terça-feira, abril 3

A honra de um cowboy

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1998
Autor : Steve Wagner

Onde outrora se situavam vendas e botequins, restam apenas sonhos esquecidos. Vilarejos, que em certa época palpitavam de vida nas planícies, foram engolidos no decorrer da existência. E, em algum lugar na maré ondulante de relva e areia, encontra-se a integridade de certo homem, sua oportunidade de acertar contas com uma parcela não resolvida do seu passado.

Vincent Engelman entrou despreocupadamente na barbearia de Beaver, Oklahoma, para cortar o cabelo. O jovem sempre gostara do local. Bastante limpo, o salão ressoava com risadas e a cadência aguda do corte das tesouras.
Naquele dia, Engelman sentou-se na cadeira de barbeiro e contou sobre o novo trabalho com gado numa fazenda próxima a Beaver. Quando o jovem relatou a boa sorte, o velho barbeiro recordou-se das esporas que usara durante o tempo em que trabalhou numa fazenda. Uma antiguidade já naquela época, elas permaneciam intactas e soberbas com seus arcos e hastes de aço incrustados de prata, rosetas polidas e correias de couro lubrificadas.
As esporas haviam pertencido a um soldado da cavalaria dos Estados Unidos, designado para patrulhar o território livre conhecido como Terra de Ninguém. Quando se aposentou, legou as esporas a um filho agradecido que conseguira emprego como vaqueiro.
Anos depois, ainda calçando as esporas do pai, o jovem cowboy foi atirado ao chão por seu cavalo assustado, e ficou aleijado para toda a vida. Sem dinheiro e sem ter a quem apelar, foi mancando até a cidade na esperança de se estabelecer como barbeiro. Ele deixava as esporas em casa, atrás da barbearia. De tempos em tempos, segurava-as. Representavam lembranças embaçadas de um soldado e um cowboy separados por uma geração, de seus dias de cavalgadas pelas mesmas vastas regiões ondulantes e de suas noites sob os mesmos céus vastos e estrelados. Durante décadas permaneceram naquele mesmo lugar, abandonadas, exceto pelo eventual manuseio do barbeiro já grisalho, em tardes de pouco movimento.
Naquele instante, o barbeiro, com os sentimentos do passado rodopiando como o pó nas ruas poeirentas de Beaver, ofereceu as velhas esporas ao jovem cowboy. “Dar de presente eu não posso, mas empresto se você me devolvê-las um dia”, disse. “Ficaria orgulhoso se voltasse a lhes dar bom uso.”
Engelman sentiu-se honrado com a generosidade do velho. Naquele dia de primavera de 1950, calçou o célebre par de esporas. Embora suas velhas botas parecessem ainda mais desgastadas junto aos arcos e hastes de metal reluzente, as passadas eram mais elegantes e determinadas. Mancando, o barbeiro foi até a porta para admirar o jovem cowboy partir.
No dia seguinte, sob leve chuva, Engelman conduzia alguns bezerros para o curral, não muito longe das margens do Rio Beaver. Por acaso, baixou os olhos e percebeu que uma das esporas se perdera.
Em pânico, saltou do cavalo e procurou-a por todo o curral. No entanto, o gado havia pisoteado a área, transformando-a em lama que chegava ao tornozelo. Buscou até o escurecer. Com a mesma constância dos pingos que gotejavam do chapéu, repassava mentalmente a imagem de um jovem caminhando sem jeito pelo assoalho rangente da barbearia, os ombros encurvados sob o peso da vergonha, para confessar que havia sido indigno da confiança do velho – havia separado o par de esporas, legado de família.
A imagem, dias depois, tornou-se realidade. Engelman devolveu a espora junto ao pedido de desculpas, que jamais seria suficiente. Nunca o bastante para apagar a culpa ou atenuar a imagem de um soldado da cavalaria bronzeado pelo sol depositando suas esporas de prata nas mãos do filho que, por sua vez, viria um dia a coloca-las nas mãos de um jovem cowboy. Na época e no lugar em que a palavra de um homem significava pacto vindo do coração, não poderia haver maior violação de compromisso. Jurou encontrar a espora perdida – e o próprio senso de honra.
