sexta-feira, junho 2

O maior papel da minha vida

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1972
Autor : Michiyo Kogur

Uma das maiores atrizes japonesas conta sobre um encontro casual que a levou a um papel inesquecível num drama da vida real

No verão de 1958, certa manhã, recebi uma carta dos Estados Unidos. “Carta de fã”, pensei, e abri o envelope. Para surpresa minha, começava: “Permita-me chamá-la de minha mãe.” Pensei que tivesse aberto uma carta de alguém. Examinei o envelope, e era, sem dúvida, para mim mesma.
O remetente, Yukio Ito, explicava que estudava numa universidade americana e, além de querer chamar-me de mãe, queria que eu escrevesse o prefácio de um livro a sair – Crianças Andando à Luz – da autoria de Hiroshi Shinagawa, do Lar de Meninos Aisei. Se eu lesse o livro, cuja chegada Yukio garantia pelo próximo correio, compreenderia porque me pedia o prefácio e porque ele desejava pensar em mim como sua mãe.
Por mais que pensasse, não conseguia localizar Yukio Ito nem Hiroshi Shinagawa. Quando o livro chegou, eu e meu marido – que passara a mexer comigo chamando Yukio de “outro filho” – o lemos com grande curiosidade.
Havia na obra um ensaio de Yukio; explicava que as sementes da história tinham sido lançadas havia uma década, quando ele e eu nos encontráramos por acaso. Fora logo depois da Segunda Guerra Mundial, quando centenas de crianças sem lar perambulavam pelo país. Yukio era uma delas. Mas deixemos que ele conte como foi.
“Era um dia extremamente frio para o começo de março”, escrevia ele. “A chuva da manhã se transformara na geada da tarde, que penetrava nos buracos dos meus tênis. Pouca gente andava pela Ginza. Não se via qualquer dos nossos melhores fregueses, os soldados americanos. Como engraxate novato, eu estava desesperado. Com o meu amigo Nakamura, estávamos encostados à parede do American Post Exchange. Nakamura lamentava-se de ter deixado o orfanato, onde pelo menos teria o que comer”.
“Eu morria de saudade de um prato de guisado feito pela minha falecida mãe. Mal conseguia agüentar as câimbras de fome, e estava pensando em começar a bater carteiras quando uma voz estranha me arrancou dos sonhos. “Coitadinho! Você deve estar morrendo de frio! Tome isto, coma alguma coisa quente!” Diante de mim estava uma mulher linda, com um casaco branco e parecendo um anjo. Ela meteu-me 200 yens na mão e desapareceu. ‘Muito obrigado’, foi tudo que deu tempo de dizer”.
“Yukio, exclamou meu companheiro. ‘Você é um cara de sorte! Sabe quem era? Michiyo Kogure, a famosa artista de cinema! Nunca vi uma mulher tão bonita!”
“Meu corpo foi envolvido numa onda gostosa de calor. De repente, era mais luminoso o mundo à minha volta. Jamais esquecerei a bondade dela, disse para mim mesmo. Lembrarei para sempre de como ela trouxe esperança quando eu me sentia tão desesperado”.
Pouco depois desse encontro, aconteceu que Yukio foi aceito no Aoi-ryo, um lar para órfãos de guerra na cidade de Hamamatsu. Um dos assistentes sociais do orfanato era Hiroshi Shinagawa, que tomou o menino sob seus cuidados e acabou seu grande amigo.
Shinagawa sonhava com a construção de um lar para os meninos de Maebashi, sua cidade natal. Para seus assistentes, escolheu Yukio e cinco outros garotos. No começo, parecia inatingível. Enquanto Hiroshi buscava ajuda financeira, Yukio e seus amigos ganhavam a vida engraxando sapatos e vendendo peixe. Até que um dia, em dezembro de 1953, o sonho tornou-se realidade. O novo lar ficava numa colina com um campanário em ponta. Chamaram-no Aisei – a casa do amor e da sinceridade.
