quinta-feira, julho 12

A dama dos animais

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1997
Autor : Bob Noonan

Ela ensinou-me tudo sobre os animais e a única maneira real de se viver.

Talvez seja uma cascavel! – exclamei. Papai e eu olhamos para o interior do latão de leite. Havia ali uma cobra pintada de quase um metro de comprimento. Eu tinha oito anos e havíamos acabado de nos mudar para a zona rural de Scarborough, no Maine. Avistei a cobra numa pedreira perto da casa, agarrei-a por trás da cabeça como fazem os trabalhadores profissionais de cobras sobre quem já tinha lido, e a levei para dentro.
Nós a mostramos a um vizinho. “Não sei dizer o que ela é, mas Helen Perley sabe. ´É a ‘dama dos animais’ que dirige a fazenda de animais White. Mora a pouco mais de um quilômetro daqui.
Papai nos levou, a mim e a cobra, morro abaixo pela estrada, e parou o carro junto a coníferas e lilases. Um portão estava escondido no meio do verde. Além dele, havia um jardim ladeado por uma casa e dois prédios, de cerca de 10 metros, cheios de gaiolas de madeira feitas em casa.
Passamos pelo portão e para um outro mundo, que explodiu em vida. Coelhos correram em ziguezague pelo gramado, fugindo freneticamente. Pombos voaram dos telhados numa algazarra de asas coloridas. Um guaxinim, o focinho colado aos arames da gaiola, enfiou os dedos para fora, curioso. Dois patos brancos passaram gingando e um pavão imenso correu para o meio do jardim, olhando-nos com ar aguerrido. Papai e eu paramos boquiabertos.
A porta do prédio principal abriu-se e apareceu uma mulher baixa e esguia. “Sou Helen”, disse apertando nossas mãos. Estava com um suéter azul de gola rolê, jeans e botas de trabalho marrons. Tinha um martelo pendurado no cinto. Os cabelos castanhos e curtos eram encaracolados, num penteado bufante.
Depois que papai explicou o motivo de nossa visita, ela enfiou a mão na lata e pegou a cobra, que se enroscou em seu braço, contorcendo-se. Helen afagou a criatura delicadamente, e a cobra parou de lutar. “É inofensiva. É só uma cobra de leite. E um lindo espécime. É você o caçador de cobras?” Seus olhos azuis e límpidos olharam bem para os meus e fiz que sim, orgulhoso. “Você gostaria de caçar cobras para mim? Eu lhe mostro como faze-lo.”
Se eu gostaria! Estávamos em 1952 e meus heróis eram os exploradores do Ártico, treinadores de animais selvagens e a tripulação do Kon-Tiki. No mesmo instante, passei a pertencer a Helen.
Papai e eu vimos tudo: faisões dourados e prateados, o guaxinim e um quati, animal de forma esquisita, do tamanho de um cachorro pequeno. Vimos também tartarugas nadando numa velha banheira vitoriana. Apontando para enorme ossada branca de um metro e oitenta, e órbitas tão grandes que se podia sentar nelas, Helen disse, séria:
“Crânio de monstro do mar.”
Arregalei os olhos. Mais tarde, ela confessou que era um crânio de baleia.
Helen levou-nos para o prédio principal. Os corredores de um lado e de outro, tinham gaiolas cheias de camundongos, ratos e hamsters. Também havia animaizinhos exóticos, répteis e uma porção de outros bichos selvagens. O prédio inteiro piava, assobiava, guinchava, chiava e farfalhava, repleto de vida.
Devido ao trabalho com os animais e as visitas constantes, ela e o marido, Paul, homem grande e calado, de macacão e embornal, estavam quase sempre em atividade. O negócio de animais de Helen começara havia 20 anos, quando ela levara para casa uma dupla de ratos brancos para os filhos, Jack e June. Assim que os ratos passaram a se reproduzir, Helen foi construindo mais gaiolas e nasceu a Fazenda Animal White. Embora ela só tivesse completado o segundo grau, iniciara sua dedicação à criação de animais, que duraria a vida toda.