Passou-se uma semana. Um mês. O inverno chegou e partiu. O verão atribulado não pareceu mais do que um borrão. Logo era outono e a espora continuava perdida.
Às vezes, a humilhação levava Engelman de volta ao curral. Sabia, entretanto, que as possibilidades de redenção iam ficando cada vez mais remotas com o passar de cada estação, de cada rajada de vento.
Com o tempo, o velho barbeiro foi enterrado e a fazenda dividida e vendida. Em 1986, parte da fazenda passou a ser propriedade do Departamento de Conservação da Vida Selvagem de Oklahoma.
Engelman ainda se aferrava ao antigo objetivo, assim como nutria esperanças. Havia se casado, criado família e se mudado para outro estado. No entanto, de tempos em tempos, retornava a Beaver.
“Posso procurar aquela espora?”, costumava perguntar a Wade Free, administrador da área e biólogo especialista em vida selvagem, nascido dez anos depois que a espora se perdera. Free gostava de escutar a história do velho, mas era cético quanto às chances de êxito de Engelman, mesmo com ajuda do detector de metais. “Era como buscar uma agulha no palheiro de 7 mil hectares”, dizia o biólogo.
Caprichosos, os ventos eternos que enterravam objetos nas areias do esquecimento também permitiam que outros ressurgissem do passado. A cerca de um quilômetro e meio do antigo curral, os alicerces de uma cidade fantasmagórica do século 19 – Rothwell, famosa por seu luxuoso hotel – haviam desaparecido. Também nas proximidades, Free deparou com certo artefato indígena de 3 mil anos, possivelmente enterrado há séculos e exumado pelas rajadas aleatórias. Ainda assim, a velha espora parecia determinada a esquivar-se para sempre de Engelman.
Ventos constantes não impediam as atividades perto do Rio Beaver. Em certa manhã de fevereiro de 1991, bem cedo, Free e o assistente Danny Watson dirigiam-se ao local do velho curral para construir uma cerca, de repente, o escavador de Watson retiniu contra um objeto sólido, a menos de um metro de profundidade.
- Batemos em uma pedra – revelou Watson.
- Aqui não há pedras – replicou Free.
Só conseguiu pensar na espora. Embora o bom senso lhe dissesse que era impossível, correu par apanhar a lanterna. Direcionando a luz fraca ao fundo do buraco de 20 centímetros de diâmetro, ficou sem respiração ao ver a roseta emperrada pela ferrugem, bem como o arco e a haste de aço, completos com as incrustações de prata, projetando-se da terra.
Free ligou para Engelman e deixou recado de que a espora havia sido encontrada próximo ao antigo curral. No dia seguinte, Free e Watson depositaram-na cuidadosamente nas palmas trêmulas do homem, agora um velho.
As extremidades e pontas um dia afiadas estavam agora arredondadas pela corrosão. As tiras de couro há muito haviam apodrecido e quase todas as partes de metal estavam desbotadas. Mas o mistério e a espera – e mais importante, o desejo ardente de reparação – acabaram, por fim.
Quarenta e um anos depois Engelman havia encontrado a espora do barbeiro. “Ele apenas ficou parado ali, fitando-a, sem palavras”, contou Free. “Tenho certeza de que ele retornou mentalmente àquela velha barbearia e devolveu o que havia pegado emprestado tanto tempo atrás. “Não vou esquecer isso nunca.”
Tampouco Engelman.
Em algum lugar no oceano de relva do encrave, onde ventos sem fim empurram esparsas colinas de areia ao longo da paisagem de pradaria, o velho soldado da cavalaria e o filho cowboy devem também estar sorrindo.

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