Hiroshi Shinagawa, em seu livro, contava a história emocionante de como seu sonho se realizara. Era tão triste, às vezes, que vinham-me lágrimas nos olhos.
Ficamos tão emocionados, meu marido e eu, que ali mesmo decidimos que concordaríamos com o pedido de Yukio. Algo dentro de mim fazia-me sentir inseparavelmente ligada àquele intrépido grupo de meninos de Aisei. Seria o começo de uma longa amizade entre Yukio ( que ganhara uma bolsa nos Estados Unidos, graças aos seus conhecimentos de inglês ), os meninos de Aisei e a nossa família, em Tóquio.
Em suas cartas, Yukio contava as suas dificuldades em adaptar-se à vida americana. Mas não desistira, e finalmente tornou-se professor de Espanhol e Francês num ginásio. Aí, sua personalidade ativa e bondosa tornou-o logo um dos professores mais populares, não só com os alunos, mas também com os pais. Ao saberem de como ele e seus amigos haviam construído Aisei, os pais dos seus alunos ficaram tão comovidos que, com a ajuda de outras pessoas, começaram a enviar mensalmente contribuições de 200 a 300 dólares. Aquele a quem um dia tinham dado esperança começava agora a conquistá-la para outros.
Quanto ao próprio Yukio, ele cedo percebeu que, cercado de tanta bondade, lançara raízes na América. Suas cartas eram sempre motivos de alegria para nós. Hoje, leio-as para os meus filhos, na esperança de que, como Yukio, eles aprendam a não perder a esperança.
Foi um dia maravilhoso quando, depois de seis anos de correspondência, soubemos que Yukio viria ao Japão. Sua chegada apareceu na imprensa. Ele foi meu “convidado-surpresa” num programa de TV, e foi realmente um encontro dramático. Quando Yukio me beijou, dizendo “Cheguei, mamãe!” parecia-me que o conhecia havia anos. “Era ele realmente aquele garotinho que tremia de frio naquele dia de neve?” eu me perguntava entre lágrimas. Não era só eu que chorava: Hiroshi Shinagawa, o entrevistador da TV, os técnicos do estúdio – todo o mundo estava chorando.
Embora ocupadíssimo, Yukio teve tempo de conhecer uma garota de quem ficou noivo. Nesse mesmo ano, pelo Natal, voltou ao Japão e casaram-se. Mas ele se defrontava com obstáculos intransponíveis. As leis americanas de imigração impediam-no de levar a mulher com ele.
De volta aos Estados Unidos, Yukio esperou durante um ano e meio. Finalmente, não vendo perspectivas, resolveu vender sua casa recém-adquirida e voltar para o Japão. A essa altura, algo dramático aconteceu. Os alunos do Ginásio Franklin ergueram-se em sua defesa.
“Nós queremos que Itó fique conosco! Mudem as leis de imigração, esse muro do Pacífico!” exigiam eles, e conseguiram o apoio de outras escolas na petição ao Governo. O movimento alastrou-se, com apelos, inquéritos públicos, desfiles. O movimento chegou à atenção do ex-Presidente Johnson, que escreveu às autoridades escolares dizendo que se interessaria pelo problema. E por fim, a 1º de dezembro de 1965, Yukio recebeu permissão de trazer a mulher para sua nova casa.
Entoando o hino Deus Seja Contigo Até Nos Encontrarmos Novamente, Hiroshi Shinagawa e as crianças de Aisei foram despedir-se da mulher de Yukio no aeroporto.
“Yukio merece a sua felicidade”, Hiroshi exclamou, comigo ao seu lado, na rampa do aeroporto. “Seu espírito indômito nos inspira e estimula a todos em Aisei.”
No cinema, já desempenhei papéis de boa mãe e de vagabunda. Representei também o papel de uma pessoa que, sem se dar conta, fez mudar o curso da vida de um estranho. Mas, de todos os meus papéis, nenhum se compara com esse que Deus me destinou na vida de Yukio Ito.

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