quarta-feira, junho 28

A recompensa de uma boa ação

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1999
Autor : Peter Godwin

Um ato de bondade pode ter repercussões inesperadas

Filho de colonos ingleses, cresci na África e muitas vezes acompanhava minha mãe, médica, nas rondas. Saíamos em seu carro, que parecia uma clínica móvel.
Percorríamos centenas de quilômetros nos arredores de Melsetter, lugarejo na região rural e montanhosa no leste do que era então a Rodésia. Ali se via de tudo, às vezes até a morte.
O recurso mais importante que minha mãe possuía para salvar vidas era o programa de vacinação. As longas jornadas a fim de imunizar as pessoas contra varíola, dfteria, tuberculose e poliomielite tornaram-se parte de nossa rotina durante a estação seca.
Certa vez subimos até as cintilantes montanhas de granito de Chimanimani, na fronteira da parte mais remota e inexplorada de Moçambique, onde a guerrilha contra o domínio português estava em marcha.
Quando chegamos, milhares de pessoas pertencentes à etnia local Ndau estavam reunidas – muitas delas procedentes do outro lado da fronteira. Não era responsabilidade nossa vacinar moçambicanos. Entretanto, mamãe achou que deveria faze-lo porque os Ndau cruzavam livremente a fronteira.
Eu ajudava a vacinar as crianças contra pólio. Carregava uma bandeja com torrões de açúcar e dava um para cada criança. Atrás de mim vinha um auxiliar de enfermagem com um frasco da vacina. Ele pingava uma gota da solução cor-de-rosa em cada torrão. Então eu pedia que colocassem a língua para fora e percorria a fileira para verificar se todas as crianças tinham engolido o açúcar. Meu maior problema era evitar que elas voltassem em busca de novo torrão de açúcar.
Aqueles foram dias de relativa paz. Mas quando atingi a idade adulta, na década de 70, a guerra pelo poder da maioria negra ampliou-se na Rodésia. Nosso distrito, de longa fronteira com Moçambique, foi devastado. Quase todas as fazendas foram atacadas. As montanhas Chimanimani transformaram-se em um vasto campo minado. Estrondos ecoavam pelos vales quando antílopes e outros animais explodiam, seus pedaços voando pelos ares. Durante quase dez anos nenhum ser humano se aventurou por aquelas paragens.
Fui para a Inglaterra. Tentei esquecer a África, repudiar minha terra natal – agora chamada Zimbábue – como um lugar de recordações demasiadamente brutais e violentas. Um lugar de morte.

