de sábado, em junho de 1995, Dave ouviu com orgulho o nome de Frank Howard ser chamado e viu o amigo receber o certificado. Os olhos de Donna Howard brilhavam quando ela ouviu os aplausos e testemunhou a aceitação do filho. Nunca tinha sonhado que isso fosse possível. Então Dave atravessou o palco para receber seu diploma. A mãe dele estava eufórica por ver o filho concluir o curso.
Mais tarde, na festa, Dave tirou do bolso dois cordões de prata com pendentes também de prata em formato de trevo e deu um deles para Frank. Em um dos lados de cada trevo ele mandara gravar seus nomes e a data da formatura. No outro estava escrito: “Os melhores amigos.”
Nesse momento, o rosto de Dave estava molhado de lágrimas. É verdade que conseguira o diploma, mas tinha feito algo que prezava ainda mais. Fora importante para a vida de alguém. Abraçando Frank, ele disse:
“Vamos ser amigos para sempre!”

Hoje Dave dirige um caminhão da prefeitura de Delaware e faz o curso de educação especial. Frank Howard trabalha numa linha de montagem. Eles se encontram com freqüência e foram a outro concerto do Aerosmith.

segunda-feira, agosto 27

Meu primeiro emprego

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereiro de 1999
Autor : Marcelo Carneiro

Brasileiros de sucesso contam que o importante não é o salário, mas sim o que se aprende

A professorinha de inglês
Aos 18 anos, às vésperas de ingressar na Faculdade de Psicologia – um sonho antigo -, decidi procurar meu primeiro emprego. Não foi difícil. Quase uma década debruçada sobre livros de inglês e uma fluência invejável me garantiram uma vaga como professora no curso Ibeu (Instituto Brasil Estados Unidos), à época um dos mais conhecidos. Era um trabalho até certo ponto tranqüilo, afinal sempre gostei de ensinar e parecia preparada para a função. Controlar alunos na fase entre infância e adolescência foi o maior desafio.
Lembro-me de um dos alunos. Era simplesmente impossível concluir uma aula na sua presença. As intervenções fora de hora, a conversa a todo instante, a desatenção na hora das provas, tudo contribuía para que eu pensasse a todo momento que não conseguiria lidar com aquela situação. Mas aos poucos fui impondo meu estilo. O moleque nunca virou um santo – acho que até hoje, já adulto, deve aprontar das suas -, mas ao fim de um ano eu já havia conseguido controlar a turma. Impor respeito diante de pessoas que tinham quase a minha idade me ajudou a pensar mais sobre as relações humanas, a importância do equilíbrio emocional em momentos de tensão, a necessidade de estar sempre pronta a ouvir, mesmo nos momentos em que talvez fosse necessário falar, às vezes até de maneira mais dura. Anos depois, vi em meu consultório que o comportamento das crianças como aquelas é bem mais comum do que eu imaginava. Agora elas eram, para mim, um caso clínico. Mais isso já é outra história.
Maria Tereza Maldonado, 50 anos, psicóloga especializada em família, tem 23 livros publicados e 800 mil exemplares vendidos.

O motorista dos ‘bacanas’.
Certo dia meu amigo Peter viu anunciado num jornal o carro que todo garoto de nossa idade sonhava dirigir. O carro estava em Búzios, balneário a duas horas e meia do Rio de Janeiro, onde eu costumava passar as férias. Resolvemos, então, ir até lá. De repente, à nossa frente, vimos um enorme Landau azul brilhante. No vidro da frente, o anúncio: vende-se.
Pelo estado do carro, percebemos logo que se tratava de uma pechincha. A negociação não durou nem cinco minutos e lá estávamos Peter e eu a bordo daquele transatlântico sobre rodas.
Na volta para o Rio, tratamos do carro com carinho. Rodas zero quilômetro, polimento no pára-choque e uma nova pintura deixaram o carro mais apresentável. Mas o que fazer com ele? Nem Peter nem eu tínhamos dinheiro sequer para pagar o combustível do nosso beberrão de luxo. A solução veio com o apelo de uma amiga. Ela decidira se casar, e mal tinha dinheiro para a festa, quanto mais para alugar um carro que a levasse até a igreja. Não tive dúvida: “Seu problema acabou, sou o mais novo motorista na praça.”
O primeiro salário não pagou nem o que eu tinha gastado com o terno, a camisa social e a gravata que precisei comprar para minha nova função. Seis meses depois, porém, não havia do que reclamar. Peter e eu tínhamos ganho dinheiro suficiente para passar o verão seguinte sem precisar da ajuda dos pais. Isso, porém, não foi o mais importante. Para mim, um garoto de classe média carioca, acostumado a transitar por todo tipo de festa como convidado, a experiência de motorista de noiva foi algo inesquecível. Por vários meses meus fins de semana à noite foram passados em frente às mansões onde se realizavam as melhores festas. Eu já tinha estado lá, só que com meus amigos, sem ter hora para sair ou qualquer responsabilidade. Agora, meus colegas de festa eram copeiros, cozinheiros e outros motoristas que se juntavam para quebrar o tédio enquanto todos se divertiam. Para mim, no entanto, aquilo também era diversão, e mais do que isso, uma lição. Ao me colocar no lugar deles, aprendi não só o valor do dinheiro, mas também o valor de qualquer trabalho, independentemente do quão grandioso ou humilde ele possa ser.
Eduardo Paes, 29 anos, foi eleito deputado federal pelo Rio de janeiro nas últimas eleições.

