sábado, julho 28

Aproveite a partida

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autor : James Dodson

A jornada chegava ao fim, e meu pai insistia em jogar à sua maneira

Meu velho era um cara que sempre via o lado bom de tudo. Quando adolescente, eu o chamava, nem sempre afetuosamente, de Oti, o místico, devido ao seu louco otimismo, eterno entusiasmo e imperturbável jeito de ver qualquer problema ou crise como “oportunidade de crescimento”.
Durante 30 anos, fora representante sênior de uma das maiores firmas de publicações industriais do mundo. Transformara o apático setor de publicidade em próspero território de milhões de dólares. Para Oti, o trabalho duro era forma de jogo, pois envolvia a solução de problemas. Esta visão se encaixava como luva na filosofia de seu jogo preferido – o golfe.
Ele pôs um taco em minhas mãos pela primeira vez quando eu tinha uns 10 anos. Atirei bastante mau humor pelos montículos da Carolina do Norte, e tacos também. Eu tinha tanta pressa de ser bom que ele me mandava “relaxar e aproveitar porque o jogo termina logo”. Não entendia o que ele queria dizer.
“O verdadeiro prazer do jogo”, explicava, “estava em decifrar o enigma de cada arremesso – interrupção injusta, horrível jogada em terreno áspero.” Para ele, o golfe também formava o caráter. Por isso, era rigoroso com as regras: você fixava os pinos no gramado; esperava a vez; cumprimentava o adversário por um bom lançamento. Ele achava as cortesias essenciais como o oxigênio, mas eu me sentia sufocado por elas.
Finalmente, quando me acalmei e cresci, o golfe tornou-se muito mais que um jogo entre nós. Era minha porta de entrada para o universo dele – modo de ver quem realmente era aquele filósofo esquivo, engraçado, excêntrico, e em quem eu precisava me tornar.
O campo de golfe transformou-se no lugar onde conversávamos. Nenhum tema ficava de fora: sexo, mulheres, Deus, carreira, dinheiro. Debatíamos sem rancor, encontrávamos pontos em comum, competíamos como loucos e aproveitávamos os momentos do jogo.
Jogamos no dia em que Neil Armstrong pisou na lua, na véspera do meu casamento e no dia seguinte ao nascimento de meu filho. Disputamos as partidas na chuva, no vento, no calor. Normalmente jogávamos tarde, seguindo nossos vultos ao escurecer.
Mas agora papai chegava aos 80, e enfrentava desagradáveis efeitos da colostomia radical e da prostatectomia. Os joelhos estavam fracos, a audição era ruim e ele sofria de catarata, porém nunca mencionava esses problemas. E, se eu o fazia, ele apenas ria de minhas preocupações.
Num dia frio e úmido de outubro, jogamos em Pinechurst, Carolina do Norte, um de seus campos preferidos. Ele errou e perdeu arremessos que antes fazia de olhos fechados. Em dado momento, estava preparando a jogada, quando o ouvi, timidamente, pedir ajuda. Peguei-lhe a mão, que tremia um pouco. Meu coração quase se partiu. Na volta para casa, disse: “Vamos fazer aquela viagem sobre a qual sempre falamos.”
A viagem era para St. Andrews, Escócia, Meca do golfe. Estivéramos lá antes – eu como anotador de golfe, papai como sargento da Força Aérea durante a Segunda Guerra Mundial-, mas nunca jogáramos juntos.
Duas semanas antes de partirmos, ele me telefonou. “Estou com sangramento”, avisou. O Câncer voltara, espalhando-se para a região pélvica, costas e estômago. Teria um mês de vida, dois no máximo.
“Podem me encher de veneno e me fazer durar mais algumas semanas, mas quem diabos precisa disso?” Ele revelou que planejava deixar a natureza seguir seu curso. Disse-lhe que admirava sua coragem. Ele me respondeu para poupar a força dos pulmões para o campo de golfe. “Estou planejando dar-lhe uma surra em St. Andrews”, brincou. “Vejo-o no aeroporto;” Oti, o místico, falara.
