quinta-feira, julho 19

O flamingo que perdeu o rumo

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autora : Kathy Cook

Livre pela primeira vez, o flamingo planava só, sobre as colinas e rios do nordeste dos EUA. Depois de 20 anos de cativeiro, os músculos de seu peito doíam. Apesar disso o pássaro perdido seguia voando, examinando a terra lá embaixo em busca de outros flamingos. Mas seus companheiros estavam muito distantes desse estranho e novo habitat.

Era outubro de 1997, os dias iam ficando mais curtos e a temperatura caía, às vezes para abaixo de zero. Embora nunca tivesse migrado, o instinto dizia ao flamingo para procurar um clima mais quente. No entanto, sendo de uma espécie chilena, enquanto bandos de aves migratórias da América do Norte voavam para o sul, ele seguia em direção ao noroeste, para onde achava que seria a costa. Uma rota em que certamente morreria de frio.
A ave acabou chegando ao Canadá e, no início de novembro, viu um bando de gansos ao longo de uma enseada do Rio Ottawa. Então desceu suavemente e pousou no meio deles.

Kathy Nihei, fundadora do Centro de Proteção às aves Selvagens do Vale do Ottawa, largou o conta-gotas com que alimentava uma ave doente e atendeu o telefone. Era Elizabeth Le Geyt, observadora de pássaros e colunista do Ottawa Citizen, e a história que contou fez Kathy rir.
“Está falando sério, Elizabeth? Um flamingo? Aqui?!” Ela sabia que não se encontram flamingos no Canadá, quanto mais no Rio Ottawa. “Vamos checar isso.”
Kathy dirigia o centro de proteção às aves havia 16 anos. Atualmente o centro trata de mais de 3.500 aves órfãs e feridas por ano, antes de devolve-las à vida selvagem.
Como Kathy estivesse jantando na casa dos pais naquela noite de 9 de novembro, o colega Jamlyn e um voluntário se ofereceram para ir até Shirleys Bay, onde o misterioso visitante fora visto.
Quando chegaram lá, viram a ave de penas cor de rosa e pernas longas e finas, que chapinhava nas águas rasas. Hamlyn telefonou para Kathy: “É grande. É cor de rosa. É um absurdo flamingo!”, exclamou.
No dia seguinte Kathy, Hamlyn e vários voluntários pegaram algumas redes, pediram emprestadas duas canoas e remaram até a enseada. Não demorou muito para que Kathy avistasse o corpo da ave, de uma cor de rosa brilhante, destacando-se nitidamente no dia nublado.
Devagar, remaram até uns cinco metros de distância do flamingo. De repente a ave ergueu as amplas asas e voou para uma pequena ilha. Kathy percebeu que aquele resgate seria mais difícil do que imaginara.
Ao deitar-se naquela noite, ela não conseguia parar de pensar na solitária criatura perdida: De onde você veio, pobre ave? E como vai alimentar-se quando os cursos de água se congelarem?
Ao amanhecer, Kathy deu início a uma séria de e-mails e telefonemas para zoológicos, santuários de aves marinhas e também para qualquer um que tivesse experiência com flamingos e pudesse ajudar. Nenhum dos zoológicos da área dera falta de um flamingo e ninguém tinha experiência na captura dessa ave. Baseando-se nas informações obtidas, Kathy encomendou comida própria para flamingos e conseguiu alguns espécimes de plástico, desses para enfeitar jardim, e uma fita com sons emitidos pela ave. Um plano tomava forma, e as pessoas estavam ansiosas para ajudar.
Um observador de pássaros enviou mensagem pela Internet pedindo que quem tivesse perdido um flamingo entrasse em contato com o Centro de Proteção às Aves Selvagens do Vale do Ottawa.
Então o Ottawa Citizen publicou na primeira página a história do visitante estrangeiro.