O garoto do armazém
Minha vida profissional começou quando eu tinha 13 anos de idade. Até então, era um menino como todos os outros de Jatobá, vila próxima de Petrolina, uma das mais importantes cidades do interior de Pernambuco. Levava a vida entre banhos no Rio São Francisco e o apoio a meu pai, um lavrador com pequenas plantações de milho, feijão e mandioca. Minha mãe, professora, tinha jurado a si mesma dar a todos os cinco filhos o ginásio, já que ela e o marido só tinham conseguido concluir o primário. Jatobá era pequena demais para esse sonho. E lá fui eu – em definitivo – para Petrolina, no lombo de um jegue.
A primeira providência foi arrumar emprego para as horas de folga do estudo. Encontrei no seu Benedito Mousinho, piauiense forte e ambicioso, o personagem que me marcaria para sempre. Dono de mercearia, seu Benedito vendia tudo que se possa imaginar: de produtos alimentícios a enxadas usadas na roça. Seus clientes eram vaqueiros do agreste pernambucano e barqueiros que cruzavam o São Francisco. Tímido e mirrado, eu não podia fugir da dura rotina do armazém. Às vezes tinha de levar no braço sacos de 60 quilos de arroz ou feijão na venda para o atacado. O esforço físico, porém, não era a tarefa mais difícil. Aprendi logo que, mesmo com a pouca idade, teria de mostrar responsabilidade. Em um ano e meio de trabalho, antes de completar 15 anos, já tinha assumido o controle da loja durante as várias viagens de Seu Benedito. Apesar de até hoje não ter entre as minhas especialidades a arte de lidar com o dinheiro – característica peculiar aos artistas -, aprendi a reconhecer o valor de alcançar, pelo próprio esforço, algo que se deseja muito. Com o dinheiro acumulado nos primeiros salários, pude comprar o tão sonhado blusão, igual ao usado por James Dean no filme Juventude Transviada. Deixava, então, de ser o menino envergonhado, bicho do mato de Jatobá. Começava a minha vida.
Geraldo Azevedo, 54 anos, é cantor e compositor, e tem 18 discos gravados.

sexta-feira, agosto 24

Minha vergonha secreta

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereito de 1999
Autor : Simon Hoggart

É o pior pesadelo de todo homem e está me levando à loucura

Sofro de um mal desolador. Algo de que as pessoas nunca falam, porque é embaraçoso demais. Se você é homem, com certeza sabe que esse é um assunto que jamais pode ser levantado em uma conversa com outros homens.
Minha mulher tem se mostrado compreensiva, mas é tão difícil para ela que até já sugeriu, algumas vezes, que eu procurasse um especialista. Um dia talvez o faça, mas tenho relutado, por causa do medo já profundo de que talvez seja muito tarde para isso: não há mais nada que possa me ajudar.
Veja você, não consigo estacionar. Sou incapaz de estacionar um carro. Aposto que esta é a primeira vez que um homem admite isso, por escrito. É muito vergonhoso.
Eu consigo colocar o carro em um estacionamento vazio ou quase vazio, ou até mesmo estacionar em acostamentos, se houver pelo menos o espaço correspondente a três carros, para que eu possa entrar – sempre de frente, claro.
Conheço as regras de estacionamento, como entrar de marcha à ré, olhando para trás sobre o ombro, esperando o momento exato de virar todo o volante. Sei perfeitamente como é que se deve calcular a distância entre o pára-choque e o carro da frente. Se um marciano chegasse à Terra e quisesse saber como estacionar, provavelmente conseguiria explicar a ele, verbalmente. Também conheço todas as regras do xadrez, embora não saiba jogar direito.
Minha mulher sabe estacionar. Aponte-lhe uma vaga, digamos apenas uns dois centímetros maior do que o nosso carro, e escorregará para dentro dela com a maior graciosidade, com um único movimento, só interrompido para um sorrisinho sarcástico diante do meu oferecimento para saltar e ajudar.
Outros homens sabem estacionar. É algo que todos os homens que se prezam sabem fazer, assim como aqueles consertos domésticos. É como se me faltasse algum gene vital.
Geralmente deixo o carro com a traseira afastada do meio-fio, num ângulo de 30º em relação à calçada, o que faz lembrar aquela cena em Noivo neurótico, noiva nervosa, na qual, num esforço extremo para agradar a Diane Keaton, Woody Allen diz: “Está bem! A gente pode caminhar daqui até o meio-fio.”
No meu trabalho como jornalista, é comum eu me ver quase em apuros. Em época de eleições, seguir os políticos pela cidade pode exigir grande habilidade na direção. Os colegas normalmente pedem carona, que tenho prazer em oferecer. Começamos, então, a percorrer o longo caminho até onde deixei o carro.
“Mas está a uma distância quilométrica!” exclamam, observando minutos vitais serem desperdiçados.
Invento qualquer desculpa esfarrapada, como estacionei ali para tomar um cafezinho, ou digo que errei ao consultar o mapa – qualquer coisa, menos admitir que aquela havia sido a primeira vaga que encontrara, onde achava que haveria alguma chance de conseguir entrar.
Costumo percorrer distâncias enormes tentando disfarçar minha fraqueza. Certa vez, precisei me hospedar em Bordeaux. Os franceses são campeões mundiais de estacionamento. Conseguem parar em vagas menores que seus carros, empurrando-os, sem que ninguém perceba, para a frente e para trás. Meu hotel não tinha garagem, mas o proprietário muito amável, disse que havia guardado uma vaga, duas ruas adiante. Se eu o seguisse, ele tiraria seu carro da vaga e eu poderia entrar bem rápido, antes que algum motorista voasse para dentro dela.
Mas é claro que eu não consegui entrar. Tentei a primeira vez e o carro ficou com a mala na calçada e o capô quase no meio da rua. Tentei novamente e quase amassei o Mercedes na vaga da frente. A terceira tentativa foi melhor – quase aceitável -, a não ser pelo fato de que a velha e estreita rua ficou bloqueada a qualquer coisa um pouquinho maior do que uma motoneta.
Atrás de mim, alguns franceses zombeteiros observavam, assombrados com meu desempenho. Atrás deles, dezenas de outros motoristas se penduravam na buzina. Minha vergonha foi tamanha que dirigi por alguns quilômetros, até um subúrbio distante, onde achei vagas com o comprimento de uma quadra de esportes e onde pude ter certeza de que não encontraria nenhuma daquelas testemunhas da humilhação por que havia passado um pouco antes.
Então peguei o ônibus, de volta.

