quarta-feira, abril 25

Ela tira música da madeira

Fonte : Revista Seleções
Data : Maio de 1998
Autor : Duane Noriyuki

Poderia a fabricante de violinos despertar o canto no bordo bósnio?

Primeiro foi a música dos galhos curvados pelo vento incessante. Antes de Bach ou Beethoven, antes das cordas ou notas escritas, o concerto soprava pela floresta. A árvore oferecia o canto em ascensão e declínio, até que, num crescendo vigoroso, foi derrubada. Então, fez-se silêncio.
Passaram-se décadas antes que a madeira, cortada com precisão e devidamente seca, chegasse à fabricante de violinos Rena Weisshaar, na Califórnia. O bordo em suas mãos foi da floresta Bósnia para os Estados Unidos por meio de um homem que ela amava, por vezes temia e nunca chegou a compreender plenamente. Hoje, porém, preparando-se para devolver a música àquela madeira, ele está sempre presente em seus pensamentos.
Na sua Alemanha natal, Rena freqüentou a escola de fabricação de violinos em Mittenwald, levada por seu amor pela música. Lá, apaixonou-se – pelo ofício, pela madeira e por um estudante americano.
Rena e Michael Weisshaar casaram-se em 1964 e foram para os Estados Unidos trabalhar com o pai de Michael.
Hans Weisshaar, um dos mais talentosos restauradores de violinos de sua época, viajava freqüentemente de sua oficina em Hollywood à Europa para adquirir material e as melhores madeiras. Rena trabalhava por muitas horas com Hans. Por vezes, avaliava o humor dele a distância e resolvia não se aproximar, pois Hans sabia ser dolorosamente indelicado. Mas tratando-se de madeira, Rena percebia a genialidade de seu trabalho.
Depois de um desentendimento com Hans, o casal mudou-se para Costa Mesa e abriu a própria oficina. Passaram quatro anos sem falar com Hans. Então, no natal de 1979, Michael e Rena apareceram à porta da casa de Hans. Rena estava grávida pela terceira vez, de Marianne. Ele convidou-os para entrar e a paz foi restabelecida.
No batizado de Marianne, Rena deu a Hans um violino que fizera. Observou-lhe o rosto enquanto ele o examinava, ansiando por sua aprovação.
“Bom trabalho”, disse ele. “Venha até a loja. Tenho algo para você.”
Hans levou-a para o local onde guardava a madeira.
“Leve o que quiser”, ofereceu ele.
Era sua forma de dizer que ela merecia a melhor madeira – o máximo do elogio. Além de uma grande caixa de madeira, Rena escolheu duas pranchas de bordo bósnio semelhantes, colocando-as debaixo da cama, para mantê-las em segurança.
Hans morreu e passaram-se anos. Então, em junho de 1996 Rena recebeu um telefonema de Haroutune Bedelian, violinista de concerto e professor associado de violino na Universidade da Califórnia, em Irvine. Queria saber se Rena poderia fabricar uma cópia de seu violino feito em 1699, por Giovanni Rogeri, que – como Antonio Stradivari - fora aprendiz na oficina de Nicolo Amati.
Rena ficou aturdida. Nunca fizera um violino para alguém tão conceituado quando Bedelian. Foi para casa e procurou embaixo da cama. Estava na hora de fazer seu precioso bordo tornar a cantar.
As datas e números de cada instrumento que Rena fabricou estão escritos na parede. O Bedelian será o número 27.
Primeiro, as pranchas em forma de cunha, de cerca de 40 centímetros, e cada qual mal dando para a metade da largura da parte de trás do violino, deviam ser coladas de modo a quase não aparecer a emenda. Esse trabalho pode tomar um dia inteiro e levar a pessoa às lágrimas.
No entanto, as duas placas de bordo só constituem parte de trás do violino. Ao todo, são 58 peças que compõem esse instrumento, trabalhando em conjunto para transmitir o intercâmbio preciso de vibrações. Fabricar um violino é como andar na corda bamba. As expectativas são muitas, mas o desastre anda à espreita.
Normalmente, Rena pode completar uma encomenda em 300 horas. Entretanto, para um fabricante de violinos, um mês passado na produção de um instrumento fraco é mês perdido. Um ano ou uma vida passados na fabricação de um instrumento excelente, que possa produzir sons superiores durante décadas ou séculos, é tempo bem gasto.
