quarta-feira, julho 4

Redenção na classe 33

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1997
Autora : Cindy Brown Austin

Ele foi o professor a vislumbrar a mulher que eu poderia vir a ser

“Ouçam, crianças”, disse o senhor Mahoney para a nossa turma de sexta série. “Não me interessa o que o professor os deixava fazer no ano passado. Esta é a classe 33, e aqui vocês farão o melhor.”
De ombros largos e pernas arqueadas, Vincent Mahoney não se importava se tínhamos um pai grandalhão, mãe que podia xingar em dois idiomas, ou um tio Beto capaz de processa-lo. Aqueles que não se comportavam na sala de aula recebiam o que mereciam: justiça.
Desordem causava punição com exercícios de cópia. Desrespeito aos colegas provocava detenção imediata após a aula. Desafio ao senhor Mahoney significava receber severo olhar de advertência. Mas, em seguida, sua mão firme nos levantava pelos cotovelos e nos conduzia até o corredor para uma conversa pessoal. Ao contrário de alguns professores, o senhor Mahoney nunca precisava pedir reforços.
Saíamos da sala – para o almoço ou para o ginásio – em duas filas, tão silenciosos quanto ratos de igreja. Os outros professores, com razão, mal acreditavam no que viam.
Antes de chegarmos à aula do senhor Mahoney, muitos de nós fôramos considerados palhaços, desordeiros e cabeças duras – crianças indisciplinadas cujo futuro já havia sido escrito: FRACASSO. Éramos filhos de operários, vivíamos em conjuntos habitacionais para população de baixa renda e precisávamos desesperadamente de confirmação do nosso valor no mundo. Ele reconheceu essa importância. Poucos conseguiram faze-lo.
Certo ano, tive um mestre que nos deixava ouvir discos e dançar o dia todo. Sentada sobre minha carteira, com a cabeça apoiada nas mãos, esperava pelo início da aula que nunca acontecia. Meu boletim, porém, era cheio de conceitos A e B.
Quando cursava a primeira série, uma professora substituta, branca, conseguiu colocar a neta em nossa turma. A mulher passou um tempo considerável exaltando as habilidades da menina, dizendo-nos por que ela era melhor do que nós. Acreditei, por algum tempo depois daquele dia, que todas as crianças brancas provavelmente eram superiores. Afinal de contas, poucas precisavam morar em nosso conjunto habitacional.
Porém, o senhor Mahoney tinha uma forma de entrar em contato conosco que transcendia as diferenças de idade e cultura. Era capaz de infiltrar-se em nosso impenetrável mundo juvenil e captar o que estávamos sentindo. Entendia a necessidade de sermos ouvidos, e nos ouvia. Estava sempre disposto a nos dar o que fosse necessário para que confiássemos nele.
Durante o recreio, enquanto a maioria dos outros professores ficava sob as árvores frondosas em busca de alívio do sol da tarde, o senhor Mahoney jogava bola conosco, correndo toda e extensão do playground, sua gravata retorcida voando sobre os ombros. A maneira com que ele chutava a bola com seus velhos sapatos era pura poesia em movimento.
Havia mais de 30 alunos na turma. O senhor Mahoney comprava um bolo para cada um em nossos aniversários, e a turma toda comemorava. Para alguns garotos, aquelas festas eram o único reconhecimento que receberiam naquele ano.
Um clima de afabilidade tomava conta da classe 33 quando sentávamos em nossas carteiras. Essa cortesia fluía lentamente durante a aula, enquanto o senhor Mahoney, posicionado como se fosse nosso guardião, bebia café e corrigia os trabalhos. Por trás da cor diferente de sua pele era, antes de tudo, um homem que se preocupava conosco.
O mestre soube, de alguma forma, por que subitamente resolvi organizar minha carteira, sempre bagunçada, após a aula. Elevou o olhar observador por sobre os papéis que lia.
“Ei, Cin, o que você está fazendo?”, perguntou usando um diminutivo de meu nome, como fazia com todos os alunos da nossa turma. “Qual é o problema? Os colegas a estão esperando lá fora para lhe bater outra vez?”