terça-feira, agosto 21

Toquem o alarme

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autor : Nick Jans

Quando a catástrofe assola esta vila, todos correm para ajudar.

Um barulhento trenó motorizado passa em alta velocidade a pequena distância. Garotos, penso, sacudindo a cabeça. Enquanto continuo trabalhando na pilha de lenha sob temperatura de 5 graus abaixo de zero, ouço cães latindo. Lá no alto, a luz difusa da aurora boreal cintila em meio às estrelas com arcos e faixas de um colorido brilhante.
Logo em seguida escuto o ruído de dois outros trenós motorizados, bem como gritos. Deixo o machado cair, corro para o outro lado de minha cabana e quase me choco com Ronald Cleveland, um dos meus alunos da escola de primeiro grau. Ele está correndo, tentando salvar a vida. Outros garotos fazem o mesmo, um pouco atrás.
“O que está acontecendo?”, pergunto.
“Fogo lá em casa!”, grita. “Fogo!”
Olho na direção da cabana da família e vejo a fumaça subindo, em forma de pluma branca, brilhando no céu. A casa próxima à deles, a de número 73, lar da família Greist, está em chamas.
A brisa muda de direção e me vejo envolvido pelo manto pungente do fogo. Um vizinho leva baldes. Corro em direção à minha cabana em busca do meu balde. Enquanto estou correndo pela trilha, ouço o barulho da sirene da vila dando o alarme. Todos os cães do povoado – centenas deles – começam a uivar em coro.
Pouco mais de 250 pessoas moram em Ambler, pequena vila esquimó no Alasca, onde sou professor. Entretanto, mais de 20 esquimós continuam chegando a cada minuto. A maioria das casas do povoado tem rádio CB (faixa de cidadão) e a mensagem transmitida – “Incêndio na 73” – fez com que todos viessem rápido. Alguns trouxeram baldes, machados e extintores.
“Todo mundo está a salvo?”, perguntam as pessoas.
“E as crianças?”
Os menores estavam dentro da cabana com uma babá e ninguém sabe onde se encontram agora. Dois homens tentam entrar para verificar, mas a fumaça os impede. Há um momento de pânico, porém logo chega a notícia de que as crianças estão salvas.
Aariga!” Isso é bom!”, exclamam as pessoas, aliviadas.
A densa fumaça sai pela porta e pelas janelas, porém as chamas ainda não são visíveis. Meu amigo Clarence Wood usa o machado para quebrar a janela e aqueles que tem extintores conseguem penetrar na cabana. A fumaça parece estar mais densa do que nunca. Um trenó chega com uma lata de lixo cheia de água e todos pedem mais.
“Onde é o hidrante?”, grita um homem. Assim como na maioria dos lugarejos da região, poucas casas tem hidrante. Esta cabana está situada a quase 300 metros do mais próximo. Não existe Corpo de Bombeiros ou caminhão de bombeiros em Ambler; somente algumas mangueiras e um grande extintor químico. Em caso de emergências, as pessoas dependem dos vizinhos e de si próprias.
Apanhando três baldes vazios, pergunto qual casa tem água corrente. “A casa de Katherine”, responde um estudante de segundo grau. Saímos em disparada vencendo os cem metros que nos separam da casa dos Cleveland. Rena, de 10 anos, abre a porta.
“O banheiro é logo ali!”, grita ela, apontando.
“Encha todas as panelas que você encontrar!”, peço-lhe. Ela concorda, fazendo movimento com a cabeça. Dois bebês seminus choram no sofá. Rena conta-me que eles estavam dentro da cabana quando o incêndio começou. Com os baldes cheios, saio correndo, espalhando água pelo piso.
Lá fora, a noite é banhada pelo brilho alaranjado. O fogo, saindo pela janela aberta, chegou ao teto da cabana e está crescendo a cada segundo.
Abaixando-me para escapar do calor e da fumaça, corro até a janela e jogo 40 litros de água bem no foco do incêndio. Não ouço sequer um chiado. Sufocado pela fumaça, afasto-me e outro homem se aproxima. O fogo nos ignora, elevando-se em nuvem exuberante, enquanto a observamos assustados.
“Afastem-se!”, alguém grita enquanto um trenó se aproxima trazendo o grande extintor químico. Vários homens o colocam em posição e direcionam a mangueira para as chamas. Durante trinta segundos ouvimos forte ruído. Uma nuvem branca cobre as chamas e a multidão aplaude. O extintor, entretanto, começa a chiar e pára de funcionar; estava com menos da metade da carga total.
Jogamos toda a água que temos, e em seguida usamos as pás para lançar neve sobre as chamas, esforçando-nos para conter a vantagem obtida pelo extintor. Porém, a língua laranja se eleva no meio da fumaça. Logo a seguir, outra ainda maior, e o teto é tomado pelo fogo, impedindo nossa aproximação.
Saio em busca de mais água. Katherine e Rena estão com vários recipientes cheios e em poucos segundos já tenho o suficiente para voltar à cabana em chamas.
Cinco viagens; seis; as chamas estão cada vez mais altas e o calor mais intenso. Lanço a água sobre o fogo e me viro para correr outra vez, mas meu vizinho Stanley segura-me o braço.
“Não adianta, camarada”, diz balançando a cabeça. “Deixe-a queimar.”
Ajoelho-me ofegando e tossindo, a 20 metros do incêndio. Meu macacão está congelado pela água derramada sobre ele; o rosto chamuscado. O teto desaba, lançando fagulhas em direção às estrelas.
Fred e Arlene Greist encontram-se de pé entre amigos e parentes, observando tudo o que tem desaparecer em meio às chamas. Enfrentando muitas dificuldades para começar – sem poupança nem seguro – só possuíam a casa que construíram juntos, onde estavam criando os filhos. Agora, em questão de minutos, vêem-se reduzidos às roupas do corpo.
Tragédias como esta acontecem em todo lugar. Mas aqui, ilhados numa região tão deserta, a perda parece maior. Os limites da vida são mais tênues e aparentes. A temperatura está abaixo de zero e continua caindo. Sem ajuda, a família Greist não sobreviveria a essa noite.
Embora o fogo já se esteja apagando, poucas pessoas vão embora. Compartilham aquele infortúnio, oferecendo apoio, simplesmente ficando juntos no meio da noite. Uma viga de madeira cede e cai, provocando explosão de fagulhas. Chamas surgem novamente.
A multidão se dispersa devagar, mas ninguém vai aceitar a derrota. Um pedido de ajuda é feito. Quando termino de trocar as roupas, Fred e Arlene já foram acomodados para passar a noite e receberam oferta de uma casa disponível que, na realidade, é melhor do que a que perderam. Voluntários vão de porta em porta recolhendo doações de comida, roupas e dinheiro.
As pessoas dão o que podem. Amanhã, um pedido de ajuda às vilas da região será enviado pelo rádio, e muitos responderão. Preencho um cheque, atiço fogo em meu fogão a lenha e vou para a cama, abalado pela experiência, porém de alguma forma animado e menos só do que antes.
Existe generosidade e auto-suficiência inerentes ao povo esquimó que me atraíram muito quando me mudei para a vila, há mais de 15 anos. Embora eu saiba que sempre serei forasteiro entre eles, sei também que encontrei meu lar.
O fogo entrou “em casa”. Estávamos todos lá.

