quarta-feira, maio 30

Meu tipo inesquecível: James Michener

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1998
Autor : Lawrence Grobel

Sua mais importante missão, como minha filha e eu descobrimos, consistia em incentivar as gerações futuras.

No verão de 1992, planejei uma visita a James A Michener, no Maine. Como nossas duas filhas estavam de férias, minha mulher e eu achamos que seria divertido passear pela região, enquanto eu trabalhava em um livro com o famoso escritor.
“Vamos conhece-lo?”, quis saber Hana, minha filha caçula.
Embora com apenas 8 anos, tinha consciência de que Michener era alguém especial. Havia notado o cuidado com que eu organizara as primeiras edições das obras do escritor em nossa estante. Cada uma delas continha uma dedicatória pessoal e exibia as iniciais J. A M. gravadas em vermelho.
“Vai depender da agenda dele”, expliquei. “É um homem muito ocupado.”
Hana entretanto, insistiu que era importante falar com ele e foi se preparar para o encontro. Apanhou um livro em branco de cinco centímetros de espessura e começou a escrever e ilustrar histórias sobre focas, uma das quais se intitulava A aventura de levar Erny, a foca, para a escola. Como incentivo, contei-lhe que Michener gostava de escrever sobre animais e li para ela trechos de livros sobre o diplódoco, espécie de dinossauro, e também sobre Jimmy, o caranguejo.
No dia 17 de julho, fui com a família até a casa simples onde Michener e a mulher, Mari moravam. Jim lembrou-se de haver carregado no colo minha filha mais velha quando bebê. Mas era a primeira vez que via a caçula. Mesmo assim, Hana logo lhe revelou que também era escritora e que trouxera consigo sua obra.
Jim sorriu.
“Pois bem”, disse ele, “gostaria de saber se você vai me deixar dar uma olhada.”
Sentou-se no sofá e Hana se juntou a ele. Abriu a primeira página e leu em voz alta: “Focas, por Hana Grobel.”
As primeiras 12 páginas do livro de Hana tratavam da natureza e da história das focas, assim como as primeiras cem páginas de Centenial tratam da história do princípio da Terra. O telefone tocou justamente quando Jim ia começar a história sobre a ida de Erny para a escola.
“Estou lendo os originais de uma jovem escritora”, comentou ele com o interlocutor.
Hana ficou radiante. Michener então se desculpou e foi atender a chamada em seu escritório. Quando retornou, dava a impressão de que lhe haviam tirado um peso dos ombros.
“Acabo de ficar 15 milhões de dólares mais pobre. Era tudo que me restava”, confidenciou-me ele. “É melhor que eu passe a tratar Mari muito bem. Vou precisar viver com o que ela tem e com o que eu possa vir a ganhar com os próximos livros.”
Fiquei atônico. Ele estava com 85 anos e prestes a começar tudo de novo.