“Sim”, respondi em tom corajoso, com os joelhos tremendo.
“Puxa! Quem está atrás de você desta vez?” Fez uma pausa para tentar se lembrar e disse os nomes dos prováveis suspeitos.
“O que você fez desta vez, Cin? Falou sobre a mãe de alguém?”
“Quase”, respondi.
Ele tomou um gole de café, olhou-me nos olhos e disse com voz suave:
“Você precisa se lembrar de ficar com a boca fechada. É muito mais fácil do que ser aterrorizada toda semana.” Deu, então, uma risada franca e prosseguiu: “Sei que isso é quase impossível para você, mas tente de qualquer maneira.”
Mais tarde, entramos em seu pequeno carro e ele me levou até em casa.
O senhor Mahoney foi o professor que me desafiou a alcançar objetivos, o homem cujas exigências de responsabilidade destruíram a noção de que a pobreza me dera uma desculpa para esperar menos de mim mesma. Foi quem nos aconselhou a ter disciplina, quem foi até o conjunto habitacional e visitou minha mãe, quem sabia os nomes de todos os meus irmãos. Foi o mestre a vislumbrar a mulher que eu poderia vir a ser.
Talvez seja essa a razão pela qual eu ainda o esteja procurando depois de tantos anos. É possível que a motivação de vê-lo me tenha estimulado a ser uma verdadeira instrutora de meus quatro filhos. Por isso, mencionei seu nome inúmeras vezes para meu marido, que nunca o conheceu.
Na época em que seus esforços de professor pareciam insignificantes, até mesmo inúteis, foi um dos poucos corajosos que invadiram minha escuridão e fizeram investimentos no futuro de crianças como eu.
Naquela época, não havia nenhuma homenagem para aqueles admiráveis professores urbanos, nenhuma placa para o senhor Mahoney exibir na parede da sala.
Mesmo assim, ensinou-nos através de suas ações, que apesar das diferenças de raça, cor e classe, por trás das aparências, as pessoas eram apenas pessoas. Mostrou-nos, também, que aqueles que ousavam correr o risco de ajudar, mesmo sem receber qualquer recompensa, eram verdadeiramente especiais.
Hoje, 15 anos mais tarde, andando pelos corredores de outra escola, de súbito, deparo-me com o senhor Mahoney no meio de um grupo de ruidosos alunos. Seus cabelos castanhos estão mesclados de fios de um branco prata. Ele se aproxima.
“Sou Vin Mahoney”, apresenta-se, estendendo a enorme e calorosa mão.
“Que posso fazer por você?”
Fico paralisada, meus pensamentos e palavras entorpecidos. Estou tomada pela nostalgia, dominada pela emoção.
“Senhor Mahoney”, digo, por fim, “sou eu.”
Ele hesita educadamente, porém, não reconhece meus óculos de armação pesada e grossas lentes.
Olha-me com atenção, examinando meu rosto. Dou um risinho nervoso, típico de uma aluna da sexta série.
“Não está me reconhecendo?”, provoco.
“Oh, céus!, o velho sorriso ilumina seu rosto. “É você, Cin?”
“Sou eu.”
“Puxa vida! Como vai?”
Sua voz está embargada pela emoção enquanto se aproxima e me abraça. Rio e choro ao mesmo tempo.
“Não acredito!”, exclama.
Começamos a rir juntos, de forma calorosa e incontrolável.
A seguir, conversamos um pouco para trocarmos informações sobre os últimos tempos. Não fico surpresa em saber que ele havia acompanhado os acontecimentos de minha vida e de outros ex alunos seus. Lamenta por aqueles que estão envolvidos com drogas como se fossem os próprios filhos. Pai coruja, exalta os que se formaram na faculdade, conseguiram emprego e estão constituindo família. Está orgulhoso de mim, tenho certeza, pois elogia minhas pequenas redações como se fossem grandiosos feitos literários.
Conscientizo-me, então, de que Vincent Mahoney não mudara nem um pouco. O tempo apenas se incumbiu de molda-lo em um mais velho e lento senhor Mahoney, ainda capaz de carregar os alunos pelos cotovelos e comandar: “Escreva ‘eu levantarei minha mão! 50 vezes”
Observando-o agora, através dos olhos de uma mulher, respeito e admiração emergem, trazendo-me lágrimas.
“Senhor Mahoney”, digo, com a voz trêmula,”muito obrigada.”

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