Said Sheikh, 19 anos, voluntário que dedicava meio expediente de trabalho ao centro dirigido por Kathy, crescera admirando os flamingos selvagens de sua terra natal, o Quênia, e anos antes havia resgatado do Oceano Índico um flamingo doente. Quando soube da ave perdida, encaminhou-se para Shirleys Bay a fim de juntar-se ao crescente número de voluntários para o resgate.
Entre eles achava-se Alan Walsh, 42 anos, pai de duas meninas: Shannon, 6 anos, e Lauren, 9.
“Papai, você podia salvar o flamingo”, dissera-lhe Shannon, ouvindo a história no rádio. “Por favor, papai!”
Walsh olhara para os olhos suplicantes das filhas e o sorriso cúmplice da mulher, e ligara para Kathy a fim de saber como poderia ajudar.
No centro de proteção todos estavam em compasso de espera. Na primeira semana, chegou uma resposta para a mensagem da Internet. O flamingo era um fugitivo do Santuário de Aves Selvagens Livingston Ripley, em Litchfield, Connecticut. Seu nome era Eilish. Para os canadenses, porém, ele logo se tornou conhecido como Elisha.
Nos primeiros dias, Elisha bancou o turista. Um dia era visto com os gansos em Shirleys Bay; no dia seguinte, aparecia a dez quilômetros de distância, rio acima ou abaixo. No fim da semana, as aparições pararam subitamente. Através da mídia, Kathy pediu ao público que ligasse para o centro se o flamingo fosse visto.
Os gansos tinham ido par o sul, e Kathy esperava que o flamingo os estivesse seguindo. Mas especialistas disseram que isso era improvável. Os gansos logo a deixariam para trás, e Elisha provavelmente continuaria sozinha.
Na noite de 16 de novembro o flamingo pousou mais uma vez nas águas rasas do Rio Ottawa e adormeceu. Antes da aurora, a temperatura caiu para –10º C e a água congelou. Quando acordou, estava com as finas pernas presas no gelo.
Escoteiros que faziam uma caminhada pela manhã viram Elisha e telefonaram para Kathy, que imediatamente reuniu a equipe de resgate.
O flamingo observou os humanos aproximarem-se numa canoa que abria caminho em meio à neve e ao gelo. Quando chegaram a cinco metros de distância, ele começou a bater as asas. O gelo que o prendia quebrou-se e ele se soltou desajeitadamente, com blocos presos à parte inferior das pernas. Ah, Elisha, por favor confie em nós. Sua vida depende disso, pensou Kathy, desapontada. Derrotados por ora, os voluntários remaram de volta à margem.
“Temos de imaginar outro plano”, disse Kathy.
Walsh concordou, e em dois dias construiu uma armadilha de cinco metros de diâmetro que poderia ser fechada manualmente quando o flamingo entrasse nela.
De volta a Shirleys Bay, Kathy pôs na armadilha iscas de alimentos e flamingos de plástico. Elisha ignorou o chamariz.
“Ele é inteligente!”, admitiu Kathy para Jamlyn e Walsh enquanto tomavam café de uma garrafa térmica no posto de observação camuflado.
No dia seguinte um voluntário avistou Elisha enquanto alimentava patos nas proximidades do Parque Andrew Haydon, ao longo do Rio Ottawa.
A armadilha de Walsh foi preparada de novo. Para atrair a ave, montarem-se espelhos na margem que refletiam a imagem dela, um ganso de plástico movido por controle remoto foi colocado ali perto, e começaram a tocar uma fita de sons de flamingo.
Houve outras tentativas de resgate criativas. Voluntários camuflaram uma canoa com ramos e juncos. Sheikh e outro admirador de Elisha empurraram-na na direção da ave e esconderam-se atrás da canoa segurando redes. Não adormecido de todo, o flamingo manteve um olho desconfiado no objeto flutuante. Quando a estranha geringonça chegou a uns cinco metros de distância, a ave voou par um local mais tranqüilo.
Pacientemente, eles a seguiram por uma sucessão de novos locais, mas todas as vezes ela escapou.

