segunda-feira, julho 16

Ingrediente principal

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autor : Alex Witchel

Mamãe dava as receitas, mas havia sempre algo que ela não incluía.

Quando pedi à minha mãe que me desse todas as suas receitas, ela se sentiu ofendida.
“Por que?, retrucou. “Ainda não morri.”
“Eu sei”, respondi, “mas se fizermos isso agora, você estará aqui para tirar minhas dúvidas, certo?”
Ela resmungou algo, concordando. Mamãe só aprecia a lógica quando esta lhe ocorre primeiro. Assim, fiz uma lista de 35 pratos e ela levou um ano (um ano!) para escrever as receitas. Apresentou-as com um bilhete: “Experimente, tempere a gosto e ligue para mim se não der certo.” Eu já devia imaginar.
Comecei pelo peru assado, antiga receita de família, dada por nossa cabeleireira brasileira. Olhei as instruções de mamãe. Bastava marinar o peru durante 24 horas em vinho tinto e uma longa lista de temperos.
Espere um instante. Liguei para ela.
“Normalmente você não põe um recheio no peru?”, perguntei.
“Bem”, disse ela, “pode ser cebola, maçã, ameixa seca ou laranja.”
“Mãe, você nunca pôs nada nesse peru a não ser cebola.”
“Bem, você pode pôr outros recheios.”
“Já entendi. Esse é o seu protesto passivo à minha presunção de lhe tirar o poder de mãe, não é?”
Ela riu mais ainda.
“Ah!”, continuou. “Ponha uma ou duas cebolas cortadas na assadeira com um pouco de água, para regar o peru.”
Olhei a receita. A palavra cebola não aparecia nem uma vez, quanto mais duas.
“Ótimo”, comentei com frieza.
Ela adotou um tom conciliador.
“Escute, querida, eu também me aborrecia com minha mãe quando pedia as receitas dela. Ela nunca media nada. Dizia o que eu sempre lhe disse: “Veja como eu faço.” Preparamos o mesmo prato tantas vezes que nem prestamos atenção à quantidade de ingredientes. Sentimos o cheiro, vemos o aspecto. Nem sempre sai igual.
“Mas quero que saia igual”, retruquei. “Quero que a minha casa tenha o cheiro que a sua tem nos feriados, quando tudo é delicioso e ficamos felizes de poder estar aí.”
“Vai dar certo.” A campainha da porta dela tocou. “Se tiver algum problema, me ligue.” E desligou.
Depois de por o peru para assar, fiz purê de batatas. Tendo sido criada numa família judia, sempre me sentia frustrada quando se tratava de purê. A única ocasião em que se podia prepara-la de verdade era para servir com peixe, pois manteiga, creme e leite não podem ser misturados com carne. Em nossa casa, o purê de batatas em geral era feito com sal e margarina. Assim, no decorrer dos anos, tentei várias receitas e por fim consegui uma que me agrada.
O peru assou mais depressa do que mamãe disse. Chamei meu marido e Simon, meu enteado de 14 anos, para se sentarem à mesa.
“Você fez peru sem um motivo especial?”, perguntou Simon.
“Fiz. Queria treinar”, respondi.
“Legal”, comentou ele, enquanto o pai trinchava o peru.
O gosto estava exatamente igual ao de minha mãe! Talvez aquelas vezes em que fiquei olhando enquanto ela cozinhava tivessem mesmo valido a pena. Enchemos nossos pratos, conversamos, rimos e comemos. Todos repetimos. Simon virou-se para mim, o rosto radiante. Retribuí o sorriso. Eu conseguira – tinha copiado o peru.
“Este é o melhor purê de batatas que já comi”, disse ele, empolgado.
“Ah! Que bom!”, exclamei.
“Como é que você faz?”, perguntou Simon.
Fiquei surpresa.
“Manteiga”, comecei. “Creme...”
Nossos pratos se esvaziaram. O momento mágico passara. Simon foi assistir a TV.
De volta à cozinha, olhei para o que sobrara de manteiga e de creme. Quanto eu usara? Não me lembrava. Pensei em Simon me olhando, os olhos arregalados. E entendi por que tinha sido tão difícil para minha mãe escrever aquelas receitas. E para a mãe dela. Porque não se trata de manteiga, creme ou cebolas. O ingrediente que não se pode escrever é o quanto você ama sua família – o prazer que sente em alimenta-la, cuidar dela, ver o rosto de uma criança transformar-se num instante, olhando para você com a boca cheia – com segurança e admiração.
“Como ficou o peru?”, perguntou mamãe no dia seguinte.
“Ótimo”, disse eu. “Um grande sucesso.”
“O que serviu com ele?”
Hesitei
“Purê de batatas.”
“Ah!”, exclamou ela. “Você tem uma receita boa?”
Sorri.
“Pensando bem, tenho sim”, respondi.

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