Decidimos jogar em vários campos da Inglaterra antes de irmos para St. Andrews. A primeira partida seria em Royal Lytham, perto do vilarejo inglês de Freckleton. Por 13 meses, durante a Segunda Guerra, papai servira como inspetor de pára-quedismo da Força Aérea nos arredores da aldeia. Nos dias livres, jogava golfe.
Quando entramos em Freckleton, as calçadas estavam cheias de crianças de escola. “Havia crianças como estas passeando próximo à base”, disse meu pai. “Tirei fotos de várias delas. Tínhamos uma parede coberta com as fotografias.”
No campo, naquele dia, papai nitidamente saltitava ao andar. Pude vê-lo fazendo um swing com seu uniforme de sargento.
Sentamos para descansar na grama do décimo marco.
“Nosso placar está horrível”, comentei.
“Não importa. Isso é tão gostoso. Olhe aqueles pássaros.”
Avistei inúmeros pássaros brancos sobre os tetos vermelhos pontiagudos. O momento era realmente gostoso, provando, como alguém já disse, que o golfe depende, em grande parte, do parceiro que se escolhe para jogar.
Durante a partida com alguns residentes na noite seguinte, certa mulher falou sobre a recente reunião na antiga base.
“Houve uma cerimônia para lembrar o bombardeiro”, contou.
“Que bombardeiro?”, perguntei.
“O que explodiu”, respondeu ela.
Olhei para papai.
“Sabe de que bombardeiro ela está falando?”
Estava pálido.
“Sim.” Sua voz era quase um sussurro. “Venha comigo.”
Caminhamos até o cemitério nos fundos da igreja no centro do vilarejo. Eu o segui até uma grande cruz de granito polido. Li alguns dos nomes inscritos na margem de pedra que cercava o canteiro: Gillian e June Parkinson, George Preston, Michael Probert, Annie Harrington...
Trinta e oito nomes ao todo. Um túmulo coletivo.
“Como esses caras morreram?”, perguntei.
“Não eram caras”, respondeu. Eram crianças. De 4 e 5 anos. Freqüentavam a escola da igreja. Um de nossos bombardeiros chocou-se contra a escola.”
Fechou os olhos, e me perguntei se estaria rezando ou revivendo as cenas que eu não conseguia imaginar.
“Eram mais ou menos 10h30min”, disse ele. “Eu acabara de me espreguiçar na cama para dormir mais um pouco quando ouvi o enorme ronco seguido da explosão. Fui um dos primeiros a chegar à escola. Deus, que cena! Combustível queimando pela rua. Lembro de ter removido pedaços do avião, tijolos e todas essas preciosas criancinhas lá dentro, enterradas vivas...”
Vi lágrimas brotarem-lhe dos olhos. Abracei-o, e ficamos ali por vários minutos.
Ele pigarreou e prosseguiu:
“Havia uma garota em especial. Sempre sorrindo. Eu a chamava de Madame Alegria. Estava entre os mortos.”
Senhor misericordioso, pensei.
“Uma semana depois do acidente, encontrei uma nota dos pais da menina no boletim da base. Queriam saber se alguém a fotografara. Dei-lhe todas as fotos que tinha, sentamos na sala e choramos. Acho que nunca experimentei algo tão triste.”
Saímos do cemitério, fechando lentamente o portão atrás de nós.
“Estou surpreso por nunca ter me contado essa história”, falei. Ele parou e olhou para trás, para a igreja.
“Para mim, a guerra terminou aqui”, disse. “Prometi a mim mesmo que nunca falaria sobre isso novamente.”
Na noite anterior, ele me confidenciava que, ao se juntar ao Exército, era um convencido que pensava entender de tudo. Foi quando “algo aconteceu” e percebeu que “a única coisa que a vida realmente nos promete é o sofrimento. Depende de nós criar a alegria.”
Oti, o místico, nascera no acidente do bombardeiro.
Naquela noite, minha prece foi simples: queria que meus filhos jamais conhecessem a dor que papai conhecera. Porém, se tivessem de enfrenta-la, eu esperava que fossem como Oti.
Há seis esplêndidos campos em St. Andrews. No entanto, é o Antigo Campo – o mais famoso do mundo – que atrai peregrinos do golfe. A demanda é tão grande que há sorteio diário para ver quem vai jogar. Eu conhecia um funcionário que nos colocaria no campo, mas quando contei a papai sobre a subversão que planejara, ele pareceu desconcertado.