segunda-feira, agosto 20

Corridas de dromedários em Dubai

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autora : Mary Roach

Nos Emirados Árabes Unidos camelos já estariam obsoletos se não fossem extremamente velozes.

Glaysa é um camelo corredor de elite, embora não seja fácil para ninguém chegar a essa conclusão. Assim como todos os camelos, ela tem dentes semelhantes às velhas teclas de um piano, cílios tão longos quanto os bigodes de um gato e cobertura que parece mais um tapete do que pele. Olha para as pessoas de cima para baixo, insinuando presunção, mas isto é apenas questão anatômica, nada pessoal. O rosto dos camelos se molda por um declive.
Glaysa não é igual a qualquer camelo, pois nada com freqüência numa piscina. Camelos selvagens não costumam nadar. Vê-los mergulhar num oásis é tão difícil quanto ver um peixe fora da água tomando sol. Mas Glaysa nunca foi um camelo selvagem.
Nasceu no curral do Xeque Mohammed. Esta é a forma simplificada para Sua Alteza o Xeque Mohammed bin Rashid Al Maktoum, príncipe herdeiro de Dubai, proprietário de 1.500 camelos de corrida.
Aqui estão algumas peculiaridades do curral do Xeque Mohammed: esteira para os camelos se exercitarem, ducha para tomarem banhos, caminho a fim de manter as patas adequadamente aparadas para as corridas, além de vagões de transporte com o interior acolchoado. A piscina também é especial, projetada especificamente para camelos, com raia única e 23 metros de comprimento, apresentando ligeiro declive nas extremidades.
Embora os camelos saibam nadar, não o fazem de boa vontade. Para convencer um camelo de que nadar é algo agradável, você tem de coloca-lo ao lado de outro que já o saiba. O camelo nadador se movimenta e o outro o acompanha – pelo menos na teoria.
Nossa personagem Glaysa já está na metade da piscina. Outro camelo, Museha, está de joelhos, empacado. Um camelo empacado emite som peculiar e inesquecível, algo como uma gaita sendo pisoteada.
As travessuras de Museha terminam ensopando o domador. Não consigo imaginar esse camelo do outro lado da piscina. Não é mais fácil fazer um camelo passar pelo buraco da agulha, porém deve ser, no mínimo, mais tranqüilo e menos problemático.
Alheia ao burburinho, Glaysa nada em sistemático e lânguido estilo “cachorrinho”, a corcova fora da água tal qual barbatana de tubarão. Cruza o azul turquesa da piscina, como se estivesse correndo. Não fosse pelo suave “murmúrio” da água, Glaysa pareceria estar correndo no céu.
A atividade do xeque com os camelos não tem fins lucrativos: a jogatina não é permitida nos Emirados Árabes Unidos e o acesso às corridas é gratuito. Ele também financia um centro de reprodução de camelos, e seu irmão, o xeque Hamdan, um hospital para camelos, que dispõe de mesa de operações com abertura no meio para acomodar as corcovas do animal.
Xeques como Mohammed, que transformaram dromedários em valiosos passatempos, vêem na atividade esforço de preservação cultural. Com o advento do transporte de quatro rodas, os camelos caíram de posição. O navio do deserto não é mais o camelo e sim o Land Cruiser.
À medida que menos camelos eram usados para transporte, mais a família real injetava dinheiro nas corridas. A idéia era de não apenas preservar tradição secular, mas também, informa o Ministério de Informação e Cultura, “garantir que a geração mais jovem tenha oportunidade de aprender algo sobre o modo de vida de seus antepassados e compara-lo com as facilidades atuais”.
Isso é reiterado pelo administrador de pistas de corrida de camelo, Mohammed Saeed, proprietário de dois Land Cruisers e25 camelos. Saeed leva-me para passear pela pista. “Durante muitos séculos, o camelo esteve presente em nossas vidas. Dependíamos dele para transporte, alimentação e recreação. Costumávamos fazer tendas de pele de camelo. Era como dormir num hotel”, revela Saeed. Ele ajeita a touca Kaffiyeh na cabeça, amarra-a e joga-a para o lado. “Dubai, a cidade, é apenas metade da vida. A outra metade é o deserto.”
Saeed e eu debatemos se é bom para os xeques usarem meninos, geralmente paquistaneses, como jóqueis de camelos. “Estamos cuidando deles como crianças, de acordo com a nossa religião. São remunerados pelo trabalho e freqüentam a escola desde os 12 anos de idade.”
Pergunto a Saeed quanto os meninos ganham e ele muda de assunto. É hora de falar sobre camelos. Os animais atingem a velocidade de 16km/h. A palavra camelo vem, em parte, da palavra jamal que, imaginem, tem a mesma raiz da palavra que significa beleza em árabe. Pergunto a Saeed se ele anda de camelo. “Com esta idade? Com essa barriga?” Dá tapinhas na barriga. Agora entendo por que os homens parecem tão elegantes em seus frouxos roupões Djellaba: não se consegue ver as gorduras.