Em 21 de novembro a enseada se congelou totalmente. Dois dias depois, o flamingo foi visto alimentando-se na foz de um riacho, dez quilômetros rio acima. Mais uma vez Kathy pôs alimentos e flamingos de plástico ao logo do riacho.
Sheikh vestiu macacão e botas de borracha para proteger-se da água gelada e escondeu nas costas uma rede extensível de pegar borboleta. Aproximou-se de joelhos do flamingo. Como fizera no resgate do Oceano Índico, esfregou os dedos embaixo da água, imitando o som de outro flamingo alimentando-se. A ave começou a caminhar em sua direção.
“Não acredito. Ele está indo diretamente para os braços de Said!”, sussurrou Kathy para Hamlyn.
O flamingo estava quase ao ao alcance da mão de Sheikh quando este escorregou num buraco do leito do rio e chapinhou. Elisha então fugiu.
Em dezembro o flamingo passara a maior parte do tempo alimentando-se na foz do riacho, ocasionalmente mudando para uma parte mais estreita, com sete metros de largura. Kathy esperava que uma armadilha especial nesse local tivesse sucesso. Para fazer a armadilha, precisavam de sete redes grandes e quase invisíveis. O custo, porém, estava acima das possibilidades do centro.
A essa altura, no entanto, a situação desesperada da ave havia despertado o interesse do público e tocado o coração das pessoas. Três redes foram doadas após a divulgação de um apelo. Seriam necessárias mais quatro. Então o centro recebeu um telefonema: “Suas redes estarão chegando amanhã. É a nossa contribuição”, informou um representante do Ottawa Citizen.

As redes chegaram em 5 de dezembro, e Kathy, Hamlyn e dez voluntários passaram seis horas montando a armadilha. Fincaram estacas no chão e esticaram redes de uma margem à outra, deixando uma abertura na frente para servir de porta, que em seguida camuflaram com palha e folhas.
Trabalhando em duplas, os voluntários começaram uma vigília de 24 horas. Passaram-se dias frustrantes: a ave não entrava na armadilha. É loucura! Por que estou fazendo isso?, perguntava-se Walsh, enquanto esperava na fria escuridão da madrugada. Mas o que começara como um desejo de agradar às filhas tinha se tornado uma exigência.
Então uma onda de frio chegou e uma camada de gelo cobriu o riacho. O flamingo desapareceu. Muitos pensaram que ele tinha sucumbido aos rigores da natureza.
Em 10 de dezembro, ainda sem sinal da ave, Kathy e Hamlyn decidiram tirar a armadilha. Não podiam mais continuar vigiando-a 24 horas por dia! Era tempo de admitir o fracasso. Kathy estava calçando botas de borracha para entrar no rio e soltar a armadilha do gelo quando alguém se aproximou correndo: “Lá está ele!”
O flamingo encontrava-se a apenas 20 metros de distância. Eles correram para quebrar o gelo da armadilha. Kathy, entusiasmada, quase não notou que suas mãos nuas começavam a congelar. Walsh chegou para ajudar. Depois de tirarem o gelo, foram para seus esconderijos.
Venha, avezinha, deixe seu estômago guia-la, dizia Hamlyn baixinho, enquanto o flamingo esfomeado bicava o gelo, em busca de comida. Então ouviu o leve murmúrio de água corrente vindo da armadilha. Encaminhou-se para lá, mergulhou a cabeça na água e começou a comer.
Walsh ergueu a mão e, quando a ave se voltou na direção do fundo da armadilha, avisou: “Agora!”
Hamlyn correu para a rede, agarrou o flamingo e apertou-o contra o corpo. Ele não se debateu. Com um amplo sorriso, Hamlyn beijou-lhe o topo da cabeça de penas eriçadas.

A história do resgate foi amplamente divulgada. Quando fotos do flamingo salvo ocuparam a primeira página dos jornais de Ottawa no dia seguinte, foi como se toda a cidade tivesse dado um suspiro de alívio.
Ninguém ficou mais feliz com a notícia do que o ornintólogo S. Dillon Ripley, presidente e fundador do santuário de aves de Litchfield, abrigo de 80 espécies de aves de todo o mundo. Elisha fugira quando tratadores foram aparar-lhe as penas das asas. Durante cerca de um mês tentaram resgata-lo, mas o flamingo desapareceu e foi considerado morto.
Também Kathy ficou feliz por Elisha ter sido salvo, mas triste por vê-lo ir embora. Por cortesia da Air Canadá, o flamingo foi para casa. Hoje está de volta à grande área protegida por redes, no santuário de Litchfield.

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