Formei-me em jornalismo e logo comecei a trabalhar para o Sunday Times, de Londres. Em 1986 o jornal me enviou para a África do Sul, onde os distritos de negros estavam freqüentemente em chamas. Foi de minha base em Johannesburgo que me aventurei a voltar a Moçambique pela primeira vez desde a infância.
Na época, Moçambique estava devastado por décadas de guerra e fome. Era considerado o país mais pobre do mundo. O próprio governo marxista lutava contra nova geração de rebeldes.
Divulgava-se que os rebeldes moçambicanos tinham bases na vizinha Malauí, embora não houvesse provas disso. Malauí em geral expulsava os jornalistas estrangeiros. Mas, aproveitando-me de uma viagem do Príncipe de Gales, consegui entrar como parte da comitiva oficial de imprensa que o acompanhava.
Logo me separei do grupo e me dirigi para o sul. Por um dia e meio rodei ao longo da fronteira de Moçambique, conversando com habitantes do local e missionários. Por fim, na metade do segundo dia, parei em um estabelecimento comercial.
O interior da loja estava escuro, em contraste com a forte luz do sol lá de fora. Perguntei ao comerciante se ele já vira rebeldes desse lado da fronteira. Meus olhos haviam se acostumado à escuridão a tempo de ver seu amplo sorriso desaparecer. Do canto mais distante ouvi um clique metálico.
- Quem quer saber? – perguntou uma voz grave.
Naquele canto havia seis homens envoltos em cartucheiras, com granadas marrons pendendo dos cinturões. Os fuzis russos Kalashnikov estavam apoiados na parede. Um lança-bombas descansava sobre a mesa de concreto, enquanto os homens bebiam refrigerantes.
- Você vem com a gente até a base – disse um deles.
Todos se levantarem para sair, o equipamento tilintando.
Caminhamos penosamente através da vegetação de arbustos, em direção ao sul. O membro da patrulha que falava inglês separou-se do grupo e me vi na companhia de cinco guerrilheiros fortemente armados e sem nenhum meio de me comunicar. O líder era um sargento violento que, apesar do intenso calor, estava com boina de lã, do tipo usado por aviadores russos, com protetores de orelha de pele que iam até os ombros como as orelhas de um cão spaniel.
Em cada acampamento rebelde por que passávamos, eu percebia que a história da minha “captura” era dramatizada. Eu estava armado. Resistira. Era um espião. Às vezes a narrativa era acompanhada por tapas e chutes. Quanto mais dagga – maconha – meus captores fumavam, mais heróicos se tornavam por me terem dominado. Comecei a temer que o sargento de olhos injetados atirasse em mim como um truque alucinógeno para impressionar os camaradas.
No segundo dia, finalmente, alcançamos a base. Recebi alimentos e permissão para limpar-me com um pano úmido. Então fui apresentado ao comandante do campo, um homenzinho de uniforme de campanha verde-oliva.
Sentado à mesa de fórmica arranhada, ele bebia vinho direto da garrafa. Enquanto ouvia o longo relato de minha captura, seu jantar chegou, servido com grande cerimônia por um criado com uma toalhinha gasta pendurada no braço. Recebi ordens de esperar.
Até então eu não entendera as línguas em que tinham falado – mistura de moçambicano do norte com dialetos malauianos, intercalada com frases em português. Mas agora ouvia distintamente o comandante dar ordens a seu servente em chindau, dialeto usado pelo povo Ndau. Escutei um pouco mais para ter certeza e então, hesitante, saudei o comandante com o que pude lembrar-me do dialeto chindau.
Ele ficou perplexo.
- Onde você aprendeu essa língua? – perguntou.
Disse-lhe que tinha vivido nas montanhas Chimanimani, no lado rodesiano, quando era garoto.
- Qual o nome da sua família? – ele quis saber.
- Godwin.
- Godwin – repetiu ele, pensativo, revirando o nome na mente.
- Sua mãe era médica daquela região?
- Era – disse eu.
- Era a chefe do serviço médico do governo no distrito de Melsetter.
Ele sorriu e balançou a cabeça, oferecendo a mão aberta voltada para baixo, no aperto de mão africano.
- Então foi sua mãe quem me vacinou quando eu era criança.
Suspendendo a manga, ele me mostrou a pequena cicatriz da vacina no ombro.
- Você costumava ir com sua mãe para ajudar? – perguntou.
Assenti com a cabeça.
- Isso mesmo – disse ele.
- Você me deu o açúcar com remédio. Lembro-me bem agora. A gente colocava a língua para fora e você percorria a fila com a bandeja de torrões de açúcar, pondo um em cada língua.
Por fim, soltou minha mão.
- Veja como cresci forte! – acrescentou.
Em poucos minutos eu passara de refém a hóspede de honra. Fui conduzido para uma cadeira ao lado direito do comandante. Meu sargento captor evaporou-se.
No dia seguinte fui levado de volta a Malauí. Na fronteira, minha escolta cerimoniosamente me devolveu os objetos confiscados. Antes de partirem, insistiram em fazer uma fotografia do grupo. O dono da loja bateu a foto: quatro rebeldes e eu, o sargento ainda usando a boina de lã, o braço descansando em meu ombro num gesto de possessiva camaradagem.
Até hoje guardo essa foto – prova de que uma boa ação permanece sempre viva.

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