“Por que quer fazer isso?”
“Não viajamos até aqui para não jogar no Antigo Campo?”
“Acha justo ignorar as regras?”
“Não se trata disso, papai”, falei, sentindo-me como se tivesse 12 anos, ao explicar que colara na prova.
“Então, por que quer jogar lá? Já jogou muitas vezes”, perguntou.
Ambos sabíamos por que era tão importante jogar lá, mas eu não queria dizer, e tinha certeza de que ele não queria ouvir: nossa ida ao Antigo Campo, provavelmente, seria a última partida juntos. Despedida à altura, porém uma despedida é sempre uma despedida. Era disso que eu mais sentia medo.
“Se é assim que deseja”, concordei. “Vamos depositar nossas esperanças na urna.”
“Só quero se for assim, e você também, se pensar melhor”, afirmou ele.
Não fomos sorteados nos dois primeiros dias.
“Vamos esperar mais um dia”, disse ele.
“E depois?”
“Bem, se não tivermos sorte, talvez seja melhor irmos.”
“Você quer dizer ir embora?”, perguntei calmamente.
“Acho que é hora. Tenho umas coisas para fazer.”
Fui caminhar e parei junto à cerca atrás do primeiro marco do Antigo Campo. Faltava, talvez, uma hora para escurecer. Vi dois jogadores terminarem, erguerem suas sacolas e se afastarem do campo. Fiquei ali com pena de mim mesmo. Percorrêramos toda aquela distância para nada.
Naquele instante, uma voz atrás de mim observou: “Disseram-me que há quase 500 anos se joga golfe aqui e qualquer pessoa está autorizada a usar estes campos públicos.” Era meu pai.
Caminhamos devagar e conversamos sobre golfe, sobre o passado, sobre mamãe. Logo estávamos no 17º marco, o Buraco da Estrada, considerado por muitos o mais difícil do mundo. O campo estava quase totalmente envolvido pelo crepúsculo azul de outubro.
“Gostaria que estivéssemos com nossos tacos”, disse eu.
“Ah, quem precisa deles?”, perguntou papai. “Vamos jogar assim mesmo.”
Ele sacou o taco imaginário, fingiu acertar a bola e fez o swing.
“Lá”, gritou. “Bem sobre a linha. Exatamente como há 50 anos.”
Eu o passei, como sempre, em pelo menos uma centena de metros. Da parte lisa do campo, papai utilizou o taco imaginário para acertar o buraco abominável. Depois anunciou que estava usando um calço de areia, e empurrou a bola suavemente para o gramado. Estávamos jogando magnificamente.
Caminhamos até o 18º marco, fizemos belas jogadas na escuridão, e descemos para a parte lisa do campo. Durante semanas eu tivera medo deste momento. Porém, estranhamente, estava quase feliz.
“Pode me chamar de sentimental”, disse papai, “mas acho que foi uma grande jornada.”
“Os chuveiros do hotel eram muito piores do que se esperava”, respondi.
“Você está falando da viagem. Estou me referindo à jornada.”
Papai morreu em março. Algum tempo depois, fiquei incomodado pelo sonho em que eu me esquecia do som da sua voz. Acordei encharcado de suor, chorando.
Três meses mais tarde, fui ao Antigo Campo mais uma vez. Quando meus parceiros e eu nos aproximamos do Buraco da Estrada, tirei da sacola de golfe um saquinho de veludo azul. Os outros avisados sobre o que aconteceria, assistiam solenemente.
“Vocês parecem os três Cavaleiros do Apocalipse”, comentei. “Por favor, mostrem um pouquinho de desrespeito.”
Disse-lhes que meu velho falava que o golfe é um jogo que nos faz sorrir.
“Então, por favor, sorriam.”
Enquanto eles riam, despejei lentamente as cinzas de meu pai no buraco.
Após a partida, um garoto, de 11 ou 12 anos, passou por mim com a sacola de golfe nas costas.
“Como se saiu?”, perguntei.
“Mais ou menos. Sou meio fraquinho.”
“Tudo bem”, disse eu. “Aproveite. O jogo termina logo, sabia?”
“Certo. Obrigado.”
Ele seguiu seu caminho e eu o meu. E então, parei. Eu o ouvira – a voz de papai. Sorri. Oti, o místico, voltara.

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