sábado, julho 14

Batalha contra os mosquitos

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autor : Nick Jans

Eles são capazes de sugar quase 500ml de sangue por dia de um só alce.

Do alto da montanha serrilhada, eu observava o Redstone Valley. Como é comum acontecer no verão aqui no noroeste do Alaska, a manhã estava luminosa, o vento soprando, mas agora começava a ficar encoberto por nuvens vindas do leste. É melhor me apressar, pensei, o acampamento ficava ainda a uns três quilômetros montanha abaixo.
Embora 18 anos se tivessem passado desde a primeira vez em que vim a esta imensa região agreste, o fascínio permanecia. Estabelecido em Ambler, vilarejo esquimó no vale do Rio Kobuk, eu achava que a vida entre os inupiats era tão rica e diversificada quanto o panorama ártico que nos rodeava. Entretanto, mesmo um luminoso dia de verão podia trazer problemas.
Quando ajeitei a mochila nos ombros, um grande mosquito do Ártico se chocou com um baque surdo contra meu rosto. Isso já havia acontecido algumas vezes durante o dia, mas estávamos no início da estação – o gelo desaparecera havia apenas duas semanas – e eu mal havia notado a presença deles. Mas agora, quando descia serpenteando a montanha, a última aragem desapareceu, e os mosquitos me atacaram. Subindo em nuvens da tundra encharcada, arremessavam-se contra meu rosto. Enfiei a mão no bolso para pegar o repelente, mas ele não estava lá. Eu me defendia com tapas e conseguia acertar cinco ou seis a cada pancada, mas devia ter uns dois mil deles em cima de mim. Os mosquitos arremetiam com o ferrão e começavam a sugar, espetando-me por cima das roupas, dezenas deles ao mesmo tempo. Mesmo quatro mãos não seriam suficientes. Anos de experiência no Alaska me haviam ensinado o que fazer numa situação dessas. Levantei a gola, apertei as alças da mochila e saí correndo feito um louco.
Quando avistei minha barraca, ainda estava correndo. E os mosquitos também. Eu tinha conseguido deixar o primeiro enxame para trás em algum lugar da montanha, porém havia mais insetos esperando em cada curva do caminho, e eles me seguiam numa espécie de cortina sibilante. Toda vez que eu reduzia a marcha, o ataque recomeçava. Parei apenas o tempo suficiente para abrir o zíper da porta de tela, e mergulhei lá dentro, em busca de segurança. Precisei de 15 minutos para me livrar dos mais ou menos cem mosquitos que conseguiram entrar comigo.
Depois que encurralei o último deles, avaliei os estragos e tentei relaxar. Minhas mãos e meu pescoço estavam sujos de sangue, e cada centímetro de pele exposta era uma cordilheira de calombos. Pelo menos eu ainda tinha minha carteira.
Lá fora, o zumbido insistente e lúbrico era quase ensurdecedor. Os mosquitos se instalaram em cima da tenda, tamborilando no nylon como chuva. Embora minha comida estivesse só a uns 20 metros de distância, contentei-me com barras de cereais que tinha na mochila e alguns goles de água choca. Enquanto comia, os insetos se amontoavam na tela da janela, introduzindo esperançosos os ferrões nas aberturas da malha. Só mais tarde naquela noite, quando uma chuva fria caiu e espalhou o enxame, me atrevi a por o nariz, que coçava, outra vez do lado de fora.
A temporada dos mosquitos nessa região do Alasca é relativamente curta – dez semanas no máximo, com o auge em junho ou início de julho -, mas é sempre violenta. Já fui importunado na Ásia tropical, devorado nas matas ao norte do Maine e mastigado nos mangues pantanosos do México. Mas nenhum dos insetos com que deparei nessas ocasiões me preparou para o encontro com os mosquitos do Ártico.
No auge da temporada, são milhões deles por quilômetro quadrado, elevando-se em redemoinhos para tragar qualquer mamífero infeliz, incluindo os humanos. Eles são capazes de sugar quase 500ml de sangue por dia, de um só alce, ou por em debandada manadas inteiras de caribus, que fogem a galope, apavorados e sem rumo. As fêmeas se perdem dos filhotes. Os machos correm até a exaustão. E com razão. Reza a lenda que um animal, ou mesmo um humano, apanhado numa dessas tempestades de inseto pode ser sugado até a última gota de sangue. Felizmente, as piores infestações não duram mais do que cerca de um mês.
Embora sanguinários, os grandes mosquitos do Ártico são criaturas frágeis. Essas abomináveis “aves do Alasca” (cujo comprimento médio é de 6 milímetros), comuns no princípio da estação, não agüentam sequer uma brisa mais forte. E fenecem sob os brilhantes raios do sol. Se está muito quente ou muito frio, se chove muito ou pouco, os mosquitos correm para se abrigar. Passam a maior parte de sua curta vida acocorados sob folhas ou voando para bebericar néctar, esperando pelas condições alimentares ideais. Uma noite tranqüila, úmida e nublada é perfeita. É então que a situação pode se complicar rapidamente.
Os esquimós que vivem acima do Rio Kobuk sabem como lidar com os mosquitos. Logo que o gelo desaparece do rio, muitas pessoas de Ambler abastecem os barcos de compensados e rumam para o litoral gélido, varrido pelo vento, a fim de passar o verão, como vem fazendo há séculos. É claro que também vão pescar e caçar focas, mas não é coincidência que essa migração anual ocorra ao mesmo tempo que o pior da temporada de insetos. Os inupiatis não reclamam muito, mas colocam uma distância entre eles e os mosquitos.
Existem ainda pessoas, como meu amigo Howie Kantner, que mostram que tudo não passa de um estado de espírito. Lembro-me dele certa noite de verão, construindo um barco. Eu estava besuntado com várias camadas de repelente, batendo com a mão para afastar os insetos do rosto, enquanto Howie calmamente tirava medidas e serrava. De peito nu. Sem repelente. Suas costas pareciam cobertas por um pêlo cinza e vivo. Ele parecia nem sequer reparar nos mosquitos, exceto se um lhe roçasse o lábio ou a pálpebra, quando gentilmente ele o afastava com a mão. “Se não pensar neles, não vão incomodar você”, disse-me ele. “Eles fazem parte da região.”
A atitude laissez-faire de Howie talvez explique por que ele não pesa mais de 60 quilos. Mas acho que meu amigo tem certa razão. Se você passa o verão no Ártico, os mosquitos são um simples fato da vida, assim como a chuva.
O norte do Alaska é um mundo cheio de fatos como esse, alguns árduos, outros belos, mas todos de uma simplicidade pura. Seja uma noite a 50 graus abaixo de zero, a encosta íngreme de uma montanha ou um enxame de mosquitos ávidos por sangue, há sempre um desafio, algo que se explica por si só e, de alguma forma, define você.
É esse o fascínio deste lugar: a oportunidade de viver, agir e respirar a terra. Mesmo depois de 18 anos, a emoção não diminuiu. Além da estrada mais próxima, ninguém afirmaria que a vida é fácil. Mas eu não a desejo de outra maneira.

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