Conheci James Michener na primavera de 1981, na Flórida, quando fui entrevista-lo para uma revista de circulação nacional. No decorrer de nossas conversas ficamos amigos. Nos anos seguintes costumava me encontrar com ele onde quer que estivesse morando ou, freqüentemente, em aeroportos por ocasião de suas partidas e chegadas do Extremo Oriente e do Pacífico Sul, onde escrevia suas aventuras.
“Minha vida tem sido, a seu modo, uma fábula dos dias de hoje”, contou-me. “É inacreditável que um sujeito como eu, que começou sem absolutamente nada, acabe doando uma fortuna.”
Era de fato inacreditável. Michener começou a vida como criança rejeitada. Foi recolhido por Mabel Michener, viúva pobre em Doylestown, Pensilvânia. Jim, além do próprio filho de Mabel, e as outras crianças de quem ela cuidava usavam roupas de segunda mão. Às vezes, não tinham o que comer.
Jamais descobriu o local de seu nascimento, nem a data (talvez 1907). “Eu poderia ser judeu, mestiço de negro ou qualquer outra coisa, menos oriental, creio”, comentava ele.
Aluno brilhante, Jim ansiava por conhecer os Estados Unidos.
“Aos 14 anos percorri todo o país vivendo de alguns trocados”, contava ele, “Antes de completar 20 anos, já conhecia todos os estados, à exceção de Washington, Oregon e Flórida. Tinha uma paixão insaciável por ouvir as pessoas contarem histórias, e o que não contavam, eu inventava.”
Uma bolsa de estudos permitiu que freqüentasse o Swarthmore College, na Pensilvânia. Embora houvesse sido suspenso duas vezes (“Eu era bem radical naquela época”), formou-se em 1929 com as maiores distinções.
Assim como nas histórias, sua vida estava repleta de extraordinárias reviravoltas. Em meio a empregos convencionais tais como professor e revisor de livros, Michener viajou com toureiros espanhóis, trabalhou em uma barcaça de carvão no Mediterrâneo e compilou canções folclóricas nas Hébridas Exteriores, próximo à Escócia. Alistou-se na marinha durante a Segunda Guerra Mundial, onde criou pitorescos relatos imaginários baseados em povos exóticos com os quais teve contato nos Mares do Sul.
O que ocorreu em seguida teria representado o ápice para qualquer um. Em 1948 sua coletânea de 18 histórias – Contos do Pacífico Sul – ganhou o Prêmio Pulitzer. Adaptado no ano seguinte para um musical de Rodgers e Hammerstein que se tornou extremamente popular na Broadway, o livro se tornou campeão de vendas.
Para Michener foi o marco do novo começo, que o lançava, com mais de 40 anos, em uma carreira espetacular. Em 1959, surgiu Hawaii, primeira de uma série de sagas de enorme sucesso – apreciados épicos históricos abarcando gerações de famílias, que se tornaram sua marca registrada.
Sua vida, no entanto, não se resumia a escrever. Em 1962, candidatou-se ao Congresso, com a idéia de abandonar a carreira de escritor caso fosse eleito. Por sorte, perdeu. Caso contrário não teríamos aqueles que ele considerava seus dois melhores livros, The source e Iberia, sem falar nos demais – num total de 44 obras traduzidas em diversas línguas, com aproximadamente 50 milhões de exemplares vendidos.
Michener vivia modestamente, e sua fortuna se acumulava. Ao menos para ele, parecia óbvio o destino a ser dado ao dinheiro: sem filhos, ele a doaria aos outros.
O desejo de doar se originou de dois incidentes na infância que mudaram sua vida. Um deles envolvia uma coleção de obras de Honoré de Balzac comprada por sua tia que, por sua vez, a enviou à sua mãe.
“A pessoa afortunada”, disse Michener, “é aquela que lê, ou ouve música, ou admira a arte, ou passa por uma experiência que se coaduna com sua postura em determinado momento. No meu caso, algum palhaço passa pela cidade e vende à minha tia uma coleção das obras de Balzac. Para que? Ela não tinha interesse em Balzac nem poderia ter gastado esse dinheiro. Eu, porém, leio toda a coleção, que me cai como uma bomba! Se alguém pudesse escrever exatamente como desejasse, escreveria como Balzac.”
O outro incidente ocorreu quando Michener ganhou a bolsa de estudos para Swarthmore. O diretor de sua escola de 2º Grau foi ver Mabel Michener. Estava convencido de que o garoto não seria motivo de glória para aquela faculdade, e achava que deveria, em vez disso, tornar-se encanador. “Ele desprezava os pobres”, recorda-se Michener. “Ficou indignado com o fato de eu ter recebido aquela bolsa de estudos.”
Michener jamais se esqueceu da importância de sua instrução – e passou toda a vida ajudando discretamente para que outros tivessem a mesma oportunidade. Recordo-me de uma visita que lhe fiz em junho de 1983, em Pasadena, onde ele faria um discurso de formatura. Ouviu-se uma batida à porta de seu quarto de hotel. Entrou um nervoso estudante de Engenharia.
Estava ali para conhecer seu benfeitor e agradecer-lhe as duas bolsas de estudo. Michener soubera que o aluno talentoso fora obrigado a abandonar os estudos para trabalhar. Parecia feliz por ter ajudado o jovem a retomar seu caminho.
Michener e Mari também ajudavam instituições de ensino. As quantias eram assombrosas. Só a Universidade do Texas recebeu o total de 44,2 milhões de dólares. Durante a semana em que estive com ele no Maine, Michener recebia ligações diárias a respeito de sua oferta em subsidiar um curso local de redação.
“É parte do que sempre acreditei sobre o tremendo valor da arte de escrever”, explicou. “Se, por acidente, você é regiamente recompensado como escritor, a única atitude sensata a tomar é reinvestir de volta no sistema.”

Aquela última chamada no Maine em que aceitaram sua oferta representou momento de triunfo pessoal, do qual me senti privilegiado em compartilhar. Michener ainda teria de contar a Mari que estavam mais pobres em 15 milhões de dólares. Antes, disso, porém, tinha outra obrigação a cumprir: ainda não havia terminado de ler a história de Hana. Então, sentou-se ao lado dela e concentrou-se na leitura. Sua missão, afinal, era incentivar novas gerações, e ali estava alguém de 8 anos em busca de estímulo.
“Puxa!”, exclamou Michener quando chegou à parte em que a professora, não permitindo que a foca freqüentasse a escola, fez com que fosse levada ao zoológico.
“Está vendo? Ela está chorando”, disse Hana, apontando para um dos desenhos.
Na página seguinte, quando o administrador do zoológico devolve a foca à menina, Michener demonstrou sua aprovação com um sinal de cabeça.
“A história é muito boa”, conclui ele, “porque no final todos ficam felizes.”

Na vida, os finais nem sempre são tão felizes. Mari Michener morreu de câncer em setembro de 1994. Quando os rins de Michener passaram a falhar, ele precisou fazer diálise e acabaram-se as viagens pelo mundo. Na época estava morando em Austin, mas continuava a escrever livros. Na verdade, foram mais sete, depois de ter “começado tudo de novo” em 1992.
Em 6 de outubro de 1997, liguei para ele e falei com sua querida governanta, Amélia, que revelou que o fim estava próximo. Ela a colocou na linha.
“Sente muita dor?”, perguntei.
“Estamos agüentando bravamente”
“Não resta muito tempo, não é, Jim?”
“Como vão suas filhas?, replicou, mostrando que não desejava mais falar sobre si.
Disse-lhe que minha filha mais velha, Maya, estava no processo de seleção de algumas faculdades.
“Quais?”, quis saber.
Depois que lhe contei, houve silêncio por alguns momentos. Então disse:
“Se quiser traze-la para cá (Universidade do Texas), nós pagaremos a primeira anuidade escolar.”
Foi a última vez que falei com James Michener. Mesmo lhe restando poucos dias, seus instintos sempre se dirigiam à vida, e mais uma vez estendia a mão.
No dia em que Michener morreu, 16 de outubro de 1997, Hana abriu o livro Creatures of the kingdom: stories of animal and nature, que ele lhe enviara alguns meses antes. Com o dedo, percorreu o índice.
“Ele nunca escreveu sobre focas”, disse ela.
“Talvez”, sugeri, “porque sabia que outra outrora, mais jovem, estava se dedicando a isso.”

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