No princípio de agosto, após dois meses de trabalho no violino, Rena descobre uma imperfeição – bolsa de resina escondida na parte de cima, que é feita de abeto, a madeira mais ressoante. Ela poderia prosseguir e o abeto continuaria a parecer lindo. A música, porém, deve vir de dentro da madeira. Ela recomeça.
A arte de Rena baseia-se em padrões estabelecidos pelos mestres italianos, sobretudo Stradivari, Guarneri, Amati. Pouco foi escrito sobre suas técnicas ou o material que utilizavam.
Rena confia basicamente nos instintos e métodos tradicionais, usando poucos instrumentos elétricos por medo de que uma vibração excessiva possa prejudicar a madeira. “Não sei o que diria um cientista, mas não me importo”, diz ela.
No início de 1997, o violino está pela metade. Rena aproxima a madeira do rosto, de modo que esta capte a última luz do dia, inclinando-a lentamente de um lado ao outro para examinar as sombras que indicam alguma irregularidade.
Em fins de fevereiro, Rena começa a parte que exige maior esforço físico na construção de um violino. Bordo fixo em seu lugar, ela trabalha com uma goiva para escavar o interior. Seus gestos são rápidos e explosivos. No final ela deve deixar a madeira de todo o violino com diferentes espessuras, que variam de 2,3 a 4,6 milímetros. Se a parte de trás for fina demais, o tom desaparece rapidamente. Se estiver grossa demais, o som será surdo.
Espirais finas e regulares surgem da lâmina de Rena. O tom do aço contra a madeira muda quando ela aplaina a parte de trás. De vez em quando Rena pára, aproximando a madeira do ouvido e batendo nela com um dedo, querendo ouvir um fá sustenido.
A raspagem final será feita com plainas pequenas, algumas não maiores do que um dedal. Isso exige coragem. “Quando vou usar as plainas, fico quase doente de medo”, confessa ela. “É importantíssimo.”
No entanto, ela tem de continuar. Talvez fosse essa a realização de Hans: treinar uma geração de fabricantes e restauradores dispostos a enfrentar o medo e a dúvida.
Em março, Rena entra na fase final. Prepara-se para cortar os furos dos sons, no alto. Ensaboa a lâmina da serra de vaivém manual para lubrifica-la e segue um modelo. Em seguida, usa faca para conseguir as medidas precisas tiradas do Rogeri de Bedelian. Depois de uma hora respira fundo. “Pronto”, diz. “De repente tem um rosto.”
Em abril, Rena completa o trabalho na madeira. Ferve e seca a haste de um eqüisseto – planta silvestre -, esfregando-a levemente na madeira. A superfície um tanto abrasiva deixa um acabamento cristalino. Com um pedaço de lençol de algodão, ela esfrega óleo delicadamente na superfície, e depois pendura o instrumento para secar no varal da oficina.
Vinte e duas mãos de verniz dão ao violino a cor castanha. A última semana passa-se no acréscimo das cavilhas, cavalete e outros acessórios. Quase um ano depois de ter começado, finalmente as cordas são colocadas.
A ansiedade de Rena aumenta: não há meio de saber como o instrumento vai funcionar até que um músico explore suas profundezas. “Quem sabe?, diz ela. “Talvez tenha o som de uma panela.”
Bedelian chega no dia 5 de maio. Rena vai aos fundos da oficina e volta com o violino. Bedelian o segura a distância, examina sua cor e forma, coloca um lenço sobre o descanso para o queixo.
“Então lá vai”, diz, levantando o arco.
Toca algumas escalas e pára de súbito. Rena fica gelada.
“É tal e qual o meu violino”, comenta ele.
Rena volta a respirar.
Bedelian toca mais, olhos fechados, movendo o arco devagar e depois acelerando, tocando avidamente cada vez mais alto, levando-o em seguida com elegância de novo a um murmúrio, e afinal abre os olhos.
“Excelente!”, diz sorrindo. “Ótimo!”
E por fim, com calma.
“Bravo!”
Rena agora terá uma sensação de vazio, quando o violino sair da oficina. Entretanto, não consegue esconder o orgulho que sente por aquele instrumento, nem esquecer as palavras de Hans. Só gostaria de que ele ainda estivesse vivo e as repetisse:
“Bom trabalho.”

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