sábado, julho 21

A verdade sobre o Dr. Berger

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autor : Jerome Groopman

Sua força estava na maneira como enfrentava o infortúnio.

Baixo e magro, cabelos claros e sorriso de menino. Dan Berger me cativou desde o início. Eu o conheci em sua entrevista para um estágio no Departamento de Oncologia e Hematologia do Deacones Hospital, de Harvard.
“Quero me dedicar totalmente à hematologia”, disse-me ele. Estava acostumado a ouvir essas palavras de candidatos esperançosos de conseguir o concorrido estágio, mas o tremor na voz de Dan me fez achar que estava sendo sincero. Ele ganhou a vaga e eu me tornei um de seus orientadores docentes.
Dan planejava retornar à sua terra quando terminasse o estágio. Eu entendia seus motivos. Os pais estavam envelhecendo. Eram judeus húngaros, sobreviventes de Auschwitz, e tinham vindo para o novo continente recomeçar a vida. Dan, filho único, e a família eram muito ligados a eles.
Muitos pacientes em minha clínica tinham Aids. Fiquei impressionado com a rapidez com que Dan adquiriu os conhecimentos necessários para fazer o diagnóstico e tomar decisões terapêuticas nesses casos e, mais impressionado ainda, com seu carinho e preocupação com os pacientes.
Depois de um ano de estágio na clínica, Dan juntou-se à equipe do laboratório, que pesquisava modificações genéticas nos glóbulos vermelhos para torna-los resistentes ao HIV, o vírus causador da Aids. Ambos sabíamos que esse projeto de terapia genética implicaria um penoso esforço, mas ele disse estar ansioso para enfrentar o desafio.
Dan trabalhava arduamente. Tomava café da manhã com as duas filhas antes de irem para a creche, chegava no meio da manhã ao laboratório e trabalhava até as 10 ou 11 da noite. Muitas vezes eu o encontrava lá aos domingos.
Eu o colocara na equipe da citologista Phong Phen. Ela o ensinou a trabalhar de forma segura com o vírus vivo.
Phong era uma pessoa muito especial. Eu a admirava, tanto pelo trabalho científico, quanto pela firmeza de caráter. Trabalhara como técnica num laboratório da Cruz Vermelha em Phnom Pehn, no Camboja. O Khmer Vermelho executou o diretor da instituição e dois médicos. Um guerrilheiro acertou a boca de Phong com o cabo do rifle quando ela tentou lhe tirar a arma, arrancando-lhe os dentes da frente.
Classificada pelo Khmer Vermelho como “tecnocrata”, foi enviada com o marido e o filho de 3 anos para ser “reeducada” num campo de trabalho na selva, onde o marido morreu. Ao perceber que nunca sairia viva dali, fugiu com o filho.
Levaram dois meses até a fronteira tailandesa. Phong nunca me contou o que aconteceu na implacável jornada pela floresta.
Certa vez, num momento mais calmo, quando perguntei sobre suas experiências com o Khmer Vermelho, ela disse:
“Dr. Groopman, isso foi há muito tempo”. A ponte fixa colocada no chegar nos Estados Unidos atrapalhava-lhe a dicção. “Conheci gente no Camboja que sobreviveu a dificuldades maiores. Agora penso no futuro, não no passado.”
“E o que você espera do futuro, Phong?”
“Tranqüilidade, Dr. Groopman. Tranqüilidade. Meu filho é um bom garoto. Os professores gostam dele. E eu adoro meu trabalho. Tive muita sorte.”
Em 1993, o inverno chegou cedo na Nova Inglaterra. Na primeira semana de outubro, Dan voltou dos feriados judaicos esgotado e abatido. Seu rosto, geralmente bem disposto, tinha um aspecto pálido e doentio. Os olhos castanhos e fundos estavam distantes e inexpressivos. Perguntei se surgira algum problema em casa. Dan me olhou hesitante, mas respondeu:
“Não, problema nenhum.”
Nas semanas seguintes, minha preocupação aumentou. Dan não era mais o mesmo. Perguntei a Phong se sabia por que estava tão distraído e deprimido.
Ela me dirigiu um olha vago. Deduzi que não sabia de nada.
O primeiro domingo de dezembro foi um dia claro e límpido. Fui ao laboratório por em dia algumas leituras técnicas. Pouco depois deparei com um artigo sobre HIV que queria comentar com Dan.
Como esperava, encontrei-o no Laboratório de Biossegurança Nível 3, o local projetado para trabalhos com agentes perigosos, como o HIV. Dan estava de pé ao lado de Phong, que pipetava uma solução numa placa de Petri grande. Esperei que ela terminasse.
“Dan”, chamei baixinho.
“Oi, Jerome.” Sua voz estava um pouco rouca.
“Tenho aqui um artigo que vai interessar a você.”
“Obrigado”, suspirou. “Vou sair e dar uma olhada. Não estou mesmo produzindo muito hoje. Phong, pode terminar isso para mim?”
Phong assentiu em silêncio.
Depois de passarmos pelos rituais de descontaminação, fomos até minha sala. Dan parou para admirar o equipamento do laboratório.
“Que lugar!”, exclamou.
Era domingo e a sala, sem ninguém, estava cheia de aparelhos parados. Eu compartilhava da admiração de Dan. Cada instrumento tinha propósito e personalidade únicos, e gozava do respeito reservado às grandes obras de arte. Dan entrou e dirigiu-se a um canto afastado do laboratório. Como se prestasse uma homenagem, parou em frente ao aparelho que definia automaticamente seqüências de genes – o rei de todas aquelas máquinas.