Os pés dos camelos foram feitos para a areia: são grandes e chatos, como queijos gigantes. Não fazem clipt-clopt, e sim cush-cush-cush. Camelos andam ao longo de uma trilha com eficiência graciosa, mais deslizando do que galopando. Podemos ouvi-los respirar ao passar.
Eu mesmo os ouço, enquanto estou de pé ao lado da cerca com Saeed. Não fosse por sua hospitalidade, eu estaria nas arquibancadas assistindo à corrida através do monitor de vídeo. As arquibancadas tem apenas seis ou sete filas de cerca de 30 metros de comprimento, divididas em grupos de três. Membros da elite governante acomodam-se no centro, diante de monitores individuais, em sofás de couro branco e mesas forradas com toalhas de seda, protegidos por guardas armados. Os habitantes locais sentam-se em cadeiras de plástico de cor laranja, em ambos os lados, 20 para cada monitor de vídeo, sem mesa e sem toalha de seda. Ninguém parece empolgado, pois não há apostas e, além disso, não é uma grande corrida.
A história já é diferente na super Mercedes que se desloca pela pista, fazendo sombra ao bando de animais. Nele, o locutor e duas dúzias de acalorados proprietários de camelos, pendurados nas janelas, gritam instruções aos seus jóqueis. Eles utilizam intercomunicadores – embora não pareça ser necessário.
Saeed conseguiu colocar-me no ônibus para a segunda corrida. O veículo pára ao lado da linha de partida. Ao contrário dos cavalos de corrida, camelos não tem portões individuais. Ficam todos juntos e os animais se atiram para a frente.
Os camelos começam a sair e o locutor a narrar. Ele parece um leiloeiro. Além dos nomes dos camelos, também cita os nomes dos proprietários – alguns nomes árabes podem ser bastante longos. Felizmente, os donos dos camelos não tem habilidade para nomes excêntricos, como no caso das corridas de cavalos.
Acompanhar a corrida lado a lado cria sensação de tranqüilidade para o evento. Os jóqueis sacolejam para cima e para baixo com as longas passadas dos camelos, parecendo sossegados e até um pouco entediados. Se os proprietários não estivessem gritando nem escorresse espuma das bocas dos camelos seria difícil dizer se isso é corrida ou mero passeio.
Chegamos à última etapa da corrida de 8 quilômetros e cruzamos a linha de chegada. Os jóqueis saltam das selas feitas de cobertores enrolados para os braços de seus treinadores, pela primeira vez parecendo crianças e não pequenos adultos fanfarrões.
Os vencedores recebem o modesto prêmio em dinheiro no escritório, mistura de “alta tecnologia” com “baixa tecnologia”. A sala de vídeo ostenta monitores do chão ao teto. Um homem fica rebobinando e avançando a corrida, fazendo os camelos dançarem na tela. Na sala ao lado, Saeed está sentado numa cadeira desbotada, que usa há 16 anos. Tornozelos cruzados sobre os joelhos, anota os nomes dos vencedores na velha prancheta. É assim que as coisas são no Golfo: algumas mudam, outras continuam do mesmo jeito.
Após cada corrida, os animais vencedores são submetidos a um teste anti-doping feito pelo veterinário da casa. É homem alto e sério – tão sério quanto pode ser um homem que coloca fraldas num camelo. Ele me corrige. Não é fralda, e sim bolsa coletora de urina, com a qual os camelos parecem não se incomodar. Ele insiste em que os animais tem boa índole e nega que cospem nos seres humanos. “São muito cooperativos quando comparados com outros animais. Se você entra no curral das vacas, elas se juntam em grupo para tentar avançar em você.”
“É verdade?”, pergunto.
“Foi o que aconteceu comigo.”
Mais tarde, no centro de reprodução de camelos, a aparência é de cena de presépio: três homens usando djellabas e turbantes, uma bela jovem e um camelo deitado próximo a eles.
A semelhança, no entanto, só vai até aí. Lulu Skidmore é especialista britânica em transferência de embriões de camelo. Nesse momento ela está fazendo uma ultra sonografia. Quando os embriões estiverem prontos, ela os transferirá para ventres de outros camelos. A idéia é reproduzir camelos melhores de forma mais rápida. Normalmente, um camelo pode ter duas crias em três anos. No entanto, Skidmore pode produzir 30 crias por ano usando embriões de uma única fêmea. É o mais avançado equipamento de reprodução que o dinheiro pode comprar. Se é possível para o petróleo, é possível para o camelo.
O progresso é o tema de unificação no Golfo. O povo dessa nação castigada pela areia passou de nômade e comerciante a milionário em 30 anos. Se eles tiverem camelos, então serão os mais avançados do mundo.
Ainda sentado, o camelo 484 estica o pescoço para fora, fuçando a tigela de ração. Certo dia, um de seus embriões do tamanho de uma ervilha poderá vencer a maior das corridas nos Emirados , onde o primeiro prêmio será um Land Cruiser de quatro rodas capaz de alcançar 560 quilômetros sem comida ou água.
Mas jamais será tão interessante quanto o camelo.