Helen começou minha instrução sobre répteis na gaiola da jibóia. Depois de mostrar como segurar as cobras sem machuca-las, entregava-me as amostras vivas das espécies locais que procurava. Voltei para casa extremamente empolgado. Eu queria ser igual a Helen Perley quando crescesse.
Fiz um saco para cobras usando uma fronha, como Helen me ensinara. Procurava onde ela me dissera para faze-lo: debaixo das pedras, tábuas e papel alcatroado, nos caminhos e nos campos. Caminhava conforme ela me recomendara, com passos pausados e leves, para evitar vibrações que alarmassem os bichinhos. E encontrei muito mais do que cobras. Achei teias de aranhas, ninhos de passarinhos, flores silvestres, formigueiros, pedras fora do comum, cascas de ovos e insetos bizarros. Cada descoberta alimentava minha curiosidade.
De dois em dois ou de três em três dias, eu descia o morro na minha bicicleta até a casa de Helen, com a fronha cheia de tudo o que tinha conseguido presa no guidom. Helen largava seu trabalho, comprava as cobras, e as identificava, bem como respondia a todas as minhas perguntas.
Durante seis verões, eu ia à casa de Helen pelo menos uma vez por semana. Aos 10 anos, descobri a taxidermia. Helen deu-me um pombo morto para minha primeira tentativa. Quando lhe entreguei o espécime terminado – caricatura volumosa do pássaro original – demonstrou sua aprovação.
Em outra ocasião, Helen levantou a cabeça ao ouvir um tumulto de asas do lado de fora da casa, e fez sinal para que eu a acompanhasse. Vimos um bando de seus pombos disparando por um brejo, perseguidos por um gavião. O gavião dispersou os pássaros e depois voou reto para o alto. Os pombos se reagruparam e voltaram, vigorosamente, para junto de nós. Um dos pássaros brancos ficou para trás. De repente, o gavião começou a descer, rodopiando tão depressa que eu mal podia acompanhar seus movimentos. Ele caiu sobre o pombo numa explosão de penas brancas, impelindo-o quase até o brejo. Depois, agarrando o fardo branco, o gavião esvoaçou lentamente na direção de uns pinheiros altos.
Aquela foi a cena mais dramática que vi na minha infância e, de súbito, compreendi que a vida e a morte trabalham juntas. Conforme Helen me ensinara, alguns tem de morrer para que outros possam viver.
Ela foi a pessoa mais real que conheci. Gostava do que fazia de modo tão completo, que não havia necessidade de fingir ser outra pessoa. Um menino entende essas lições depressa: “Faça o que ama. Respeite a vida.”
Todos em Scarborough conheciam Helen. Existiam histórias sem fim sobre ela. Uma noite, uma vizinha histérica a chamou.
“Helen! Há uma cobra na janela da minha cozinha!”
Helen acudiu correndo e encontrou uma jibóia de mais de um metro enroscada no peitoril externo da janela.
“É Beauregard!”, disse. “Ele desapareceu há duas semanas.”
Outra mulher, que encontrou uma cobra em sua árvore de Natal, organizou um abaixo-assinado para que Helen se livrasse das cobras. Ninguém quis assinar. As pessoas gostavam de Helen. Além disso, os habitantes do Maine adoram uma boa história, e não havia hipótese de alguém perturbar o estilo de quem fornecia tantas como ela.
Tinha muito senso de humor. Se os visitantes eram noviços, mostrava as caudas duras das pombas de leque e lhes dizia: “Eu, pessoalmente, engomo-lhe as caudas.” Se aceitassem isso, eram levados, em seguida, para ver os faisões dourados, e Helen, então dizia: “Eu mesma os pintei.” Às vezes, pessoas perguntavam-lhe como fazia aquilo e ela se embrenhava numa conversa sobre pintura de aves.