Aquele aparelho havia triplicado a velocidade de andamento de nosso projeto de terapia genética, permitindo-nos, esperávamos, maior rapidez nas pesquisas da cura da Aids.
“Adoro este laboratório”, afirmou Dan, enquanto saíamos da sala e seguíamos pelo corredor. “Não sou religioso como você, Jerome. Mas, ultimamente, vejo-me agradecendo pela vida que tenho, por trabalhar nesta nossa área. A medicina nos dá a oportunidade de levar uma vida moral.”
Assenti, em silêncio, perguntando-me o porque de tais ponderações naquele momento.
“Sou grato”, continuou ele, “porque, como médicos, aprendemos tanto sobre nós mesmos quanto sobre os pacientes. Principalmente aqueles com Aids ou câncer. Descobrimos todos os dias que somos mortais.” Fez uma breve pausa e completou: “Mas, é claro, disso eu já sabia.”
Entramos em minha sala. Dan me encarou com uma expressão solene e disse, quase num sussurro:
“Jerome, eu tenho Aids.”
Senti como se tivesse levado um soco. Enquanto lentamente me recuperava, o coração parecia explodir no peito. As lágrimas turvaram-me os olhos.
Levantei-me, ainda sem firmeza, caminhei na direção de Dan e o abracei.
Ficamos juntos até tarde nesse domingo, observando, da janela do escritório, o sombrio crepúsculo prateado dar lugar a uma escura noite estrelada. Ouvi Dan contar o que ele chamava de “a outra história” de sua vida.
Ele era portador de grave hemofilia. Todos os seus movimentos eram carregados de riscos: uma queda ou corte poderia resultar em hemorragia fatal.
Mesmo assim, os pais haviam-no imbuído de atitudes que o ajudaram a enfrentar primeiro a hemofilia e, agora, a Aids. O tempo todos insistiam que era ele, e não a doença, o senhor de sua vida. E quando se é o senhor da própria vida, pode-se enche-la de bons momentos, a fim de amenizar as adversidades.
Dan contraíra Aids dos concentrados de fator de coagulação contaminados que lhe tinham salvado a vida. Não se sabia que um vírus fatal podia ser transmitido com o fator protéico de doadores infectados.
Conversamos por mais de duas horas. Dan olhou para o relógio e disse que tinha de ir para casa jantar com a família. Levei-o até a porta e tornamos a nos abraçar.
Voltamos a conversar numa tarde no início de janeiro. Dan sabia que eu me perguntava como ele convivia, no dia a dia de médico, com a Aids e todos os seus tormentos. Ele contou que esses três anos, cuidando dos pacientes e estagiando no laboratório conosco, na verdade tinham lhe feito um grande bem e trazido muitas esperanças.
É lógico que havia momentos em que ficava apavorado, mas não acreditava que morreria de Aids. Nos últimos anos a medicina tinha conquistado importantes avanços terapêuticos. Dan estava otimista em relação à possibilidade de o projeto de terapia genética em que trabalhávamos estender sua vida em algumas décadas. Tinha esperanças de ver as filhas crescer. Tinha esperanças de continuar a realizar um trabalho produtivo. Enquanto pudesse manter-se em atividade, trabalharia e lutaria para viver.
Perguntei por que não me contara antes sobre a doença. Ele respondeu que adotara uma política de ‘contar a quem precisava saber’, aqueles que eram essenciais a seu atendimento médico e apoio emocional. Portanto, os pais, seus médicos e, obviamente a mulher, Rina, tinham conhecimento. As filhas só sabiam que o pai às vezes passava mal. Se piorasse, saberiam mais.
“Jerome, você não é o primeiro do laboratório a saber.”
Fiquei um pouco surpreso. A quem ele teria falado antes de mim, seu orientador, amigo e chefe do laboratório?
“Contei a Phong há algum tempo. Ficamos amigos. Você sabe o que ela já passou. Tem uma compreensão e uma força que me lembram meus pais. Pedi que jurasse segredo. Não se zangue por ela não ter contado a você.”
Agora eu entendia seu silêncio meses antes.
“Não se preocupe. Phong agiu certo ao respeitar sua confiança.”
Logo chegou junho, época de nos despedirmos dos que tinham concluído o estágio. Dan ia trabalhar num laboratório de HIV no Canadá.
Em seu último dia, ele veio com Rina e as filhas. Trouxe a câmera e, depois de fotografar o laboratório, pediu a alguém que batesse uma fotografia nossa: eu e Phong com ele e a família.
Quando abracei Dan pela última vez, pensei que eu deveria ter sido seu orientador e mestre, mas que, de muitas maneiras, fora ele meu professor. Dan ensinou-me que, aceitando as incertezas da vida, podemos, paradoxalmente, superar o medo e ampliar nossa existência. E como, mesmo sob a sombra da morte, podemos encontrar forças e coragem ao optar pelos pequenos prazeres da vida.
Dan perdeu a batalha em 1996. a fotografia em que ele aparece comigo, Phong e a família continua em minha mesa. Muitas vezes olhos para ela e reflito. Seu espírito, como a luz de uma estrela distante, continua a iluminar minha vida, muito depois de extinta a fonte.

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