quinta-feira, agosto 16

Vizinhos difíceis

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autor : Carlos Tautz

A maioria de nós já teve um destes conflitos, grande ou pequeno – saiba como evita-los daqui para a frente.

A professora Regina Coeli há anos se irrita com o pontual asseio do vizinho. Todos os dias, exatamente às seis da manhã e às sete da noite, a água do banho do vizinho escorre pela parede do banheiro de Regina. “Bastava ele abrir o chuveiro e pronto”, lembra Regina.
O problema começou em 1994. A professora se queixou várias vezes à proprietária do apartamento vizinho e nada. Reclamou na imobiliária que alugava o imóvel para ele e nada. O inquilino não queria consertar o vazamento. Pensou em contratar alguém para quebrar a parede e reparar tudo, mas temeu que desse em briga. Afinal, desistiu.
Infelizmente, situações como esta não são raras. A maioria de nós já teve conflito, grande ou pequeno, com algum vizinho. Nos Juizados Especiais – denominação dos antigos Juizados de Pequenas causas -, problemas com vagas na garagem, barulhos, festas, crianças indisciplinadas, animais, vazamentos e até obscenidades são os mais comuns.
O juiz Luiz Felipe Salomão, que desde 1989 trabalha nos Juizados Especiais do Estado do Rio de Janeiro, recebe 45 novos casos todos os dias em seu gabinete. Cerca de 70% dos processos são decididos em uma simples audiência de conciliação entre as partes.
“Algumas vezes não há saída e as disputas acabam parando na justiça Comum”, observa o juiz Ricardo Cunha Chimenti, do Juizado Especial Cível Central, o maior do estado de São Paulo. Junto com outro juiz, ele comanda equipe de 216 conciliadores na comarca, tem 11 mil ações em andamento sob sua responsabilidade e recebe de 600 a 700 novas causas todos os meses. Apenas parte delas diz respeito a brigas entre vizinhos. Umas realmente são sérias, outras nem tanto.
“Num bairro de classe média do Rio de janeiro”, lembra o juiz Salomão, “uma bela senhora de meia-idade costumava tomar banho de sol no terraço da casa. Quando um vizinho percebeu que o bronzeamento acontecia todos os dias às mesmas horas, começou a acompanha-lo de longe, utilizando binóculo. A esposa do observador levou ao Juizado Especial a mulher bronzeada, acusando-a de assédio sexual.”
“Depois de ouvir a moça, o rapaz e a esposa”, recorda Salomão, “chegamos a um acordo e uma tela foi colocada no terraço para que os atributos da mulher não fossem mais admirados por espectadores indesejados.” Ao final da conciliação, o homem disse que valia a pena ter enfrentado um juiz porque a vizinha era realmente muito bonita.
“Ame o próximo”, ensina a Bíblia. No entanto, é difícil imaginar que alguém possa ter sempre sentimentos positivos por aquela vizinha fofoqueira. “Às vezes é complicado conviver em sociedade”, reconhece a advogada e antropóloga Ângela Moreira Leite, que desde 1995 pesquisa as disputas nos Juizados de Pequenas Causas.
Como evitar o envolvimento numa briga entre vizinhos ou resolver uma desavença que não pode ser evitada? As dicas estão abaixo.

Seja cortês
Se está planejando fazer aquela festa que vai durar até a madrugada, convide os vizinhos – ou pelo menos alerte-os de que haverá barulho até tarde. Caso a mangueira do quintal jogue folhas no terreno do vizinho, ofereça-lhe algumas frutas.

Faça amigos
O filho do vizinho bateu em seu carro no estacionamento do condomínio, quando manobrava o automóvel do pai. “Para que seu carro seja consertado, é necessário que o responsável pela batida dê entrada no seguro dele primeiro”, observa Salomão. “Se ele quiser, pode atrasar a operação de propósito e você perderá dinheiro se vender o carro amassado. Com uma boa conversa é possível apressar os trâmites burocráticos e o conserto do carro.”