Colocava ovos de patos debaixo das coelhas e dizia que eram ovos de coelhas. Por vezes, fazia as coelhas cuidarem dos gatinhos órfãos, ou gatas cuidarem de coelhinhos órfãos. “É o primeiro cruzamento bem sucedido de gato com o coelho”, declarava, com ar solene. “O Gaco.” Mas sempre era traída por um sorriso e confessava a verdade.
Helen provavelmente era mais conhecida em Scarborough por suas curas de animais. No decorrer dos anos, um desfile de pássaros e outros animais, levados pelo público, passou por suas mãos. Uma vez, entreguei-lhe um esquilo de dorso listrado com um ferimento na barriga. Helen enfiou a mão na gaiola e, com delicadeza, segurou o bichinho. Sei, por experiência própria, que esses esquilos mordem, mas aquele ficou ali, parado, confiante, enquanto Helen o mantinha de barriga para cima e limpava o ferimento. No dia seguinte, ele estava de olhos vivos e ativo, a cauda bem ereta.
Profissionais de lojas de animais de estimação de todo o país se aconselhavam com Helen quanto a dietas, doenças, criação e treinamento. No seu auge, a Fazenda Animal White possuía mais de 33 mil animais, a maior parte ratos e camundongos de laboratório.
Acima de tudo, era excelente mestra. Fazia numerosas excursões pela fazenda e passeios pelas matas. Levava os animais aos colégios e clínicas. Se algum jovem tivesse alguma paixão especial por animais, Helen logo percebia, e chamava isso de “centelha”. Dava uma atenção especial a esse jovem e o encorajava a voltar.
Quanto tinha 14 anos, meus pais compraram um sítio, a uns 80 quilômetros de distância. Triste com a mudança, fui de bicicleta à casa de Helen. “Você vai adorar Windham”, disse ela. “É um lindo local, com muita vida selvagem em crescimento.” Com essas palavras animadoras, ela libertou-me.
Passaram-se os anos. Deixei o Maine e quando voltei, com meus 40 e poucos anos, tanto meu casamento quanto minha carreira como construtor terminaram. Eu estava à deriva. Durante anos vendi artigos e desenhos da vida silvestre, e a idéia de fazer isso como forma de subsistência me empolgou. Mas estava cheio de receios e indecisão. Aí, pensei em Helen. Ela sabia exatamente o que fazer de sua vida. Ensine às pessoas sobre os animais. Faça aquilo que ama. Resolvi em concentrar em escrever sobre a vida selvagem – e é o que tenho feito desde então.
Meu sobrinho é fanático pela vida silvestre, como eu. Em 1991, quando ele tinha oito anos, levei Kyle para conhecer Helen. Os prédios estavam mais decrépitos do que eu me lembrava. Havia gaiolas vazias. Mas a porta entelada do prédio principal abriu-se e uma mulher pequenina de suéter azul de gola virada e jeans apareceu. Tinha um martelo pendurado no cinto.
Os simpáticos olhos azuis no rosto enrugado olharam para nós, enquanto eu fazia as apresentações. Kyle fez uma pergunta à Helen quanto à alimentação do seu hamster, e logo começaram a conversar animadamente. Helen tinha visto a centelha.
Olhamos tudo, Kyle perguntando sem parar, Helen respondendo em detalhes. “Este é o crânio de um monstro marinho”, disse-nos ela. Enquanto Helen mostrava seus animais a Kyle, entrei no prédio principal. Um garoto de seus 12 anos estava limpando as gaiolas.
“Trabalha para a Helen?”, perguntei. Ele fez que sim. “Gosta disso?” Ele me olhou como se dissesse: “Se gosto? Que pergunta! Adoro!”
Meu coração estava cheio: todos nós crianças, por todos esses anos. Tentei dizer alguma coisa, mas não encontrei as palavras. Então, Kyle gritou: “Tio Bob! Uma jibóia!
Reingressei no tour de Helen. Na volta para casa, Kyle não parou de falar sobre a fazenda. “Quero ser como Helen Perley quando crescer”, confessou.
O coração de Helen parou em outubro de 1994. Tinha 90 anos. Penso muito nela. E lembro-me de que, graças a ela, estou fazendo o que amo.

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