Converse antes e procure soluções que atendam aos dois lados
Em São Gonçalo, Rio de Janeiro, duas senhoras viviam brigando porque as folhas da árvore que ficava no quintal de uma delas voavam para o outro lado do muro, entupindo a bomba da piscina. Na audiência de conciliação, no Juizado Especial, elas concordaram em fazer a poda da árvore e limpar o terreno duas vezes por semana. “Saíram do Juizado amigas”, lembra Ângela Moreira Leite.
Quando a disputa é iminente, planeje com cuidado o que fazer e falar. Ataque objetivamente o problema, não a pessoa. Se o vizinho gosta de ouvir o som alto, calmamente informe a ele ou a ela como isso afeta você. “Tenho de levantar cedo para trabalhar. Que tal diminuir o volume depois das dez horas da noite?”
Se possível, escolha campo neutro para conversar sobre o problema: Calçada, elevador ou playground. “Isto reforça os laços de convívio social”, ensina Gustavo Tepedino, diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UEJR).

Tome notas
Pode parecer muito burocrático, mas vale a pena. “Anote o dia, local e atitudes do vizinho que incomoda”, recomenda Tepedino. “Ao mostrar as anotações ao vizinho é possível ele simplesmente parar de aborrecer.”
Por outro lado, você pode rastrear algum exemplo incontestável. E terá evidências para apresentar ao vizinho. “Freqüentemente, perceberá que seu vizinho não está atento ao problema, até que este lhe seja indicado”, afirma Cora Jordan, advogada e autora do livro “A lei do vizinho” (Neighbor Law). Se o vizinho se mostrar rude, as anotações terão grande importância caso você decida propor uma ação.

Pesquise as leis
A maioria das cidades tem códigos de posturas e leis de edificações que regulamentam , no município, níveis de ruído, ocupação de calçadas, horários e dias de festividades e até a coleta do lixo. Esses regulamentos, em geral bem objetivos, determinam exatamente medidas de estacionamento, volume da música do clube ao lado ou horários em que se pode fazer obra em prédios de apartamentos.
Procure na prefeitura e nas bibliotecas municipais, tire cópias e as envie pelo correio para seu vizinho, mas de forma educada: “O senhor provavelmente não se deu conta de que é proibido fazer barulho em seu apartamento antes das sete da manhã.” O juiz Chimenti ensina: “Registre a carta descrevendo o problema e exija dos correios um Aviso de Recebimento da correspondência.”

Organize apoios
“Vários vizinhos e eu reclamamos da síndica de um prédio onde morei há 11 anos. Todas as sextas-feiras, ela fazia festas que varavam a madrugada e botava nas alturas o volume da música. Depois de quase o prédio inteiro se colocar contra ela, as festas terminaram”, lembra a dona de casa Antonia Barbosa dos Santos, que viveu por quase cinco anos em um edifício à primeira vista tranqüilo, na Freguesia, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro. “Tente sempre o diálogo. Se for impossível, reúna outros que também estejam incomodados”, explica o juiz Chimenti.

Pense bem antes de chamar a polícia
Na realidade, há várias situações em que apenas a autoridade policial tem poderes para resolver. “No entanto, nem sempre resolve”, atesta, no Rio de Janeiro, a conselheira da Associação dos Moradores da Lauro Muller, Henriette M. Krutman. Munida da portaria de interdição emitida pela Secretaria Municipal do meio Ambiente, ela já chamou a radiopatrulha várias vezes na tentativa de suspender os “bailes” do clube próximo à sua residência. “Os policiais, quando vêm, somente conversam com o organizador do baile – cujo ruído diminui enquanto eles estão ali - e depois vão embora. Aí a música recomeça a todo o vapor e vai até quatro ou cinco horas da madrugada.”
Ainda assim, se aquela festa de arromba continua a impedir o sono às cinco da manhã, um carro de polícia pode dar resultado. E nem sempre a polícia é tão condescendente quanto no caso reclamado por Henriette.
Lembre-se de que outras autoridades – Saúde Pública, Corpo de Bombeiros e até secretarias do meio ambiente – podem ser muito mais indicados para resolver determinados problemas.

Encontre um mediador
Atualmente estão em funcionamento no Brasil mais de 300 juizados Especiais, que oferecem intermediação gratuita em pequenas causas. “Eles são, por excelência, o fórum adequado para se resolver brigas de vizinhos”, alerta o juiz Salomão.
A mediação permite que as partes sejam plenamente ouvidas. Pesquisa realizada pela cientista política Maria Celina D’Araujo, da Fundação Getúlio Vargas, mostra que em 63% das ações propostas em quatro Juizados no Rio de Janeiro a conciliação é alcançada em apenas uma sessão, que acontece menos de três meses após a primeira “visita” do Autor ao Juizado.
Se houver concordância, as partes selam ali mesmo, na presença do mediador, um acordo que tem força de decisão judicial. Mas se as partes não se acertarem ocorre a segunda etapa do processo, momento em que um juiz de direito dará a palavra final sobre a disputa.
“Além de eficaz e rápida, a mediação é a maneira mais democrática de se ter acesso à justiça”, observa a pesquisadora Celina. Mas tanto ela quanto a advogada e antropóloga Ângela Moreira Leite apontam que o início promissor dos Juizados Especiais criou uma avalanche de ações que já começa a contaminar com certa lerdeza essa ramificação da justiça, antes considerada maneira rápida para “amenizar a recorrente ‘crise’ do Judiciário”, como aponta Celina em sua pesquisa.

Entrar na justiça
Se a diplomacia não funcionar, o jeito é apelar par a justiça. “Só utilize a justiça se o vizinho não quiser de forma alguma negociar”, enfatiza Chimenti. Se o valor da causa se mantiver no limite de 20 salários mínimos, não há qualquer custo. No entanto, se ficar entre 21 e 40 salários mínimos, será necessária a contratação de advogado ou a assistência judiciária instituída pelo próprio juizado.
“Nessas circunstâncias, a mediação pode se estender por mais tempo. Existe ainda a possibilidade de seu vizinho levar o caso à Justiça Comum através do procedimento ordinário ou sumário, apenas por vingança. Aí estaríamos quase caindo nos mesmo casos em que se levam até anos para resolver disputas na Justiça”, lembra José Rubens Morato leite, que dirige o escritório modelo da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina.
Porém não deixe que a raiva contamine você: “Uma disputa entre vizinhos não precisa transformar-se em verdadeira guerra”, ensina Terry Amler, mediador de causas semelhantes nos Estados Unidos, país com mais de 30 anos de tradição em resolução de conflitos entre vizinhos. “Só é necessário um pouco de paciência para sentar, ouvir o que o outro lado tem a dizer e conversar”.

quinta-feira, agosto 2

Comemorando toda uma vida

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autora : Mary E. Potter

Era o dia dele, mas era nosso também – um momento de olhar para o futuro e para o passado.

Os diplomados estão enfileirados, posando como uma tribo de índios guerreiros num filme clássico do faroeste. Mas, em vez de se precipitarem pelo gramado bem cuidado, gritando e fazendo baderna, marcham lenta e decorosamente, com suas becas pretas agitando-se na brisa fresca da manhã.
O vento também capta a música da banda, elevando-a sobre as cabeças dos espectadores, enquanto nos mexemos e viramos em nossas cadeiras dobráveis, esforçando-nos para ver o desfile. Um rastro de bolhas cristalinas, refletindo as cores do arco-íris, flutua atrás de uma garota que, sem constrangimento, sopra num canudo de plástico. Nas compridas fileiras de barretes pretos de formatura, inclinados em todos os ângulos, consigo ver meu filho.
No momento em que Jeff passa, vem-me à cabeça a imagem dele aos 10 anos, vestindo uma roupa velha de professor. Naquele ano, Jeff usou beca feita em casa e um barrete, com cabelos de barbante; velhos óculos de aros de metal escorregavam pelo nariz, enquanto ele, com dificuldade, carregava um dicionário com os dois braços.
A recordação daquele menino se esforçando está justaposta à visão do belo rapaz que vai marchando. Hoje, o barrete e a beca são verdadeiros, mas ele carrega os conhecimentos – além das responsabilidades que acompanham este privilégio – na cabeça e no coração, e não nos braços.
O reitor da universidade pede aos pais que se levantem. Todos aplaudem, reconhecendo que este também é o nosso dia. Lá na frente, a garota continua sua atuação. Torrentes de bolhas flutuam preguiçosamente até nós, em meio a brilhantes manchas douradas da luz do sol. Cada uma delas me parece trazer recordação de Jeff quando estava crescendo.
Eu o vejo aos 2 anos de idade, sentado no colo de Richard, apontando as letras do alfabeto, construindo uma fortaleza no mato e instalando o escritório em seu quarto – que sempre foi um foco de atividade, onde cada espaço disponível ficava empilhado de livros, coleções de pedras, tampas de garrafas, figuras de jogadores e selos. Meus pensamentos saltam para uma lembrança de Jeff, aos 12 anos, sentado à mesa da cozinha, aprendendo sozinho a datilografar, “catando milho” na velha Remington que comprara com o próprio dinheiro numa liquidação. E depois assisto ao diretor chamar o autor da peça de Natal da sexta série. No palco aparece Jeff, vindo dos bastidores, as faces coradas de orgulho e constrangimento diante dos aplausos.
As bolhas continuam a esvoaçar. No meio delas estão minhas recordações. Eu me pergunto como passei tão depressa da cadeira em que assisti à peça de Natal da sexta série para a cadeira onde estou assistindo hoje à formatura. Como todos aqueles dias – de reuniões de escoteiros, treinos dos juvenis e longas viagens à escola – transformaram-se em anos tão rapidamente? No final da cerimônia, que de certo modo marcará o fim de nossos anos de mentores de Jeff, o que devo dizer? Encontramos nosso rapaz no largo gramado verde atrás das cadeiras. Todos estão circulando por ali com alegria. É hora dos cumprimentos. Mas quando me sinto envolvida pelos braços carinhosos de Jeff, em sua beca preta, não encontro palavras.
Tudo bem. Não tenho nenhum aforismo apropriado nem palavras polidas de sabedoria engarrafada para meu filho levar em sua viagem pela vida, como excesso de bagagem. Meu trabalho como mãe já foi feito, em momentos tranqüilos, quando lhe contava histórias na hora de dormir, nas longas conversas na cozinha, nos ensinamentos e sermões, assim como nas demonstrações através de exemplos das nossas vidas diárias
Agora, minha cunhada Gloria nos faz posar para uma foto. Os garotos mais novos, Robert e John, ficam na frente, sorridentes e orgulhosos. Jeff se posta na fila de trás, entre Richard e eu. Sinto a mão de Richard em meu ombro. Gloria bate a foto e nos congela no tempo.
Amanhã, Jeff pode passar ao futuro. Por hoje, vamos parar só um instante, festejar e aplaudir uns aos outros, dirigindo nossa visão tanto para a frente quanto para trás, enquanto as bolhas deslizam por nós, delicadas, efêmeras, esvoaçando pelo sol e pela sombra e, por fim, erguendo-se para o céu límpido e sem fim.